Em 2011, quando ainda estava no primeiro ano do Mestrado em História, escrevi o artigo O fingir historiográfico: a escrita da História entre a ciência e a ficção. Ao que pese alguns problemas de digitação e erros historiográficos pontuais, próprios de quem dá seus primeiros passos no universo científico, as considerações que desenvolvi no texto continuam me parecendo válidas: frente às diversas críticas que o conhecimento historiográfico recebia por sua “não-cientificidade” e seu aspecto textual (muitas vezes erroneamente confundido com literário ou ficcional – por sinal, duas coisas diferentes), eu buscava defender o estatuto científico da disciplina, sem deixar suas características ficcionais. Um esforço posterior resultou em um segundo texto, chamado História e ficção: dos usos do fingir à política de semantização, no qual tentei suprir lacunas e resolver problemas que fugiam à minha atenção ou capacidade teórica, quando da escrita do primeiro texto. Afinal de contas, ciência se faz assim, sempre revisando e colocando nossas ideias e teorias à prova.
Recentemente, a microbiologista Natália Pasternak e o jornalista Carlos Orsi publicaram o livro Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados à sério, no qual criticam a psicanálise, a homeopatia, a acupuntura, dentre outros campos. Embora o livro de Pasternak seja recente, ele apenas confirma posições já demonstradas pelo Instituto Questão de Ciência nos últimos anos. Instituto do qual a cientista e Carlos Orsi exercem os cargos de direção.
O livro de Pasternak e Orsi vem sofrendo críticas de vários profissionais e vou tentar não repeti-las aqui. Tampouco tenho competência para dizer se a psicanálise é ou não ciência. Prefiro deixar tal tarefa para os profissionais da área. A questão desse texto é outra: as posturas encontradas em textos da revista do Instituto Questão de Ciência me remetem a uma preocupação que eu já tinha nos artigos supracitados, qual seja, a necessidade de reflexão de uma concepção crítica do que é o próprio fazer científico. Desde já, que algo fique claro: não quero negar à ciência seu estatuto científico, mas refletir sobre seu aspecto histórico e social. Ao contrário do que dizem Clarice de Medeiros Chaves Ferreira e Vitor Douglas de Andrade, em seu texto “Os negacionistas que agora “defendem a ciência”, publicado na revista virtual do referido instituto, não considero que criar “dúvidas intencionais sobre teorias ou práticas científicas” “relativizando” as “evidências confiáveis disponíveis na literatura” (que palavra! tão flexível e mutável historicamente quanto o conceito de “ciência”) seja propriamente negacionismo. Antes, é o princípio mesmo pelo qual se move a ciência, como sua concepção contemporânea permite compreender, como indica o campo da física quântica.
A miséria intelectual do título do texto aponta para a diferença possível entre o conhecimento técnico de algo e o conhecimento crítico sobre o que se faz. Ou seja, é possível ser um bom cientista, mas ainda assim ter uma compreensão intelectualmente miserável sobre o que é a ciência. Evitando generalizações, deve-se apontar para a característica fractal da atuação do especialista frente à sociedade, como foi o caso do brilhantismo de Natália Pasternak durante a crise da pandemia da Covid-19. Nessa ocasião, ela não se restringiu à sua função científica, mas se posicionou como uma autêntica intelectual, informando criticamente a sociedade e buscando colaborar na construção de respostas e medidas para as questões urgentes que se apresentavam.
Esse brilhantismo não se reflete em alguns textos publicados pela revista do Instituto Questão de Ciência, que demonstram não apenas um cientificismo anacrônico como também a referida miséria intelectual, evidente em generalizações argumentativas e associações simplificadas que apresentam falsas comparações.
Antes que também me chamem de “pós-moderno”, afirmo que ressaltar os aspectos – indiscutivelmente construídos e socialmente inseridos – da ciência não significa afundá-la em um relativismo absoluto. Não preciso citar Foucault ou Derrida para isso: a ciência, como toda atividade humana, só pode ser pensada e construída socialmente. Ou talvez Pasternak, Orsi e outros envolvidos no referido instituto acreditem que a ciência apresenta profundas similaridades com o campo religioso e pensem que a ciência e seus produtos – as vacinas, os tratamentos etc – se façam através da “descoberta” (que palavra mágica! estava tudo na natureza, nós é que ainda não as tínhamos encontrado!) e não pela construção. Ironicamente, tal percepção da ciência e do fazer científico é uma “fabulação” (palavra muito usada na literatura, por sinal), ou seja, uma visão romanceada de uma série de fatos.
Para pensar o relativismo me remeto a um cientista muito mais eficiente que os pós-modernos. Albert Einstein, em sua Teoria da relatividade, coloca não só a ciência em perspectiva, mas a própria realidade. Ele não diz que esta é inexistente, mas afirma que é fragmentada e cabe às ciências torná-la objetiva. Essa ideia refinada sobre o que é a realidade escapa a Carlos Orsi, que em seu artigo A conspiração do inconsciente, demonstra acreditar em uma “realidade física objetiva, tal como descrita pela ciência”. Mas tudo bem, Orsi não é cientista. O problema de seu texto, ademais da necessidade de melhoria de redação, é que sua visão obtusa sobre o que é a ciência não se limita a ele. Visto as entrevistas dadas por Pasternak a respeito do livro que escreveram juntos, a microbiologista compartilha da mesma concepção pobre (miserável). Inclusive, algum poder místico e religioso parece ter lhes dado a autoridade de dizer o que é e o que não é ciência.
Felizmente, outros cientistas nos brindaram com a possibilidade de refletir sobre os aspectos históricos, sociais e relacionais que envolvem a construção do conhecimento científico. É o caso do próprio Einstein, Thomas Kuhn e o físico Brian Greene, que em seu livro A realidade oculta, enfatiza a necessidade de repensá-lo, levando em consideração o viés especulativo que a Física apresenta desde que Einstein formulou a Teoria da relatividade. Parece que Pasternak, Orsi e outros colaboradores do Instituto Questão de Ciência estão um século desatualizados. A noção positivista de ciência que apresentam é contestada desde o século XIX. Mas o que estou falando? Se por acaso lessem este texto, os referidos autores me diriam, com a autoridade mística que lhes foi conferida, que História não é ciência. Pois é, talvez a Física também não seja…
REFERÊNCIAS:
FERREIA, Clarice; Andrade, Vitor. Os negacionistas que agora “defendem a ciência”. Revista Questão de Ciência, 2021. Disponível em: <https://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2021/06/29/os-negacionistas-que-agora-defendem-ciencia>. Acesso em: 01 de ago. de 2023.
GOMES, Warley Alves. História e ficção: dos usos do fingir à política de semantização Cadernos de Pesquisa do CDHIS, [S. l.], v. 34, n. 1, p. 132–163, 2021.
____________________. O fingir historiográfico: a escrita da história entre a ciência e a ficção. rth|, v. 6, n. 2, p. 65-91, 2011.
GREENE, Brian. A realidade oculta: universos paralelos e as leis profundas do cosmo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012.
ORSI, Carlos. A conspiração do inconsciente. Revista Questão de Ciência, 2020. Disponível em: <https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/apocalipse-now/2020/06/27/conspiracao-do-inconsciente>. Acesso em: 01 de ago. de 2023.
PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Editora Contexto, 2023.
Créditos na imagem: Reprodução: Wikimedia Commons – Natália Pasternak lança livro em parceria com Carlos Orsi que tem gerado debate nas redes. Revista Forum, 2023.
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Warley Alves Gomes
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História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography
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