Sem sombra de dúvidas um dos períodos mais marcantes da história, no século XX, foi a acelerada recuperação da Alemanha posteriormente a derrota na Segunda Guerra Mundial. Após a rendição incondicional, em 1945, a Alemanha encontrava-se dividida em zonas, praticamente destruída, povoada por milhões de refugiados de guerra e sem ao menos conseguir diferenciar as vítimas dos culpados pela dura realidade que se encontrava.
A reformulação política, todavia, ocorreu relativamente rápida. Já em 15 de setembro de 1949 a Alemanha Ocidental conseguira organizar, por meio de um conselho parlamentar formado por políticos representantes de partidos recém-formados, eleições para um Estado provisório e eleger Konrad Adenauer para a chancelaria alemã. O governo era amparado por uma constituição finalizada no ano anterior e legitimava um governo democrático que procurava reerguer a máquina estatal ainda que sob a tutela dos países aliados.
O que nos chama atenção aqui é a rápida retomada econômica que o país encontrou para ingressar novamente numa economia capitalista global. Suportada pelo plano de economia social de mercado liderada pelo Ministro da Economia, Ludwig Erhard, o PIB (Produto Interno Bruto) alemão conseguiu se reestruturar sob impressionantes taxas médias anuais de 6,5% entre 1950 e 1973 (KITCHEN, 2005, p. 450). Após esse período a economia apresentou algumas instabilidades devido a circunstancias globais, como a crise do petróleo em 1974, e a revolução iraniana em 1979, mas nada que interrompesse a melhora na qualidade de vida generalizada da população da Alemanha.
No entanto, uma análise superficial desse crescimento exemplar pode nos oferecer conclusões equivocadas acerca do governo alemão e seus trabalhadores. De fato as políticas estatais, visando a recuperação econômica foram extraordinárias, mas há também a necessidade de reconhecer a contribuição direta de trabalhadores imigrantes provenientes de vários países europeus, uma vez que houve grandes investimentos nacionais no desenvolvimento da indústria buscando maior contribuição no mercado internacional Essa mudança de foco é percebida nitidamente na diminuição da participação agrícola no PNB (Produto Nacional Bruto) que era de 25% em 1949, 13,3% em 1960 para chegar a mínimos 5,3% em 1980 (KITCHEN, 2005, p. 451). Por outro lado, o setor industrial se ocupou por uma contribuição cada vez maior, amparada pelo remanejamento de aproximadamente dois terços da mão de obra agrícola camponesa para o setor de indústrias urbano entre 1949 e 1969. De tal forma que já em 1970, com 48,5% de trabalhadores no setor de industrial, a Alemanha era o país mais industrializado do mundo (KITCHEN, 2005, p. 452).
Naturalmente os trabalhadores alemães não seriam suficientes para arcar com toda essa transformação nas bases da economia nacional, especialmente depois da construção do muro de Berlim em 1961. Havia então uma demanda crescente por mão de obra, mesmo que sem grandes qualificações. Consequentemente, o governo alemão procurou negociações com países próximos em busca de trabalhadores para cobrir esse déficit. O sucesso de envio de funcionários veio de países como Itália, Espanha, mas, sobretudo, de empregados da Turquia, que já em 1961 representavam 45 mil inscritos para trabalhar na Alemanha. Nas décadas seguintes de 1970 e 1980 o número de trabalhadores turcos cresceu acentuadamente, tanto que após a virada do século o total de imigrantes turcos na Alemanha chegou a quase dois milhões de indivíduos.
O chamado acordo bilateral entre Alemanha e Turquia foi firmado em 30 de outubro de 1961 com a criação de um escritório em Istambul cuja finalidade era agenciar trabalhadores para viajar até a Alemanha. Chama atenção a discriminação e o tratamento inferior com os trabalhadores turcos, se comparados a outros acordos firmados com países europeus, como Itália e Grécia. O transporte de trabalhadores turcos era feito por ônibus ou mesmo trens em condições precárias, pelo menos até 1970. Após isso, a alternativa pela aviação se mostrou mais barata. Apesar disso, o acordo parecia vantajoso para ambos os países; a Alemanha necessitava urgentemente de mão de obra enquanto a Turquia viu nessa emigração uma oportunidade para “escoar” uma parte de sua população. De fato, o país concentrava em sua capital Ancara e na região mais a oeste algum sinal de desenvolvimento industrial, enquanto o resto do território era essencialmente rural. Assim o país passou por um imenso volume de pessoas que migraram para essas grandes cidades em busca de melhores condições de vida, o que naturalmente fez com que essas cidades ficassem superpopulosas e a vida de toda uma população se precarizasse cada vez mais.
Essa expectativa foi rapidamente frustrada. O contrato inicial firmado em 1961 garantia um período de trabalho temporário de dois anos. Após o vencimento os trabalhadores deveriam voltar para a Turquia e a agência contrataria novos funcionários numa espécie de rotatividade. No entanto, por razões óbvias, os empresários alemães perceberam que não era vantajoso se desfazer de um funcionário que havia adquirido domínio de suas funções e também, ainda que minimamente, estabelecer uma comunicação direta na língua alemã para recomeçar “do zero” com novos funcionários apenas para cumprimento do acordo. Assim, logo em 1964, um novo regimento excluiu qualquer delimitação de tempo para trabalhar em solo alemão. Para Paula Gioia, em sua dissertação de mestrado intitulada Alemanha Turca em Preto e Branco, esse foi o ponto decisivo para uma migração turca definitiva.
No período entre 1961 e 1973 foram enviados para a Alemanha cerca de 636 mil trabalhadores turcos, dos quais 197 mil eram funcionários de mão de obra qualificada dos quais representavam 30% do total de trabalhadores qualificados contratados neste período (GIOIA, 2007, p. 21). O projeto chamado Kindergeld, aprovado em 1963, garantiu benefícios a trabalhadores imigrantes turcos que tivessem filhos ajudando a garantir os interesses em prestar serviços às empresas alemãs. Apesar disso, a vida dos turcos em solo alemão foi bastante difícil nesses períodos iniciais; viviam sob a hostilidade de cidadãos alemães e os locais que moravam eram absurdamente precários. Normalmente próximos aos locais de trabalho. Homens que tivessem famílias, por exemplo, preferiram viajar sozinhos para Alemanha a fim de juntar dinheiro e conseguir uma moradia minimamente descente para seus familiares. A priori, os barracões que moravam superlotados por industriais turcos pareciam insuportáveis, mas também eram baratos possibilitando uma maneira de se poupar dinheiro e procurar melhores locais para se viver.
Não somente as moradias, mas as condições de trabalho eram bastante precárias. A maioria dos turcos trabalhavam em indústria pesada e construção civil. Não havia o menor aparato de segurança auxiliar durante o trabalho e quando ocorriam acidentes, e o empregado era rapidamente substituído por outro. Além dessas condições, que rapidamente deterioravam a saúde dos funcionários, que tão logo apresentavam problemas pulmonares e outros problemas crônicos, as jornadas de trabalho fixas não eram respeitadas. Por vezes, eles eram obrigados a dobrar ou mesmo triplicar os turnos quando haviam algum problema.
É curioso perceber também que o método utilizado pelas indústrias na década de 1980 para que seus empregados pudessem trabalhar, além do tempo normal sem serem “pegos” pela legislação trabalhista, era muito similar aos métodos denunciados por Marx em “A jornada de trabalho”, presente no Capital. Neste, as legislações trabalhistas de 1848 proibiam mulheres e jovens entre 13 e 18 anos a trabalhar numa jornada que ultrapassasse 10 horas contínuas. Todavia, os donos de indústrias os escalavam em funções diferentes após o término de seu turno para que pudessem trabalhar jornadas superiores. Esse chamado sistema de revezamento encontra bastante semelhança com as formas impostas aos empregados turcos que se alternavam nas funções dentro das fábricas.
Além disso, mesmo quando esses trabalhadores conseguiam juntar uma quantia razoável de dinheiro eram vítimas de abusos das empresas imobiliárias, que cobravam aluguéis superfaturados por imóveis pequenos e de baixa qualidade. Quase sempre as regiões acessíveis aos turcos eram os bairros mais centrais das cidades ou próximo a áreas industriais, cujos serviços públicos eram de difícil acesso. No ano de 1978, em Berlim Ocidental, por exemplo, todos os imigrantes turcos se concentravam em apenas 10% da área da cidade (GIOIA, 2007, p. 25). O que, consequentemente, contribuiu para que se formassem verdadeiras comunidades de turcos, possibilitando que suas tradições encontrassem permanências, além de melhores condições de vida e proteção mútua contra os preconceitos de cidadãos alemães. Com o tempo foram surgindo restaurantes com comidas turcas típicas, associações religiosas e centro de auxílio a novos imigrantes recém-chegados.
Com uma relativa estabilidade as famílias turcas conseguiram se estabelecer com o passar das décadas e criar seus filhos integralmente em solo alemão. Há aqui uma transformação de gerações que nos parece importante: tem-se, inicialmente, uma 1ª geração de turcos que são aqueles adultos migrados da Turquia para trabalhar e residir na Alemanha; seguido de uma 2ª geração de turcos trazidos ainda crianças para o país ou que nasceram em território alemão nesses primeiros anos de serviços; por fim uma 3ª geração mais recente que são filhos destes adultos da geração anterior, cuja maioria nunca sequer esteve na Turquia. Essa identificação nos parece relevante porque estas duas últimas enfrentaram ondas de violência intensa de grupos neonazistas na década de 1990 em diante, amparados pela ascensão de uma ideia de Leitkultur.[1] Após a reunificação da Alemanha, uma crescente taxa de desemprego atingiu sobretudo os alemães residentes da antiga região oriental. Estes culpavam a comunidade turca pela falta de trabalho, uma vez que havia uma enorme quantidade de imigrante em pleno serviço. A verdade é que os turcos eram considerados, por muitos, menos estrangeiros do que os próprios alemães do leste, os quais vinham demonstrando grandes dificuldades para se adaptar à estrutura socioeconômica do ocidente (GIOIA, 2007, p. 31). No entanto, isso não impediu que grupos terroristas de extrema-direita provocassem 207 ataques a estrangeiros, só em 1992.
Esse cenário de violência provocou reações por parte da comunidade turca. Alguns jovens formaram gangues a fim de responder violência com mais violência, enquanto outros, com formação acadêmica, buscaram algum engajamento político. O fato é que para essas duas gerações, em especial para a 3ª, parece haver um clima de não pertencimento. As primeiras gerações de turcos mantinham laços próximos com seu país de origem, enquanto as mais recentes não se mostravam tão próximas ao país de seus avós. Se, em 1980, um percentual de 40% deles desejava um dia retornar à Turquia, em 1993, este número caiu para 17% (GIOIA, 2007, p. 29).
A integração é inevitavelmente um processo de mão dupla, exigindo respeito mútuo e esforço sustentado entre a sociedade de acolhimento e a população imigrante, bem como seus descendentes para alcançar uma vida comum livre de tensões.[2] A partir do momento que não há respeito mútuo não existia sentimento de integração. De tal maneira que essas gerações se encontram numa espécie de não-lugar, pois não se integram na comunidade alemã a qual lhes parece mais íntima, mas também não se identificam com a Turquia cuja familiaridade se limita a convivência de familiares.
Para Paula Gioia esses indivíduos compõem uma terceira cultura, que não se encerra em aspectos de uma ou outra mas permeiam entre ambas com facilidade. Se encontram em constante formação de sua própria identificação enquanto flutuam nas tradições turcas e alemãs.
REFERÊNCIAS
GIOIA, Paula. Alemanha turca em preto-e-branco: fotografia e reelaboração de identidades no interior de minorias étnicas na transição dos séculos XX e XXI. 2007. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.
KITCHEN, Martin. A era Adenauer: 1945-1963. In: História da Alemanha Moderna. 1ª. ed. [S. l.]: Cultrix, 2013. cap. 14, p. 431-463.
NOTAS
[1] O conceito oferece uma ideia de cultura dominante, ou seja, defende valores “essencialmente” alemães que devem ser preservados em vista da inserção de imigrantes no país.
[2] Como consta no Relatório do Comitê de Migração, Refugiados e População, intitulado, The Turkish presence in Europe: migrant workers and new European citizens, de 2006.
Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: https://arquivo.correiodobrasil.com.br/alemanha-tenta-lidar-com-a-diversidade-em-meio-a-onda-de-imigrantes/
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