Nem o sol tinha despontado e a ruazinha Alice Guimarães, já principiava a despertar. Os galos cantavam em coro, anunciando o início do dia e, bem ao fundo, um “berimbau viola” ecoava, avisando à roda de capoeira. O som daquele berimbau ressoava vila adentro, criando uma sinfonia que parecia transcender a realidade. Pouco a pouco, os capoeiristas começaram a chegar, vestidos em roupas coloridas e vibrantes, cada um trazendo consigo sua energia singular.
Enquanto a roda se formava, eu ainda estava de olhos fechados, mas podia sentir as vibrações e os sons que permeiavam o ar. Gradativamente, o sol foi se erguendo e, sem pedir licença, foi adentrando aos recintos das casinhas. Os galos, já fatigados de cantar, calaram-se ante a luminosidade.
Foi então que comecei a ter uma experiência onírica, algo difícil de expressar com as palavras. Senti meu corpo flutuar, enquanto a música me levava a uma jornada transcendental. As cores ao meu redor se tornaram mais vivas e intensas, e aquela roda de capoeira, que acontecia lá fora, emergiu diante de mim e se transformou em um misterioso portal, que me arrebatou para o passado… numa rápida regressão pude ver: Maria Felipa, Besouro, Bimba, Pastinha… e de súbito fui devolvido ao mundo… coloquei meus pés sobre o chão, sentei-me sobre a cama e ouvi o acréscimo de outro instrumento: o atabaque. As suas batidas, harmonicamente sincronizadas com os berimbaus, produziram outro efeito catártico que evocou todo o inconsciente coletivo negro: Quilombo dos Palmares, Revolta dos Malês, Balaiada, Revolta da Chibata…
Os sons dos berimbaus e atabaques se fundiram em uma única batida, que parecia ressoar dentro de mim. De repente, fui envolvido por uma luz brilhante e senti uma presença extraordinária ao meu lado. Era como se estivesse em uma comunhão com os antigos deuses africanos. Agora, meu olhos se voltaram para o centro da roda. A cada movimento dos capoeiristas, sentia suas energias se fundirem com as minhas, formando um laço invisível que nos unia em uma só roda.
A música continuava a tocar, levando-me mais fundo na minha jornada. Senti-me conectado a tudo ao meu redor, sentindo a presença de ancestrais que haviam dançado e lutado nessas mesmas ruas séculos atrás. As palavras do cantador ecoavam em minha mente, cada verso uma revelação profunda que me fazia questionar a minha própria existência.
Enquanto a roda fluía, eu me sentia cada vez mais conectado com a energia da capoeira. Assim, adentrei a roda, de corpo e alma, e meus movimentos se tornaram mais fluidos, mais graciosos e eu podia sentir certa presença guiando cada movimento meu. Foi um momento místico e transcendental, como se eu tivesse sido levado a um plano superior de existência.
Quando a roda finalmente terminou, senti-me exausto, mas também renovado. Os capoeiristas celebraram com gritos de alegria e abraços sinceros, honrando o espírito da roda. O sol brilhava alto no céu, banhando tudo com uma luz cálida e radiante. Eu me despedi dos meus companheiros de roda com um sorriso no rosto e um sentimento de paz no coração, sabendo que havia vivido um momento único e especial, que ficaria gravado em minha memória para sempre.
Então, despertei-me aos cantos dos galos!!!
Créditos na imagem: Reprodução: Canto, toques e a dinâmica das rodas, IPHAN.
[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “149”][/authorbox]
Jeferson do Nascimento Machado
Related posts
Notícias
História da Historiografia
História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography
ISSN: 1983-9928
Qualis Periódiocos:
A1 História / A2 Filosofia
Acesse a edição atual da revista