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Depois da fila
Crônicas, contos e ficções

Depois da fila 

A luz doía nos olhos daquele senhor, que sentado em uma mesa no meio do bar, preferiu ficar de lado para a porta, de lado, mas não de costas, assim evitava o sol mas não o perigo. Tomava cerveja meio quente no copo americano, olhar absorto, pensamentos de natureza desconhecida, no geral parecia bem naquela condição. Havia subitamente melhorado de vida, tinha 600 reais na carteira, recém sacados na Caixa depois de 6 horas na fila. Chegou às nove da manhã no centro da cidade, na agência. Foi atendido pouco antes das 15 horas. Pegou o dinheiro, contou uma vez, depois outra, sorriu, faltava-lhe alguns dentes. Veio direto ao boteco mais próximo, pediu cigarro do paraguai e uma dose de pinga. Sentia-se bem, alegríssimo depois da dose. Quis cerveja, só tinha comido um pão velho com café preto de manhã. Cerveja alimenta, pensou.

No pequeno estabelecimento, típico boteco dos centros urbanos brasileiros, mesas de ferro, cadeiras brancas ou vermelhas, vez ou outra uma amarela, propagandas de cerveja nas paredes com mulheres voluptuosas, cartazes coloridos, mal colados, alguns já velhos. Painel de bebidas destiladas e baratas atrás do balcão. Conhaque, vodka, whisky, catuaba, 3 reais qualquer dose. Estufa de salgados no balcão, coxinha, esfirra, risoles, quibe, muito óleo que alimenta o estômago do pobre. Salsicha e batata em conserva. Sempre tem um trabalhador fazendo dessa sua refeição do dia.

Atrás do balcão estava Iolanda, dona do lugar. Talvez tivesse menos de 40 anos, mas sua aparência indicava vivência de quase 60. Gorda, de usar sutiãs daqueles grandes, pernas fortes, braços e mãos de levantar parede. Camiseta promocional, máscara estampada, feito de tecido retirado de algum vestido velho, sempre posicionada no queixo, com boca e nariz à mostra. Via vídeos no celular ou mandava áudios, entre um atendimento e outro. Toda hora alguém entrava pra comprar um cigarro solto, um maço de eight, uma pinga, um isqueiro barato para os nóias. Se tivesse vendo vídeos, só colocava o telefone no balcão, que continuava a transmissão com o som alto e estridente. Alternava entre músicas e vídeos engraçados, que ela adorava. Vídeos de atropelamentos, de queda em motos de baixa cilindrada, de bêbados, de brigas de vizinhos nas periferias, assaltos. Estudou pouco e trabalhou muito. Apesar da pandemia, andava feliz. Seu boteco ficava na rua de trás da principal agência da Caixa da cidade, e desde o início do pagamento do auxílio emergêncial, destino certo de muitos beneficiários.

A cerveja não aplacou a fome de Seu Zé, que fazia cálculos pra ver quanto ainda tinha. 3 reais a dose de pinga, 3 reais o cigarro, 5 reais a cerveja. Vou comer um quibe desses, pensou.

____ Me vê um quibe desses aí e outra cerveja!! Disse com voz forte e confiante, confiança de quem pode pagar o que pede.

A mulher trouxe o pedido. Encheu o copo, tomou um gole da cerveja agora gelada, comeu. Recobrou as energias, colocou os pensamentos no lugar. Terrível beber de estomâgo vazio, ele pensou. Já era quase 16 horas, viu no Orient prateado com fundo azul, vidro riscado do uso, herança do pai, que adorava aquele relógio. Herdou o hábito de todo dia dar corda no relógio e acertar a hora, como o pai fez muitos anos. Dura muito os Orient, sempre pensava.

Não usava sempre o relógio, tirava no trabalho e guardava na bolsa. Era pedreiro, carpinteiro, ajudante. Antes da pandemia, fazia bicos de ajudante de pedreiro na perifeira. O chefe passava cedo na sua casa, antes das 6, com a belina vermelha. Ia junto com os meninos, tinha experiência, fazia de tudo, mas os 65 anos não ajudavam no trabalho. Orientava e ajudava, os meninos faziam mais. Com a pandemia, as obras diminuíram, na periferia, reformas são parte do cotidiano das casas mal construídas, sem projeto, sem engenheiro e sem alvará. Fazer colunas, lajes e escadas minúsculas, uma casa em cima da outra, especialidades do seu Zé. Teve que parar. Quando as obras voltaram, Alexandre, o mestre, dono da Belina, disse pra ele: “olha seu Zé, melhor o senhor não ir mais com a gente não viu, esse vírus aí, complicado.. e otra, tem pouca obra, dispensei um dos meninos também, fica com Deus aí”. Foi assim, por áudio mesmo. Sem resposta.

Não tinha aposentadoria, embora tivesse tempo suficiente de trabalho. Teve carteira assinada, mas nem sempre assinada. Não existe registro pra bico, ajudas aqui e e ali. Sobreviveu, ocupou terreno, levantou a casinha que vivia com a mulher. Colocou 2 filhos no mundo, um preso. Outro é casado, 2 netos. Nora é doméstica da classe média, filho motorista do Mercado Livre. Vivem no andar de cima da casa do pai, na laje reforçada. Evangélico, bom menino. Sem creche na pandemia, os netos aos cuidados da vó. A geladeira e o armário são os mesmos para todos. Solidariedade mesmo é entre os pobres, na família, na rua, no beco. Só nós sabemos o quanto dói essa vida.

Iam vivendo, como sempre, vive-se e sobrevive-se. Seu Zé agorava pensava que, com os 600 reais, poderia fazer compra, arroz e feijão, macarrão, óleo, uma bolachinha para os netos, café pra mulher, que não fica sem. Ela não conseguiu receber o auxílio, sempre a mesma mensagem na tela do celular da nora: benefício em análise. Logo ela que quase nunca teve registro em carteira, nem FGTS, nem PIS, nem nada. Quem entende disso. As necessidades imperam, impõem, já ia velha, cansada, dona Geralda, nome da vó.

Seu Zé bebia a cerveja e pensava nisso, nas injustiças. Viveu muitas delas, sempre pensando nas razões de Deus, se é que Deus toma partido nessas questões. Como bom nordestino tinha fé em Deus, devoção de santo, rezas. Mas em São Paulo parece que Deus é uma nota de 100, como ouvia no rap tocado na Belina do Alexandre, pelas periferias. Tanta gente rica, prédios e apartamentos, empresas, gente de terno, uma riqueza de dar gosto, pensava. Será que havia razão nisso tudo, ué, gente rica e pobre, pouco rico e muito pobre, sempre pensava era nisso. Procurava entender, Deus deve ter razão nesse procedimento, nessa injustiça da vida. Sei não, blasfêmia pensar assim de Deus. Pensar que Deus não é justo.

Enquanto divagava, muita gente passava na calçada, apressada, com medo, máscaras novas e velhas, muitas surradas. Gente diferente, diversa mesmo, cada uma na sua seara, com a sua realidade. Em comum, além do medo, a cara fechada, de poucos amigos, uma feição de hostilidade, já era assim, mas na pandemia, piorou. Sempre apressados, não olham pro lado, muito menos nos olhos uns dos outros. Uma mulher, talvez ainda uma menina, passava e olhou dentro do bar. Voltou o passo, parou, ficou olhando seu Zé. Ele não notou, observava de longe o celular da dona do bar, que nesse momento assistia um vídeo de política, parecia que falando mal dos políticos, algo assim.

A mulher contunuou ali, olhando o prato com um pedaço do quibe, o copo de cerveja meio cheio, o olhar carinhoso do seu Zé. Seu nome era Mônica, 29 anos, 3 filhos, há 3 meses morando na rua. Deixou os filhos com a mais velha, de 12 anos, Clarinha, que cuidava dos menores, de 5 e 4 anos, Danilo e Luana. Mônica era diarista, pagava aluguel no barraco, 600 reais. Tirava 100, 150 por faxina. Viviam assim, comida e teto, escola e merenda, uniformes da escola, sempre foram levando. O pai das crianças ajudava, gostava das crianças, era bom. Se perdeu no crack, sumiu no mundo, ela sozinha com os meninos. Vida dura, todos dormindo na mesma cama, no barraco apertado, de alvenaria. Geladeira, televisão, cômoda. Perderam tudo, só ficaram com as roupas, mochilas escolares da prefeitura, uma mala de rodinha achada no lixo. Quando a situação apertou de vez, teve que vender o celular, as clientes voltaram mas sem whatsapp como ia fazer. Foram pra rua.

Já são 3 meses vivendo na rua com 3 crianças. Primeiros dias estavam perdidos, foram para o centro. Acharam conforto nas sopas doadas, nos cobertores grosseiros. As crianças menores brincavam na praça, se divertiam, pareciam não entender aquilo, gostavam de sair, ir no centro, ver lojas. Mas na primeira noite, ainda antes de escurecer, Danilo falou pra mãe: vamos para casa, já cansei de brincar. A mãe chorou, desespero. A mais velha, menina esperta, inteligente e indignada aos 12 anos, consolou a mãe, abraçou os menores mas não chorou. Dormiram embaixo da marquise, barraca feita com lençois e cobertores. Pacote de bolacha de maizena e leite de caixinha doados. Foram levando, aprendendo a sobreviver na selva urbana. Um dia no abrigo, outro na barraca doada. Filas para o sopão, outro dia pra marmita, a mais velha fazia os corres enquanto a mãe distraia os menores.

Naquele dia a mãe saiu pra buscar algum dinheiro, alimentos. Andava pela cidade, pedia dinheiro aqui e ali, levava nãos, ganhava moedas, às vezes um trocado. Tinha já uns 14 reais, um pouco mais, não parou pra contar. No sinal via os carros, famílias rindo, conversando no carro, olhando o celular. A maioria nem abria o vidro, não olhava do lado, indiferença é a regra. Nesses momentos, lembrava das noites no barraco, Clarinha fazendo tarefa na mesinha, crianças vendo desenho na cama, colchão surrado com lençóis limpos. Cansada da faxina, cozinhava feijão, fritava linguiça, comiam, davam risadas, falavam da escola. Os mais novos mal lembravam do pai, Clarinha mantinha o foco nas tarefas, talvez fossem felizes, todos juntos na mesma cama.

Seu Zé percebeu a mulher, ficou olhando pra ela, nos olhos e na alma. Ela não desviou os olhos, o encarou firmente, sem saber o porquê. Ficaram assim, entre olhares, alguns segundos, vendo a alma um do outro. De repente, ela voltou a si, olhou pra baixo, ajeitou a máscara suja, fez que ia embora, deu alguns passos e ouviu:

____ Oh menina! Quer alguma coisa? Seu Zé falou alto, pra se fazer ouvir por causa do barulho da rua. Ela ficou atônita, sem entender por que ele falou com ela. Fez que não com a cabeça, mas não saiu dali.

____Vem sentar aqui, ele disse, você parece cansada.

Ela pensou por alguns segundos, alguma coisa o atraía naquele senhor negro, de sorriso largo, bom coração. Entrou no bar, parou na frente do homem, mãos juntas, envergonhada.

____ Senta aí menina, tô vendo que você num tá bem. Precisa de alguma coisa?

Ela ouviu, sorriu, pensou um pouco, já fazia 2 horas que estava em pé, andando por aí em busca da sobrevivência. Puxou a cadeira e se sentou. Colocou o rosto entre as mãos, cabeça baixa, esgotada.

____ Desculpa viu senhor, mas tá difícil essa vida. Num sei porque parei aqui, desculpa, num queria, cansei, andei demais, esse sol, num consigo respirar direito de máscara, essa confusão, a gente num para nunca parece. Vi o senhor aqui, tão calmo, parecia meu Avô Juliano, parei.

____ Não tem problema não, fica aí sussegada. Num tô fazendo nada, tomando uma pra ir embora. Quer um copo?

____ Num bebo não senhor, e otra, meus fios estão me esperando. Já vou. Vo só discansa um poco aqui.

____ Então discansa e faz compania pra mim, já tô aqui sozinho faz tempo. Se quiser, come alguma coisa.

____ Num tenho dinheiro, ela respondeu e completou, o que tenho vo compra alguma coisa pros meninos.

____ Eu pago um salgado pra você menina. Mas me conta sua história.

A dona do bar trouxe risoles, pingando óleo, saboroso, cheio de queijo derretendo, daqueles que enche a barriga. Enquanto comia, a mulher lhe contou sua história, a mais recente e mais trágica, os últimos seis meses. Tirou a máscara sem cerimômia, afinal, o vírus parece ser o menor dos perigos. Seu Zé não ligou, estava bebendo, não tinha medo. Poucos parecem temer o vírus quando a fome é a mais imediata das preocupações. Falou quase tudo, o que se permitia dizer, o que a vergonha deixava sair. Acabou perguntando:

____ O que acha dessa vida? Qual seu nome?

____ Zé, me chamam assim. Mas me chamo José Francisco Gomes. O que acho da vida? Da sua vida?

____ Não da minha vida, da vida em geral, desse mundo, dessas coisas.

____ Num sei minha filha, queria saber mais. Se Deus tem razão nisso, motivo pra esse sofrimento. Sempre fui pobre, vi a vida assim, achando normal isso, sempre foi assim pra mim. Num sei viu.. tomou um gole da cerveja, acendeu um cigarro e continuou:

____ Lá na Bahia era todo mundo pobre, a gente morava tudo em casa de barro, telhado de folha, poço seco, terra seca demais. Aqui é outra coisa, num conhecia riqueza antes de vir pra cá, aqui eu vi e demais. No começo num pensava nisso, trabaiava, achava que era isso, trabaiando a gente conseguia. Trabalhei, crei filho, num vi riqueza, só dos outros. Pensava sempre em Deus, nas razões de Deus, achava que era o certo, talvez, vontade de Deus né. Hoje num sei, esse tempo todo sem trabalhar em casa, com a muié, os neto, só penso nas razões de Deus. Esse vírus aí, é Deus né, num sei.

____ Num sei não seu Zé, nunca pensei em Deus. Deus? Eu na rua, com 3 filhos, sempre trabalhei, lutei por eles, meu marido sumido, pensar em Deus é desaforo. Só queria trabalhar, ter um teto, escola pros meninos, Deus cuida disso? Sei não seu Zé, que Deus me perdoe, mas perdi a pouca fé que tinha. Ia na Igreja, só pediam dinheiro, parei. Queria entender, mereço esse sofrimento seu Zé? Meus filhos, na calçada, minha mais velha cuidando, eu pedindo dinheiro pros outros no sinal, tanta gente ruim, nem abrem o vidro, nem olham na cara da gente, Deus?

____ É minha fia, Deus num sei viu. Talvez ele num mande em nada. Tá na mão dos políticos, deve ser. Eu não sei, votei no Lula, sempre no Lula, construí casa na época do Lula, miorou. Mas meus filhos num estudaro, quase nada. Um deles tá preso, ficou rico acho, aparecia de carrão, comprava as coisas pra casa, sumia, voltava, acabo preso. Num sei dele mais. As razões, quem sabe as razões. Ser pobre e ter o que comer, você estudou?

____ Num estudei muito. Estudava, parei pra ajudar a mãe nas faxina. Gostava, ia bem na matemática, portuguêis. Parei no primeiro ano, ia bem, gostava de escola. Minha mais velha gosta da escola, mas num foi, desde a pandemia. Estuda diz que é bom né? Ela gosta, vive com os livro, acho na rua levo pra ela, ela gosta. Faz conta de cabeça, fala mal da coisas, do ricos passando de carro, acho que foi por causa dos estudo dela, hoje é diferente, ficam criticando, eu nunca tive tempo pra isso, pensava na roupa, nas limpeza, na casa das patroas, casas grandes, gente vendo televisão, abrindo a geladeira toda hora, deixando copo e prato na mesa pra eu lavar.

____ É minha fia, difícil entender as razões, os motivos, essa situação toda assim, pobreza. Aqui tem riqueza, mas tem pobreza dimais, veja só, uma moça que nem você, aí, desamparada… Seu Zé falou isso pausadamente, reflexivamente, acendendo outro cigarro, dando tragos longos, profundos.

Mônica, que já havia acabado de comer, sentia-se um pouco melhor, ao menos fisicamente. As mãos, que vinham sujas, estavam agora engorduradas, limpou nas calças. Mãos cansadas, unhas sujas, mãos antes de trabalho, agora de desamparo e desalento. Enquanto seu Zé fumava, pensativo, ela olhava pra baixo, pensava nos meninos, na força da Clarinha. Sentimentos, tinha muitos mas nem sempre conseguia compreendê-los, entender realmente o que significavam. Parece que a pobreza nos tira o discernimento das coisas mais básicas da existência. Sentia-se muito triste, talvez sempre desde a situação de rua, o tempo todo. As poucas alegrias, uma boa noite no abrigo, uma sopa quente, ver os menores brincando, duravam pouco. Parece que a tristeza toma conta da gente, e já não se percebe quando ela se ausenta, sempre igual. Olhar distante, profundo, pensamentos íntimos. Levantou a cabeça e perguntou:

____Seu Zé, o sinhor conhece, sabe, já foi feliz? Sabe o que é felicidade?

____Felicidade? Perguntou espantado. E completou:

____Felicidade? Isso é coisa de televisão, eu acho, num sei, mas acho que deve ser. Só em novela a gente vê gente feliz né, tudo indo bem na vida, vida amorosa, essas coisas. Num penso nisso não, acho que a gente tem nossas alegrias, vez ou outra. Como hoje, veja só, eu tava duro, vim pra cá, meu fio deu carona no furgão, fiquei ali naquela fila, quase caindo em pé, muita conversa jogada fora, tava mal. Agora, tô com esse dinhero, é pouco, mas já comi, bebi, discansei, vou comprar as coisas pra casa, café pra Geralda, bolacha pros netos, alegrias, é isso e só, depois acaba.

Mônica ouviu pensativa, lembrava do Marcos, o pai das crianças. Era um cara bom, trabalhador, tratava ela bem, amoroso, com carinhos. Se conheceram no ônibus, bem cedo, antes das 6 já estavam os dois, mesma linha, todo dia cedo. Se olhavam, namoraram, foram morar juntos. Eram alegres, tomavam cerveja, riam, faziam amor. Veio a Clarinha, felicidade, amor mesmo, verdadeiro. Eram pobres, mas viviam, tinham emprego, comida na mesa, outros filhos. Ele tinha a bebida, gostava, começou a sair com os vizinhos, voltava bêbado, dormia direto, não batia nas crianças, mas se afastava. Um dia, dia do pagamento, não chegou na hora de costume. Sumiu, apareceu 3 dias depois, sujo, maltrapilho, sem os sapatos. Não explicou, gastou tudo, ficaram sem dinheiro pro aluguel aquele mês. Mônica segurou as contas, fez faxina até tarde, foram levando. Um dia ele saiu pra trabalhar, dia do pagamento, não voltou mais. Foi crack, diziam, ela não sabia nada dessas coisas, cansou da família, de mim, ela pensava. De repente disse:

____ É seu Zé, talvez o senhor tenha razão. Felicidade é coisa de novela mesmo. Vou embora, brigada seu Zé, comi, tô melhor, as crianças tão na praça, preciso ir, a Clarinha, coitada, responsável, cuida deles, preciso ir.

Seu Zé percebeu os pensamentos daquela menina, mulher feita, 3 filhos, vida de trabalho, mulher arrimo de família, pra ele, uma menina. Era inteligente o homem, pensava profundamente, sabedoria dos anos, da vida, da viagem em carroceria de caminhão, ainda menino, muitos dias. Dos pesos nas costas, das conversas em boteco, em porta de igreja, em filas.

____ Você tá perdida minha fia. Vai pra onde assim, agora? Vamos pra minha casa, você, seus meninos, te levo, vocês ficam lá, tomam banho, te ponho no quartinho, se ajeita, arruma trabaio. Vamos? Geralda é boa demais, cuida de todos, vai cuidar de vocês também, cuida de mim, que não sou fácil. A gente procura seu marido, dá jeito nele, recomeço, pode ser?

Mônica ouviu o convite atônita, espantada, se levantou rápido, encostou a cadeira na mesa, com as duas mãos, nervosamente. Sentiu pavor, medo, espanto diante do absurdo daquele convite. Em 3 meses na rua, só recebeu solidariedade real de alguns poucos, a maioria moradores da rua, pessoal dos abrigos, das sopas.

____ Não, não seu Zé, vo indo, num ti conheço, to perdida sim, disculpa, vo imbora.. Disse se afastando de costas, ainda olhando para o Seu Zé na esperança de receber um reforço do convite, um apelo pra que se sente novamente. Seu Zé estava tranquilo, impassível, a olhava nos olhos, sereno, olhar de pai e de avô.

____ Oia minha fia, senta aí, a gente conversa mais, te explico, só faz 15 minutos que você tá aqui, suas crianças não vão sumir da praça, sussega aí, conversando, quem sabe, você entende.

Ela parou o recuo ouvindo as palavras de seu Zé, olhava nos olhos dele, olhou pra ver a dona do Bar, que riu alto de um dos seus vídeos de som estridente, briga de família era o que assistia. Pensava no porque tinha parado ali, encarando aquele homem, que lembrava seu Avô Juliano. Será que foi Deus que colocou esse homem aqui, no meu caminho, homem bom, vovozinho. Pobre e bom, querendo ajudar a gente? Esperanças, lembrou do que Clarinha disse outro dia “Mãe, esses rico não ajuda ninguém, esses branco filho da puta, tenho raiva deles”. A menina vinha numa revolta, num ódio, era a rua, Mônica pensava.

____ Num sei Zé, to tão sem esperança, di tudo.

____ Eu sei minha fia, mas senta aí, um poco só, vou te contar uma história, depois você vai embora, busca as criança, eu espero aqui, mas escuta antes.

Ela voltou pra mais perto, puxou a cadeira, sentou, arrumou o cabelo, 3 dias sem lavar, lembrou da máscara, colocou de volta, pensou nele, em protegê-lo do vírus. A dona do bar seguia indiferente, vendo seus vídeos, rindo alto, vendendo cigarro solto pros nóias que entravam e saiam a todo momento. Parecia muito bem aquela mulher, camiseta branca, logotipo de empresa, suja na altura das mãos. Bem alimentada, colesterol alto, vida amorosa intensa, já sustentou amante, namorados, ex-maridos. O bar foi herança de um deles, que infartou. Não tinha filhos, gostava dos forrós, da vida no bar, dos bêbados. Dava conselhos pros nóias, que a chamavam de tia. Parecia não se importar, sempre alegre, rindo, mandando áudios. Era dali, daquela cidade, daquela vida urbana, fria, distante do humano. Perdeu o pai cedo, aos 4 anos. A mãe aos 15, quando se casou pela primeira vez. Coração duro, impassível, só sofria por amor e pouco ainda. Realmente não se importava. Era sozinha no mundo, sem família, só os amantes, as amigas do forró, algumas da vida. Tinha amigo malandro, bandido mesmo, que às vezes pedia conselho, dinheiro emprestado pra sumir, gostava deles, nunca viu mal nisso, em ser ladrão, traficante, nóia, nada de mais, não existe certo e errado, só a vida mesmo.

____ Tá bom seu Zé, eu escuto, to cansada ainda pra falar a verdade. Seu Zé pediu mais uma pinga, a terceira e última, prometeu pra si mesmo. Traz a conta, completou quando Iolanda lhe serviu a dose.

____ Olha menina, você é nova ainda, num intendeu ainda as coisa. A gente, nesse mundo, parece que a gente tá sozinho né, parece, parece e é. Mas muita gente cruza com a gente por aí, amigos, conhecidos, colegas, gente assim, que conhece da rua. Igual eu, que tô aqui agora querendo ajudar vocês. Por que? Você deve di tá perguntando?

____ Sim seu Zé, porque? É Deus que ti colocou aqui tomando cerveja e pinga, pra mi ajudá? Eu e meios fios?

____ Num sei menina, das razões de Deus eu penso sempre, sempre penso, mas num sei, num sei se Ele ajeita as coisa assim, como hoje, pode ser. Num sei se é. Eu, já me ajudaro dimais, muitos, muitas vezes sabe. Já ganhei lugar pra dormir, di comê, di bebe, trabalho, muitas vezes, dinheiro não, poucas vezes me deram. Mas já deram isso, ajudas, eu, meus filhos, Geralda ajuda dimais, ela que nunca ajudaro, o que ela diz. Por causa disso, tô aqui, tenho pouco, casinha minha, num tá terminada, meu fio termino a dele, em cima da minha, ganha mais, tem os menino, evangélico ele, num bebe e nem fuma. Eles ajuda muita gente, os crente, nem sei como, tem pastor rico aí né. Deus, será as razões de Deus, os branco ser rico, nóis pobre, esses pastor tudo branquinho, bem alimentado, num sei fia, razões.

____ Clarinha fala que é da escravidão isso tudo aí, heranças, a gente era escravo, continuamo sendo, acho, ela diz isso aí, professor dela falou, quando ia na escola..

____ Deve ser fia, pode ser, outras razões né, dos homem. Já vi sermão na igreja do meu fio, às vezes vamo, pra agradar o menino, que é bom pra gente, aprendeu a ser crente com a Mariana, muié dele, menina boa dimais, a gente vai né, eu num gosto, Geralda também não, mas a gente vai, ia, às vezes. Pastor falava lá, que Deus ama todos iguais, que Jesuis era contra a escravidão, contra os rico, os Romano. Num sei se era mesmo, pode ser, mas desde aqueles tempos lá, de Abrãoo, Isac, esse povo, desde lá só tem é isso, pobreza, escravidão, dos negros, irmãos nosso, da África, você não, é branca.

Mônica interrompeu a fala bruscamente, indignada.

____ Eu branca, num so não, morena, parda né, cabelo liso, branca num sou, num me vejo assim, num gosto de branco..

____ Pode ser fia, pode ser. Eu num sô branco, veja só, preto. Gosto assim, escravidão é coisa de branco, mas tem branco pobre, que tá ruim, tá mal, na rua vejo muitos, mas tem mais preto, eu vejo. Pobreza num tem é cor, mas em nóis ela pega mais eu acho, vejo lá, na comunidade, tem pouco branco. Mas tem, razões disso? São os homi, culpa nossa isso aí, que num reclama, num fais nada, fica vivendo, obedeci, sempre fui assim, mas humilhação num guento, largo a colher e vou embora, fiz isso já, umas 3 veis, Geralda ficava brava “Perdeu o emprego de novo Zé por causa dessas bobage”. Discordo dela, mas num falo, ela que manda né, humilhação num guento, povo é ruim dimais, patrão bom, nunca tive, tudo humilha a gente, nem todos, a maioria né. Os colega não, fica quieto, mas fica do lado da gente, se revolta, consola, mas você vai, num leva o desaforo pra casa, eles ficam lá, aceitando, eu não, larguei tudo. Aprendi, é tudo com nóis, essas razões, é coisa nossa, num é de Deus não. Deus dá só o coração pra gente, o uso é nosso, já me ajudaro dimais nessa vida menina, deixa eu ajudá vocês agora, deixa?

Mônica ouvia com atenção, tentando entender aquelas palavras e ao mesmo tempo pensar se deveria ou não aceitar aquela ajuda, demoroda mas que enfim tinha chego. As razões, pode ser, num fui revoltada, to aqui, ele tem razão, a gente aceita tudo e num reclama de nada, veja só, onde chegamos. Aceitar, acho que devo sim, é uma boa, essa chance. Bêbado, isso complica, ela pensou. Se ele tiver bêbado e inventando isso? Queria mesmo era entender, nunca fui de beber, só cerveja com o Marcos. Como será que estão as crianças? Ia ser bom pra elas, uma banho quente, uma cama, eles precisam, andam sempre cansados, sono. Cansados do dia, da noite, de ficar em pé, da sujeira, de sentir fome. Clarinha não, sempre ativa, indginada, com raiva. Pensou que ela ia gostar desse jeito do seu Zé, de questionar, de querer saber. A gente num sei, se conforma, num entende, parece que num vê as coisas como são. Ia via, sempre vi, mas acho que num entendia, achava que era assim. Na rua, entendi, um pouco, as coisas. A gente tá que nem sei, jogado, sem nada, pra lá e pra cá, sem rumo. Todo mundo vivendo sua vida, namorando, andando por aí, comendo nas calçadas, sem máscara. A gente passa, só olha, a gente entende, sente, num sei o que, que dói, mas num dói no corpo, dói na gente mesmo. Tem olhos tão bom esse senhorzinho, olhos de bondade, pessoa boa, sofrida. Esse olhar que é único, profundo, de sofrimento, conhecimento e bondade, vida longa.

A dona do bar, Iolanda, trouxe a conta. 33 reais. Escreveu num papel, quadradinho. Jogou na mesa. Seu Zé conferiu, gostou. Tirou um maço do bolso, puxou uma nota de 50 e entregou. Iolanda ia saindo, mas Mônica disse bruscamente:

____ To na rua faz 3 meses com 3 crianças pequenas. Seu Zé aqui quer me levar pra casa dele!! Vo ou num vo? A mulher virou-se pra ela enquanto ouvia, olhou bem os dois, de cima em baixo, ainda não havia notado a conversa deles, achou que se conheciam.

____ Ué, mas você num conhece ele não? Ela disse, de forma bem grosseira.

____ Num sei, conheci agora, mas parece mais, Mônica respondeu. Seu Zé retrucou:

____ Ela num conhecia, mas agora conhece. To meio bêbado, num quero fazer mal proce menina. Vamo, eu vou te ajudar, de verdade.

Iolanda parecia que ia entendendo a situação, mas num deu bola, num achou nada de mais aquilo. Saindo pra buscar troco, foi falando:

____ Menina, vai sim, você tem outra opção por acaso?

Ela não tinha, realmente, nessa hora do dia, já não chegaria a tempo no abrigo de costume, o mais próximo. Tinha que chegar bem antes das 17 horas, ficar na fila, pra num perder vaga. Iam ficar na rua hoje, com os 14 reais. Pensou no maço que viu na mão do seu Zé, sem maldade. Pensou em comida, arroz e feijão, feito em casa, mão de mãe e Vó. As crianças vão ficar doidas de alegria. Vou.

____ Eu vo seu Zé, nem sei que dizer. Iolanda trouxe o troco e com frieza disse.

____ Vai menina, se o véio vai ti ajuda, aproveita. Dá pra ve na sua cara que a coisa ta feia, disse jogando as notas na mesa, virando-se pra voltar ao balcão, pra ver uma mensagem que acabava de chegar. 17 reais em notas velhas. Era assim, sem formalidades. Pouco importava-se, os outros, nada a ver. Não tenho nada com isso.

____ Bom, então se você vai, vamos, já paguei, tá na hora, dá tempo di passa no mercadinho lá perto de casa, disse seu Zé, assim, sem cerimônia, como se levar uma família inteira pra casa, assim, do nada, nessa situação, foi simples, normal, nada de mais. Talvez fosse pra ele, que já ajudou e foi ajudado tantas e tantas vezes.

____ Mas preciso pegar as crianças na praça, é perto, 4 quadras.

Os dois foram levantando, ajeitando as máscaras, a duas velhas, costuradas a mão. Seu Zé apalpava os bolsos, a conferir os volumes, o cigarro, o maço de dinheiro, o isqueiro, a carteira com os documentos surrados. Mônica ficou meio eufórica, desconcertada, não acreditava que ia sair da rua, ali, de repente, naquela hora. Iam saindo, ela rápida, ele vindo átras, meio lento, passos confusos com a bebida. Pararam na porta, limiar da rua, do caos urbano, da vida que segue no meio da pandemia. Ela colocou a mão no braço dele, depois apertou forte, ajudou a descer os 2 degraus. Ele gostou, se sentiu cuidado, com carinho de filha. Fez por impulso, não entendeu na hora, só quis ajudar. Na calçada eles pararam, se entrelhoram, olharam ao redor em procura de um lugar pra seu Zé esperar. Mônica disse:

_____ Senta ali no ponto Seu Zé, descansa um pouco, vou lá pegar as crianças, volto rápido.

_____ Vai com Deus minha filha, eu espero.

Ela foi, andando rápido, olhando pra trás. Ele ficou ali, esperando.

 

 

 


Créditos da imagem: Fabiano Rocha – Agência O Globo

 

 

 


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