A queda do céu: a mensagem se repete

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Estamos acompanhando nas Humanidades um movimento de caráter nacional e mundial, no qual  há um  direcionamento formal e teórico desde a  segunda metade do século XX: uma ampla circulação das teorias críticas pós-modernas e pós coloniais, que buscam colocar em protagonismo nos campos de conhecimento acadêmicos narrativas literárias e historiográficas sobre sujeitos hispânicos, africanos, indo-americanos e outros.

Esse processo tem estimulado um reexame dos pressupostos românticos e modernistas que estenotiparam, infantilizaram e/ou demonizaram os sujeitos indígenas na escrita “oficial” da História. Ponto decisivo dessa revisão crítica é o crescendo da quantidade de obras historiográficas e literárias, produzidas pelos próprios indígenas, nas quais se rompe com os pressupostos citados acima, alternando a representação desses povos na escrita da história.

A riqueza literária e pedagógica das narrativas indígenas é imensa e merece atenção do público acadêmico assim como entre os demais leitores. Entretanto, esse processo do sujeito indígena como o lócus da sua narrativa, ocorre de maneira gradual, pois por mais que eles tenham produzido um material de alta qualidade, há um embate no núcleo acadêmico em legitimar e priorizar tais narrativas, em resposta aos anos de permanência dessa categoria de conhecimento ser sustentada pelos pesquisadores que não são pertencentes a um grupo étnico.

Considerando as obras literárias e historiográficas produzidas pelos sujeitos indígenas como imprescindíveis para o presente e para a posterioridade, como a mensagem dos povos originários podem auxiliar na nossa vida de forma individual e coletiva? Qual ensinamento afinal, esses escritos querem passar para nós, brancos de cor e espírito?

Na última segunda-feira (06\03\2020), em entrevista publicada no jornal virtual: OGLOBO com o ambientalista e intelectual Ailton Krenak, o líder indígena deixa uma mensagem para todos os cidadãos até então não mencionadas por nenhum representante da área da saúde, acadêmica ou religiosa, sobre o problema global enfrentado: o COVID-19.

A mensagem central da entrevista cedida pelo escritor, líder político e ambientalista, é a importância de aproveitar o silêncio que tem assolado as cidades com a quarentena para refletir e mudar nossos hábitos como seres humanos. Nas palavras de Krenak esse silêncio também emana vida: “Pássaros estão voltando a locais de onde haviam desaparecido. A água suja está se tornando limpa”.[1] As palavras de Krenak na entrevista podem soar duras com os cidadãos tendo em vista os efeitos gerados pela epidemia: pessoas doentes, comércio paralisado e as mortes crescentes. Entretanto, em sua defesa, ele replica que a humanidade vem sendo cruel com o planeta há muitos anos.

Segundo Krenak a vida continua seguindo de acordo com as leis da natureza, cita o exemplo de que “o melão-de-são-caetano” cresce normalmente ao lado de sua casa. Observa ainda que o gera descontentamento em grande parte da população é a estagnação do consumismo, resultado da interrupção do funcionamento de lojas. Krenak defende que é a chance da humanidade aprender com o que está acontecendo, usar esse tempo que não estamos consumindo em lojas, ou embriagando-se em bares, para escutar as outras sonoridades que habitam ao nosso redor, perceber a vida natural das coisas.

Neste estado que tanto andamos a reclamar desejando fortemente voltar a rotina do trabalho, do estudo, a ocupar as ruas, quando esse dia chegar não poderemos nos comportar da mesma maneira: “Voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando.” Finalizando a entrevista, Krenak diz para aproveitarmos esse tempo para nos conectar à consciência do estado natural das coisas, para quando a quarentena passar e voltarmos às tarefas que nos destinamos a cumprir, nos relacionarmos com o ambiente que ocupamos e com o outro de maneira alternada.

Como essa reportagem, há uma teia infinita de conteúdos que nos conduzem às cosmovisões dos sujeitos indígenas. Mais do que nunca devemos beber dessas fontes para compreender o que estamos passando a partir de uma outra perspectiva. Todos recebemos orientações de como se manter em meio a quarentena: como ser produtivo em casa, como continuar ganhando dinheiro, como não ficarmos entediados. Entretanto todas essas recomendações seguem à lógica produtiva do mercado, não estimulando uma autocrítica às nossas ações diante do mundo.

Publicada originalmente em francês no ano de 2010 na coleção “Terre Humaine”, sendo traduzida e publicada  pela Companhia das Letras, a obra “A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami”, escrita pelo etnógrafo Bruce Albert ao lado do escritor, xamã e líder político indígena, Davi Kopenawa Yanomami, é um exemplo claro de uma literatura indígena que precisa ser incorporada no meio acadêmico assim como em toda a esfera de conhecimento universal. Como escrito no prefacio da obra “O recado da mata” por Eduardo Viveiros de Castro: “A obra é escrita para os brancos os ditos brasileiros oficiais, legítimos, que falam português gostam de samba, novela e futebol”. (VIVEIROS, 2010, p.27)

A obra é intitulada “A queda do céu”, pois se trata da predição xamânica de um “apocalipse ambiental”, seguindo a lógica de que inebriados pelo mundo da moeda e da mercadoria, não conseguimos ver a destruição gradual do meio ambiente, vivendo em um universo cujo o céu está em chamas. Exatamente por tratar de um tema caro a todos: nossa permanência na Terra, a obra deve ser compreendida como mencionado por Viveiros de Castro com o “intuito de ser um divisor de águas dentre a situação social e política entre os índios e não índios do continente” (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p.34)

A narrativa ganha vida a partir de um “pacto etnográfico” e um “pacto xamânico” entre Bruce Albert que registra da maneira mais fiel possível as experiencias vividas durante anos ao lado dos Kopenawa e das histórias e experiências vivenciadas pelo xamã Davi. Subdivido em três capítulos, no primeiro “Devir outro”, fornece os princípios cosmológicos a partir dos quais os Yanomami se relacionam com a Terra e da importância dos códigos das palavras que são passadas de geração em geração.

Nesse primeiro capítulo se faz um balanço rico de detalhes no que tange à pluralidade que envolve a cultura ancestral dos povos Yanomamis no qual existiam desde o que eles chamam na obra de “primeiro tempo”, em que viviam antes da invasão europeia, e se fazia prevalente no interior da floresta as palavras dos espíritos que eles chamam de xapiri, e de Omama, o criado daquele mundo.

Nesse primeiro tempo, os xapiris eram vistos em tudo aquilo que havia vida na floresta: na fauna e flora. Graças a esses espíritos o equilíbrio ocorria no seio da floresta. A mensagem de Davi e dos demais Kopenawas ao longo desse capítulo é mostrar que nessa cultura ancestral, o que mantinha a vida e o equilíbrio da floresta era a dinâmica invisível e mítica das coisas, essa poderia ser considerada a verdadeira tecnologia desses povos.

O segundo capítulo “A fumaça do metal”, apresenta uma demonstração dos processos destrutivos em resposta ao avanço industrial e tecnológico que resultam em um forte impacto ambiental nas florestas e também nas cidades, a partir das experiências que o próprio Davi Kopenawa presenciara ao redor do mundo, nas suas tantas viagens para congressos nacionais e internacionais. O fato é que esse capítulo é como um catálogo de tragédias naturais que se repetem, em maior ou menor grau, em lugares diferentes do país desde a invasão europeia até os dias atuais.

No terceiro e último capítulo da obra intitulado “A queda do céu”, é apresentado o efêmero destino das populações humanas em resultado de décadas autodestrutivas para com o meio ambiente, que seria a morte seguida do completo extermínio da vida humana na Terra. Segundo os Yanomamis o que impede a queda do céu, ou seja a destruição da vida humana no planeta, é a presença dos espíritos da floresta e a conexão destes com os xamãs, que conseguem exercer um trabalho funcional da organização estrutural da floresta e da vida em geral.

Assim, a produção escrita pelos sujeitos étnicos apresenta em seu seio um contraste entre o passado e o presente, a cidade e a floresta, o místico e a ciência. Os conhecimentos provindos desses detentores de conhecimento necessitam mais do que nunca circularem no íntimo do imaginário do cidadão contemporâneo, não apenas para desmistificar a imagem que as narrativas tradicionais  alimentaram durante anos, de serem um empecilho para o avanço do país, de figuras domesticáveis, mansas e infantes, assim como desprovidos de conhecimento, mas para a mensagem deles auxiliarem nos problemas estruturais do presente e dos que ainda estão por vir.

 

 

 


REFERÊNCIAS

KOPENAWA, Davi. ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

KRENAK, Ailton.  Voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a terra é plana.  Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/voltar-ao-normal-seria-como-se-converter-negacionismo-aceitar-que-terra-plana-diz-ailton-krenak-24353229

PRATI, Eloína. A auto inclusão da literatura indígena contemporânea no cânone brasileiro: uma herança a ser reconhecida. Revista Literatura em Debate. V.12, n. 22, 2018 p. 107-121.

 

 


NOTAS

[1] KRENAK, Ailton. Voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a terra é plana. OGLOBO, 2020.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Isabella Nunes Mello

Graduanda pela Universidade de Ouro Preto, busca assimilar o conhecimento acadêmico com as práticas e demandas universais. Seu interesse no núcleo de pesquisas é voltado as epistemologias decoloniais, enfatizando os povos originários das Américas.

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