O modelo contemporâneo de psiquiatria, moldado pela lógica de mercado e pela cultura de consumo, instaura uma relação paradoxal e contraditória entre os medicamentos psiquiátricos e a saúde mental da população. Como apontam Alvarenga e Dias (2021), esses medicamentos não se limitam a atender a uma demanda terapêutica, mas se configuram também como produtos de consumo, frequentemente impulsionados pela busca incessante por performance. Os antidepressivos, por exemplo, são apresentados como soluções instantâneas para os dilemas cotidianos, que vão desde o enfrentamento das pressões profissionais e acadêmicas até a promessa de aprimoramento das capacidades cognitivas e produtivas. Contudo, essa recorrência ao uso de substâncias psiquiátricas não se dá sem repercussões profundas, tanto na esfera da saúde mental quanto na formação de uma sociedade na qual o consumo e o lucro se erigem como os motores da vida humana.

A expansão do consumo de tais medicamentos nos últimos trinta anos, como sublinha Whitaker (2017), revela uma narrativa construída em torno de um modelo científico que, embora tenha se expandido consideravelmente, permanece longe de se sustentar por evidências irrefutáveis. Em vez de se configurarem como explicações suficientes para os transtornos mentais, as abordagens que relacionam desequilíbrios neurofisiológicos à emergência de condições como esquizofrenia ou depressão acabam por obscurecer a complexidade dos fatores sociais e psíquicos que realmente envolvem esses fenômenos.

Este modelo reducionista, ainda que amplamente aceito, não só falha em apresentar soluções consistentes, mas também alimenta uma epidemia de consumo de medicamentos psiquiátricos, um consumo que transpassa o campo do tratamento e se estende à lógica perversa do mundo do trabalho, onde a pressão por resultados constantes reflete os imperativos de uma sociedade neoliberal que supervaloriza o desempenho. A medicação, então, não é apenas uma ferramenta de alívio de sintomas, mas um mecanismo de adaptação a um sistema que exige, como norma, uma busca incessante por resultados e, simultaneamente, agrava as desigualdades sociais.

Partindo disso, torna-se imprescindível retomar as concepções filosóficas propostas por Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço. Este por sua vez realiza uma análise sobre a sociedade contemporânea, uma sociedade que se vê imersa em um desejo incontrolável de desempenho, sempre acreditando que pode fazer mais, ser mais, ou ainda produzir mais. Esse imperativo de excessiva positividade, segundo o autor, desencadeia um aumento considerável nos transtornos mentais.

Segundo Han (2015), a sociedade está, de modo irreversível, adoecida — marcada pelo esgotamento físico e psíquico resultante da sobrecarga que o indivíduo enfrenta em um contexto de superprodução. O que o autor denuncia é o fato de que, no momento em que o sujeito cede à pressão incessante, seus esforços se traduzem não em conquistas, mas em uma proliferação de doenças como depressão, ansiedade, TDAH e Burnout — isto sem contar os males mais graves, como o câncer. Aqui, as realizações pessoais e profissionais não encontram uma correspondência positiva, mas antes conduzem o indivíduo a uma morte angustiante e solitária.

Ao final, a sociedade do cansaço resulta em um movimento contínuo de adaptação, no qual a vida tranquila se dissocia do ritmo frenético de uma existência fragmentada e isolada, um ritmo que, na sua incessante busca por objetivos e metas, culmina apenas em deficiências emocionais e físicas. Nesse contexto, o único destino possível para o sujeito que se submete a esse processo é a morte, não como fim biológico, mas como a morte de uma subjetividade totalmente colonizada pelas exigências da performance.

Entretanto, a percepção que se configura na sociedade contemporânea dista consideravelmente dessa crítica. As drogas — remédios — se transformaram em pilares essenciais para aqueles que buscam incessantemente o aprimoramento de seu desempenho. Como observam Neves e Souza (2022), nesse cenário, medicamentos estimulantes como as anfetaminas e o metilfenidato, conhecidos comercialmente como Adderall e Ritalina, adquiriram uma visibilidade social significativa. Essa notoriedade se associa à crença de que tais substâncias são capazes de potencializar funções psíquicas, como a capacidade de concentração, além de promoverem um aumento e uma duração superior no rendimento em variadas atividades. Nesse contexto, cresce a procura por esses estimulantes, não apenas entre os indivíduos diagnosticados, mas também entre aqueles que, sem indicação médica, buscam melhorar sua performance cotidiana.

Frente a isso, cabe destacar como o discurso médico-científico se une ao discurso capitalista, reforçando formas dominantes de subjetivação nas sociedades neoliberais, nas quais o foco sobre o alto desempenho e a autoperformance se intensifica. Essa intersecção, portanto, contribui para a aceleração de dois processos fundamentais para compreender o aumento do consumo de estimulantes: a patologização de aspectos da vida cotidiana e a subsequente medicalização da existência, impulsionadas pela busca constante por aprimoramento pessoal e produtividade.

Para compreender o crescimento dos diagnósticos e o uso incessante de medicamentos, é necessário analisar como o discurso médico organiza a noção de doença psicológica e sua articulação com a patologia orgânica. Foucault (1975) propõe que a psicopatologia se articule a partir de duas questões fundamentais: a primeira, como definir as condições que qualificam uma condição como “doença” no campo psicológico; a segunda, como estabelecer as relações entre as patologias mentais e físicas. Nessa lógica, a doença é concebida como uma entidade autônoma, pré-existente aos sintomas, de certa forma independente deles.

Dessa forma, um sintoma específico, como uma crise maníaca ou um comportamento obsessivo, não é analisado isoladamente, mas sim como a manifestação de uma condição mais ampla e independente, a qual, nesse contexto, seria designada como “loucura maníaco-depressiva” ou como um “fundo esquizofrênico”. Essa concepção amplia os diagnósticos, pois transforma as doenças em entidades autônomas que se impõem e precisam ser reconhecidas. Esse modelo favorece a medicalização da vida cotidiana, articulando-se com o discurso capitalista de autodesempenho, ao converter sintomas comuns em diagnósticos que legitimam intervenções medicamentosas externas, com o objetivo de aumentar o desempenho e a produtividade (FOUCAULT, 1975).

No contexto das novas intervenções medicamentosas voltadas para o aumento do desempenho e da produtividade, uma gama crescente de indivíduos, imersos em sofrimentos ou desconfortos sociais, se vê identificada com certos diagnósticos. Ao serem categorizados como “doentes”, essas pessoas encontram uma explicação validada e externa para características suas que, muitas vezes, são percebidas como inconvenientes ou marginalizadas pela sociedade. Esse movimento permite que diferentes formas de angústia, insatisfação e tristeza sejam rapidamente medicalizadas, já que, com o diagnóstico, surge a promessa de tratamento — uma promessa de resolução ou atenuação dessas questões.

Em um cenário no qual as intervenções medicamentosas são cada vez mais externalizadas para atender às demandas de desempenho e produtividade, o debate não se concentra na fragilidade epistemológica dos conceitos de transtornos mentais, doenças ou síndromes, nem nas causas que as originam, sejam elas orgânicas, genéticas, sociais ou psicológicas. Em vez disso, Amarante e Torre, (2010), afirmam que a questão se desloca para como a produção de conhecimento nesse campo efetivamente gera realidades que reificam essas condições como doenças, conferindo legitimidade a tratamentos, práticas institucionais e ações sociais e políticas. Assim, a criação de categorias patológicas e suas respectivas definições estabelece uma estrutura de mercado que transforma condições humanas em diagnósticos tratáveis, que respondem tanto às exigências sociais de desempenho quanto aos interesses da indústria farmacêutica.

A busca pela maximização de seu próprio capital, imersa na subjetivação do “empresário de si”, configura-se como uma busca incessante por satisfação. No discurso neoliberal, de acordo com Neves e Souza (2022), o sujeito é levado a acreditar que a felicidade é alcançada através de sua atuação e de seu trabalho, colocando-se como um empreendedor de si mesmo. Nessa lógica, a realização pessoal e o prazer são concebidos como produtos de seus rendimentos e desempenho, o que impele o sujeito a uma superação contínua de seus próprios limites, num movimento de autoaperfeiçoamento permanente.

No entanto, para sustentar essa “carreira” ilimitada, o sujeito se ancora em outra promessa fundamental do discurso capitalista: a de que o consumo pode oferecer satisfação plena. Nesse contexto, o sujeito é inserido em uma relação direta com o objeto de desejo, que se dissolve na oferta incessante de produtos pela tecnologia e pelo mercado. O capitalismo, portanto, se revela como um sistema que confunde satisfação com posse, criando um ciclo de busca incessante por produtos que prometem atender a um desejo sempre renovado, mas nunca plenamente realizado.

Em uma sociedade que glorifica o sujeito empreendedor, entendido como totalmente livre e responsável por suas escolhas, a vulnerabilidade, o desemprego e o insucesso são reificados como falhas de caráter, respostas individuais a um mundo de possibilidades ilimitadas. O fracasso é uma propriedade que recai sobre o indivíduo, atribuindo-lhe a culpa de não ter conseguido gerir sua vida de forma eficaz, de não ter previsto os riscos ou investido o suficiente em si mesmo. Nunca se considera, ou se quer discutir, que essas condições podem ser efeito de transformações coletivas e sociais impostas pela lógica neoliberal, que enfraquecem as redes de proteção social e dissolvem os vínculos de solidariedade, conforme Caponi e Daré (2020).

Na visão de Han (2015), cada época é caracterizada por suas próprias patologias dominantes. Se, no passado, a era bacteriológica foi confrontada com antibióticos, e atualmente a virologia é gradualmente superada pelos avanços imunológicos, o século XXI será definido pela “era neuronal”. Doenças como depressão, TDAH, transtorno de personalidade limítrofe e burnout são as patologias típicas dessa era, moldadas por uma sociedade que impõe uma busca incessante por desempenho e produtividade. O sujeito moderno é compelido a ser constantemente ativo, positivo e eficiente, e esse ritmo de hiperatividade social e positiva torna-se terreno fértil para o surgimento dessas doenças, que são, na verdade, os sintomas do colapso da subjetividade diante de uma demanda que nunca cessa.

Todas essas dinâmicas subjacentes, operando silenciosamente, conduzem a uma sociedade cada vez mais marcada por uma catástrofe iminente, especialmente se tomarmos em consideração a relação de interesses mútuos entre o governo, o mercado e a indústria. A indústria farmacêutica, por exemplo, tem colhido lucros incessantes, enquanto a publicidade de novas pesquisas e medicamentos de controle se espalha por sites, revistas e jornais. A facilidade de acesso a tais substâncias torna-se alarmante, pois muitas dessas drogas estão prontamente disponíveis nas prateleiras de farmácias, sem a necessidade, muitas vezes, de uma receita médica.

É inegável que, ao olhar para o quadro através das lentes de pensadores como Han, Foucault, Freud, Marx e tantos outros, percebemos que o modelo neoliberal em que estamos imersos impulsiona de maneira exponencial a positividade do desempenho, principalmente no campo do trabalho. Essa positividade visa a maximização da produção e do acúmulo de capital, sendo constantemente alimentada pelas dinâmicas imperialistas que operam sob a hegemonia dos Estados Unidos. A análise de Harvey, em O novo imperialismo, reforça como o capitalismo, modelado por essas forças globais, estabelece as regras de funcionamento do mercado, determinando, assim, o comportamento das economias e das sociedades em diferentes regiões do mundo. Esse jogo de interesses recíprocos alimenta não só a ideologia do desempenho incessante, mas também uma estrutura de mercado que torna o sofrimento uma mercadoria, cada vez mais disponível para ser tratada e consumida.

Podemos sustentar essa análise ao refletirmos sobre o funcionamento da psiquiatria nos Estados Unidos, onde ainda persiste um modelo violento, sustentado por premissas que desconsideram a autonomia e a racionalidade do sujeito. O modelo psiquiátrico dominante, ao pressupor que qualquer indivíduo enfrentando dificuldades relacionadas à saúde mental perdeu a capacidade de julgamento e discernimento, implica a perda de uma humanidade que não mais se ajustaria ao parâmetro da “normalidade”. A partir daí, o internamento precoce torna-se uma necessidade, um mecanismo para preservar a ordem e a funcionalidade da sociedade. Neste raciocínio, o indivíduo em crise não pode contribuir, pois se vê reduzido à sua condição de “doente”, necessitando ser afastado da sociedade, como se a sua existência em desordem fosse um risco, uma falha que ameaça o funcionamento do todo.

Esse argumento se faz particularmente visível ao analisarmos o crescimento dos manicômios nos Estados Unidos, como apontado por Arruda (2024). O escândalo das internações involuntárias, muitas vezes estendidas até que os pacientes pagassem suas dívidas, revela não apenas a violência intrínseca ao modelo, mas a exploração de uma rede de clínicas privadas que, além de obter lucros substanciais, recebia ainda recursos públicos. Nesse sentido, o sistema não só desconsidera a dignidade e os direitos do paciente, mas também o transforma em objeto de lucro, em produto cuja existência não é mais valorizada pela sua humanidade, mas pela sua capacidade de gerar rentabilidade.

Logo, — em minha análise — este escândalo revela-se como parte integrante de um processo mais amplo de medicalização que, em última instância, se articula com a busca incessante por autodesempenho em uma sociedade que, cada vez mais, subordina o ser humano a parâmetros produtivos e de rendimento. Em uma cultura que não distingue entre cuidado e produtividade, a intervenção terapêutica se desvia de seu propósito de restaurar a saúde, passando a funcionar como um dispositivo para garantir ou melhorar o desempenho, como se a saúde mental fosse apenas mais uma variável a ser otimizada. As “comunidades terapêuticas” e os tratamentos involuntários, nesse sentido, são exemplos claros de como as instituições de saúde, sob o império da lógica de mercado, podem se apropriar da vulnerabilidade dos indivíduos, manipulando suas fragilidades para assegurar lucros. Mais do que promover o cuidado, elas incentivam a conformidade e o rendimento, tornando-se cada vez mais um mecanismo de normalização, e não de humanização.

Em um contexto que cultiva a busca incansável pela performance, onde o sujeito se vê compelido a controlar sua própria existência, a linha tênue entre cuidado e abuso se torna progressivamente difícil de discernir. A medicalização da vida, longe de ser um instrumento de alívio, reflete uma sociedade que, ao tentar corrigir as falhas humanas, acaba por transformar as complexidades da existência em defeitos a serem tratados, ajustados e, muitas vezes, suprimidos. A multiplicação das intervenções terapêuticas, especialmente com o crescente uso de substâncias psiquiátricas, aponta para uma realidade onde a existência humana, com suas crises e variações, é vista apenas como uma série de disfunções a serem corrigidas, ao invés de uma expressão legítima de uma vida que, em sua complexidade, não se limita ao desempenho ou à produtividade.

Por fim, o que se esconde sob a capa do cuidado é, por vezes, um mecanismo de controle, no qual as instituições de saúde, cada vez mais associadas aos interesses financeiros, entram em uma dança perigosa de lucro à custa da vulnerabilidade humana. A crescente expansão desse modelo, que parece ganhar força no exterior, pode também se alastrar em solo brasileiro, onde práticas de confinamento e medicalização de quem já é marginalizado ou fragilizado pela sociedade se apresentam como soluções rápidas e paliativas. O grande desafio, portanto, reside em questionar até que ponto estamos dispostos a permitir que a liberdade do ser humano seja reduzida a um tratamento padronizado, onde o valor do indivíduo é medido não pelo que ele é, mas pelo que ele é capaz de produzir.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ALVARENGA, Rodrigo; DIAS, Marcelo Kimati. Epidemia de drogas psiquiátricas: tipologias de uso na sociedade do cansaço. Psicologia & Sociedade, v. 33, p. e235950, 2021.

AMARANTE, Paulo; TORRE, Eduardo Henrique Guimarães. Medicalização e determinação social dos transtornos mentais: a questão da indústria de medicamentos na produção de saber e políticas. Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: Cebes, p. 151-160, 2010.

ARRUDA, Guilherme. Nos EUA e no Brasil, crescendo os novos manicômios. Outras Palavras, 2024. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/nos-eua-e-no-brasil-crescem-os-novos-manicomios/. Acesso em: 03 out. 2024.

CAPONI, Sandra; DARÉ, Patricia Kozuchovski. Neoliberalismo e sofrimento psíquico: A psiquiatrização dos padecimentos no âmbito laboral e escolar. Mediações-Revista de Ciências Sociais, p. 302-320, 2020.

FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada, 2015.

HARVEY, David. O novo imperialismo. Edições Loyola, 2004.

NEVES, Tiago Iwasawa; SOUZA, Vinicius José de Lima. Patologia do desempenho: TDAH, drogas estimulantes e formas de sofrimento no capitalismo. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 42, p. e236353, 2022.

WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Editora Fio Cruz, 2017

 

 

 


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