Amor (?)

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Vermelho. Cor – obviamente – bonita. Pensava nisso enquanto observava o sangue dele no chão, miúdos riachos correndo vagarosamente pelos ladrilhos, tomando conta do chão da cozinha. Sem desespero, eu chorava. Profundamente triste, mas sereno: havia matado meu filho por amor. Meu único filho, morto, ali no chão. O choro vinha calmo e ininterrupto, não teve berreiro. Muito mais do que a perda, me incomodava a sensação de desperdício: dezenove anos de cuidados, carinhos, brigas, reconciliações, festas de escola e uma piscina de etcéteras. A sensação de desperdício também me incomodava, meu filho não era um investimento na bolsa, produto de especulação, um projeto de trabalho. A sensação desprezava a razão e não ia embora..

Antes de matá-lo, nós discutimos. Ele me disse, aos berros, que ele era assim e nada iria mudá-lo, que eu devia apoiá-lo ao invés de repreendê-lo e que não havia nada que eu pudesse fazer a respeito,. Adolescente, rebelde, cheio de vida e, claro, de prepotência. Pois eu fiz, meu filho, fiz por te amar demais. O mundo não está preparado para lidar com gente como você, você não vê nos jornais o que eles fazem todos os dias. O mundo não é a casa do pai. Ah, meu menino … Certamente vão transformar o maior ato de amor da minha vida em um crime de ódio. Serei julgado e condenado inúmeras vezes, por inúmeras pessoas.

O mundo também é cruel com pessoas como eu, meu garoto. O amor tem disso, é complexo demais e desgraçadamente complicado. O ódio não. O ódio é simples e objetivo. Pro meu azar, trago só amor comigo. Em tempos como esses, amar é um ato revolucionário, requer coragem.  Fiz um filho por amor e o matei com amor do mesmo. Lidarei com todos dedos em riste por amor a você. Os dedos em riste que te apontavam, meu moleque, se virarão contra mim. Ao te abreviar a vida, te privei da tortura. Preferi te ver morto, assim, de uma vez, ao ter que assistir passar pelo linchamento dessa gente miúda e hipócrita.

Se sua mãe fosse viva, certamente me entenderia, por te amar como eu te amo. Mas ela se foi, meu menino, e nos deixou, dois adolescentes, para que amadurecêssemos juntos … e, até certo ponto, amadurecemos. Só que filho meu não é gado. Não vai viver a despeito de tudo, sendo exposto de peito aberto aos balaços desse mundo podre. Não é. Comer, cagar e tomar porrada? Meu filho não.

 

 

 


Créditos na imagem: Keyhole (2016) Oil painting by Elif Duman.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Yuri Moura

Yuri é baiano, filho de Maria Nadir e não gosta de escrever sobre si mesmo.

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