Diz o mito: a espanhola madame Olympia, com sua sagacidade e pulso firme, reinou na noite de Belo Horizonte, na primeira metade do século 20, como a maior cafetina que a cidade já viu, circulando entre as elites e defendendo seus cabarés dos desordeiros. É consenso que os mitos organizam a vida, orientam as sociedades, expressam verdades de uma determinada época. Mas quais seriam, então, as origens desse mito? Penso ser importante mencionar que uma das maiores referências da história popular de Belo Horizonte seja uma mulher e uma mulher ligada com a economia da prostituição. Durante muito tempo, a narrativa padronizada entre as elites e classes médias mineiras era que a mulher no espaço público ou era professora ou prostituta. O mito de Olympia se origina e dá origem a essa visão dualista da realidade, ignorando questões de classe e raça que compunham e compõem a imensa massa de mulheres trabalhadoras na indústria, comércio e serviços domésticos que construíram Belo Horizonte dos anos 1900. Mas esse mito também foi moldado, alimentado, narrado e recriado pela literatura e pela imprensa.
Em 2005, o nome de Olympia Vasques Garcia passou a figurar nas minhas preocupações de pesquisa, a partir da literatura de Pedro Nava. Foi ali que esse nome se encontrou com o imaginário construído anos antes, na adolescência de um menino do interior sobre a vida boêmia na Belo Horizonte do início do século 20. No livro Beira-Mar, Olympia é apresentada como uma mulher misteriosa, reservada, fria e temida, um tipo ideal, o arquétipo da cafetina moderna. Nas memórias do escritor, lemos:
[…] era temida pela valentia, pela impunidade e pelas misteriosas proteções de que dispunha. Fomos cumprimenta-la e ela correspondeu geladamente àquela corja sem dinheiro para as consumações de champanha. (…) vestia-se com simplicidade quase sórdida, não se pintava, era pálida, tinha pele de marfim ou de alabastro, belos olhos muito negros, nariz fino, boca pequena, dentes perfeitos. (…) seria uma mulher bonita não fosse a expressão fria e cruel de sua fisionomia – tão imóvel e anímica, a ponto de imitar a máscara de porcelana untada do parkinsonismo. (NAVA, [1978], 1985, p. 129)
Não é novidade que entre as fontes da pesquisa memorialística de Pedro Nava estavam os recortes de jornais de seu acervo pessoal. Nava, aliás, sempre esteve envolvido com leitura de jornais no seu círculo familiar (MELO; GALVÃO, 2014). E quando recuperamos os jornais das décadas de 1920 e de 1930 em Belo Horizonte, não podemos deixar de notar o mesmo tom discursivo para se referir à Olympia (e às prostitutas em geral). Abaixo reproduzo a única imagem que encontrei de Olympia em cerca de duas décadas pesquisando o tema.
Diferente de outras cafetinas famosas na história ocidental, como Lulu White, o rosto e a imagem de Olympia não fizeram parte da construção imagética que Belo Horizonte fez da história da prostituição da cidade. Em alguma medida, a expressão da caricatura pode sugerir a característica do parkinsonismo descrita por Nava: a falta de mobilidade dos músculos faciais que dá a aparência, no jargão médico, de uma máscara. Não foi possível encontrar nos arquivos do escritor um exemplar dessa edição do Correio Mineiro. Mas também não podemos afirmar nem negar se a imagem foi vista por Nava na época e lembrada ao escrever sobre Olympia no final da década de 1960. O curioso é que os documentos, a gravura e o livro de Nava, mesmo com a distância de mais de 30 anos, respondem algumas de nossas indagações no mesmo tom. Se encaramos a imagem a partir desse ângulo podemos concordar com Nava em relação à frieza de Olympia.
Essa caricatura compõe uma notícia publicada em setembro de 1933 denunciando ações de Olympia. Apesar de ser uma só notícia, ela é composta por dois documentos distintos: texto e imagem. Desenhista e redator produziram seus trabalhos de acordo com suas próprias habilidades e representações do mundo. Há uma distância e uma aproximação entre a expressão facial do desenho e as descrições do texto jornalístico. Julgando o gesto artístico do caricaturista sem considerar a representação de Nava ou o texto do jornal, podemos afirmar que Olympia se distancia da descrição um tanto misógina feita pelo autor na citação acima. A “madame” é desenhada com cabelos e brincos modernos, um nariz protuberante e finos, buscando evidenciar sua origem estrangeira, lábios bem delineados e grossos, além de uma expressão no olhar que indica mais uma ideia de tensão, de apreensão, de angústia mais do que uma imagem de ameaça do que de força, de crueldade e de valentia.
A Olympia da imagem é moderna! Uma mulher moderna desafiando padrões éticos e estéticos da capital mineira. O contraste aqui é estarrecedor. Uma capital que se queria uma metrópole moderna em luta contra os elementos estéticos da modernidade envolvendo o gênero feminino que não convinham à tradição moral mineira. Apesar de ser possível ler a imagem isoladamente desse ponto de vista – que se distancia do próprio texto do jornal de 1933 e do texto literário – ela também pode ser lida como um complemento a eles. As características físicas de Olympia, na imagem, podem ser associadas às da ‘mulher fatal’ que destrói lares, engana trabalhadores e homens honestos. Dizia o jornal:
De quando em vez registra o “carnet” policial uma das habituais façanhas da notabilíssima madame Olympia Vasques Garcia. Madame, que ‘é do circo’ e treinadíssima em altas ciências ocultas, gosta imenso de fazer com que os seus rendimentos à custa dos trouxas, aumentem cada vez mais. O cérebro da mulher-admirável constantemente está em ebulição. Produz coisas do outro planeta! É sempre assim…(DO arco da velha, 1933, p. 8)1
E a nota continuava relatando que a “felina madame” só teria pago dois réis a um jovem trabalhador que prestou serviços por três dias para o “Palácio das Artistas (!)”, nome pejorativo atribuído ao “Palace Club” de propriedade de Olympia. O texto seguia enunciando um forte estranhamento diante das relações de Garcia com as autoridades policiais da capital.
Procurando a polícia, a fim de narrar-lhe semelhante absurdo, contou-nos Josias Ferreira: – foi pessimamente recebido na Central, por um delegado que o tratou até com modos grosseiros…
É estranhável!
No segundo distrito, horas depois, registrava o lesado o fato, prometendo o delegado dali tomar providências… E tomará mesmo?
Madame Olympia, essa “mulher de circo” que é “bamba” e “troço na História do Brasil”, por certo não permitirá semelhante intromissão em seus domínios… (DO arco da velha, 1933, p. 8)
Ora, aquela mesma capital que sonhava entrar na modernidade higiênica de Paris e La Plata, tinha que se haver com essa construção política mineira, que desenhava acordos em gabinetes e cafés. A madame moderna, símbolo do crime e da perdição feminina, negociava politicamente com as autoridades. Essa notícia é parte de uma série de reportagens envolvendo denúncias das atividades do Palace Club, elaborada pelo Correio Mineiro entre agosto e setembro de 1933. O tom foi sempre de estranhamento diante da impunidade do poder público em relação às atividades comerciais de Olympia.
Os vínculos de Olympia com a política são parte de uma dimensão da sua mitologia que tem seus fundamentos. É possível encontrar na documentação periódica da época, diferentes momentos em que delegados ou outras autoridades intervieram em situações constrangedoras para a empresária. A preocupação do redator da notícia acima não era de todo modo infundada. Havia conexões políticas que fizeram com que Olympia não tivesse maiores problemas tal como outras mulheres tiveram. (Enquanto, de um lado, não encontramos processos judiciais envolvendo Olympia, por outro lado, é possível encontrar algumas ações policial de combate ao lenocínio que geraram processos criminais – a prática da exploração da prostituição era considerada crime pelo artigo 278 do código penal de 1890. Como foi o caso de Maria Pedro que mantinha uma casa de prostituição no Prado Mineiro e foi condenada a dois anos de prisão por lenocínio em 1929, cumprindo sua pena regularmente). É possível que as conexões políticas de Olympia sejam parte da resposta do porque ela não teve grandes problemas judiciais. Mas investigações mais verticais sobre o assunto precisam ser melhor conduzidas.
Olympia posicionava-se ao lado da trincheira conservadora da política nacional e mineira, sendo simpática, segundo reza o mito, à União Democrática Nacional – UDN, partido que protagonizou uma série de eventos antidemocráticos no país. Os boatos de que Olympia era protegida por poderosos da elite política mineira se espalharam desde o final da década de 1920. Ao que tudo indica, ao menos um desses protetores de Olympia era Pedro Aleixo, que foi um dos fundadores da UDN em 1945. Quando Olympia morreu, em 1972, o Jornal do Brasil informou que Olympia deixou em testamento parte dos seus bens para sua filha e parte para Pedro Aleixo, que àquela altura já havia sido vice-presidente em 1966, mas estava afastado do governo civil-militar e advogava em Belo Horizonte.
Outro acontecimento interessante é a tentativa de transação econômica entre prefeitura e Olympia em 1949. Naquele ano, Olympia tentou vender o mobiliário que pertenceu ao Palácio da Liberdade para o município de Belo Horizonte, ganhando apoio e aprovação de uma comissão técnica composta por Antônio Joaquim de Almeida, La Fayete Pádua e João Gomes Teixeira. Segundo reza a lenda, a cama desse mobiliário teria servido de leito para o rei belga quando passou por Belo Horizonte em 1920.2 Ao que tudo indica, o mobiliário foi doado ao município definitivamente somente após sua morte em 1972, como indicava seu testamento. No 12º Salão Nacional de Arte de 1980 Zahira Souki Cordeiro fez a curadoria de uma exposição que buscava pensar Belo Horizonte ao longo do tempo, realizando montagem do quarto de Olympia para a exposição, indicando a permanência do interesse do meio artístico na sua vida e trajetória (Neves, 2014, p.86). Atualmente, os móveis que compuseram o quarto de Olympia estão sob a guarda do Museu Histórico Abílio Barreto.
A relação entre Olympia e a política foi tema de comentários diversos, inclusive, entre os escritores modernistas mineiros. Associado ao imaginário da sexualidade e da prostituição, o papel de Olympia na cena política belo-horizontina pode ter contribuído para Pedro Nava comentar sobre ela em suas memórias. Entre as décadas de 1920 e 1930 é possível ler em outros jornais, diversas notícias semelhantes à citada acima sobre Olympia (PEREIRA, 2018). Nesse período, o nome dela esteve impresso em notícias variadas, ora como vítima, ora como acusada e, às vezes, prestando socorro a outras vítimas. Em alguns anos seu nome apareceu mais, devido ao processo de transformação das políticas de policiamento da capital mineira. A polícia de costumes era um desejo antigo das elites políticas e policiais mineiras. Mas foi somente em 1928, com a instalação da Delegacia de Fiscalização de Costumes e Jogos, que a guarda civil passou a exercer funções de policiamento mais ostensivo em relação à prostituição e em relação aos estabelecimentos de diversões noturnas, como restaurantes, cafés e bares. Olympia, como era dona de pensões e clubes dançantes, apareceu em alguns desses casos publicizados pela nova imprensa moderna que também nascia naquele mesmo ano em Belo Horizonte.
Finalmente, há uma face de Olympia que, normalmente, é ignorada ou tida como um apêndice: sua veia empresarial voltada ao ramo dos divertimentos noturnos. De fato, sua empresa não aparece no rol das atividades mais nobres, a não ser no coração dos literatos românticos e boêmios. Todavia, suas atividades comerciais estavam registradas pelo poder público. Ou seja, entre todas as atividades que a sociedade belo-horizontina atribuiu à Olympia, de fato, aquela que se sustentou ao longo do tempo, foi a de proprietária/gerente de estabelecimentos comerciais3. Olympia teve uma vida empresarial de sucesso com os seus estabelecimentos que serviam bebidas refinadas como champagne e uísques, além de oferecer espetáculos de música e danças ao vivo. No final da década de 1930, Olympia já era dona do famoso e mitológico Cassino Montanhês, que aparece em obras literárias e na memória coletiva de Belo Horizonte e teve grande sucesso nas décadas de 1940 e 1950. Talvez essa força de Olympia como empresária tenha sido a outra parte da explicação para sua sustentação como força política na capital mineira. Suas atividades econômicas e políticas vistas em conjunto ajudam a compreender as origens dos mitos e das anedotas sobre sua agência pública.
O fato é que Olympia Vasques Garcia, nascida na Galiza (Espanha), marcou a história e a memória dos habitantes da capital mineira, Belo Horizonte. Como vimos, ela nem sempre foi vista com bons olhos, exatamente por sua conexão com a prática da prostituição. Mesmo assim, a “Madame” Olympia deixou sua marca no imaginário político e social da cidade, transitando entre as elites mineiras e internacionais e setores menos abastados da sociedade belo-horizontina. Motivo de atenção por parte de escritores, sua vida já foi mote para personagens literários, peças teatrais e comentários literários diversos. E não é raro que seu nome seja retomado em manifestações culturais que envolvem a prostituição em Belo Horizonte. O que essas experiências têm em comum é que boa parte das bases da memória social sobre Olympia está presente nas narrativas dos jornais da década de 1920 e 1930 e na literatura das décadas de 1970 e 1980 que retroalimentaram aquelas narrativas. Reindagar os mitos da madame Olympia a partir da documentação disponível nos ajuda a reconstruir perguntas historiográficas sobre as relações entre memória e história de Belo Horizonte e a compreender melhor os fios da construção do imaginário sobre prostituição, boemia e literatura belohorizontina.
Notas
[1] “Do arco da velha”, sem autoria, Correio Mineiro em 14/09/1933, p. 8. Todas as citações do jornal são dessa mesma notícia.
[2] Ver FAPM-11-1-Cx.01-Docs.22 e 23
[3]Ver, por exemplo, Guia – n 545 – de Lançamento de Imposto de Indústria e profissão – APCHB – 1926
REFERÊNCIAS
MELO, Juliana F. ; GALVÃO, Ana Maria O. Ler e escrever, ver, ouvir e contar histórias em família: o caso de Pedro Nava (Minas Gerais, início do século XX). Educar em Revista, n. 54, p. 221–240, out. 2014.
NAVA, Pedro. Beira-Mar: memórias 4. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
NEVES, Ana Luiza Teixeira. Os Salões Nacionais de Arte em Belo Horizonte na década de 1980: as especificidades dos salões temáticos. Dissertação (Mestrado em Artes), Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.
PEREIRA, Lucas C. S. de A. “Pobres mulheres”: imaginário social e a prostituição em Belo Horizonte. Métis: história & cultura – v. 17, n. 33, p. 267-291, jan./jun. 2018. Disponível em <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/download/6693/3472>
Créditos da imagem: Autor C. Nunes, cerca de 1920.
Rua da Bahia, região central de Belo Horizonte, representando pessoas e edifícios como cafés e bares, como Bar do Ponto.
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