HH Magazine
Entrevistas e Diálogos contemporâneos

A atualidade de Hannah Arendt e a demanda por responsabilização: uma entrevista com Renata Schittino

 

HHM: Professora Renata Schittino, primeiramente gostaríamos de agradecer a sua disponibilidade em ceder essa entrevista à HH Magazine.

Ao longo de sua carreira você tem trabalhado com temas caros ao mundo contemporâneo como totalitarismo, terrorismo, imperialismo, revoluções… Gostaríamos de ouvir um pouco sobre sua trajetória e, se possível, ouvir também como o pensamento de Hannah Arendt contribui para o desenvolvimento das questões que motivaram suas pesquisas.

 

R.S.: Olá. Inicialmente, gostaria de agradecer o convite para a entrevista. É uma alegria conversar com vocês. Tenho muito entusiasmo e carinho pelos estudos de teoria da história ligados à UFOP. Em especial, agradeço também à Professora Thamara Rodrigues pela interlocução e ao pessoal da HH Magazine, que preparou as questões.

Bom, narrar a si é esse exercício interminável e nunca definitivo, mas vamos lá. Lembro ainda hoje de leituras marcantes no começo da minha formação em História. E lá estava Arendt. O Da revolução; O Eichmann em Jerusalém. Mas também estavam Foucault, Poulantzas e outros. Interessava-me a questão do poder. Além disso, os debates que envolviam a relação entre os saberes e a vida. Na minha pesquisa de IC tive a oportunidade de escolher um tema e decidi estudar a atuação de um grupo armado basco – o ETA -, que reivindicava socialismo e liberdade. Questões gerais que permeiam minha trajetória de trabalho já apareciam aí como: guerrilha, terrorismo, fascismo, imperialismo.

No mestrado, voltei-me mais especificamente para o conceito de terrorismo, mas esse trabalho tinha ainda uma vinculação direta com indagações que advieram da tentativa de entender o funcionamento do ETA e sua relação com a sociedade. Estava claro que havia uma diferença entre o ETA que lutara contra a ditadura franquista e o ETA que ainda operava pelas armas depois da democratização da Espanha. Quando li novamente Arendt, nesse período, de uma maneira mais contundente, percebi o quão próximas eram muitas das minhas questões sobre a especificidade e a contemporaneidade da violência política espetacular em voga no atentado terrorista e as observações da autora sobre o totalitarismo, sobretudo no que se refere à novidade dos eventos. Num panorama geral, percebe-se que Arendt, de fato, toca em quase todos os temas com os quais venho trabalhando ao longo da minha carreira: totalitarismo, imperialismo, modernidade. Mas nem sempre fiz, digamos, o caminho arendtiano. Quer dizer, nem sempre cheguei a tais problemas através de Arendt, embora, com certeza, o encontro com a obra arendtiana tenha sido sempre rico e instigante, pois se tem algo muito significativo no pensamento dessa autora, quer se concorde ou não com suas respostas, é o anseio de compreender o mundo contemporâneo e sua trágica realidade de massacres, genocídios; intolerância e terror. O pensamento arendtiano foi muito marcante para mim justamente pela sua busca para vislumbrar como os homens agem e como a história aparece.

 

HHM: Em sua pesquisa mais recente, que integra o seu projeto de pós-doutorado na Universidade Federal de Ouro Preto junto ao professor Marcelo Rangel, você tem trabalhado com as noções de “compreensão” e “responsabilidade” em Hannah Arendt relacionadas à emergência de uma nova configuração ética desde o pós-segunda guerra mundial. Poderia nos contar um pouco mais sobre o projeto?

 

R.S.: Exatamente. Estou desenvolvendo desde março último essa pesquisa de Pós-doc no âmbito do Programa de pós-Graduação em História da UFOP e ao prof. Marcelo Rangel. A pesquisa tem como tema o pensamento arendtiano, mais especificamente, seus trabalhos sobre compreensão e responsabilidade. A ideia é considerar o aparecimento de uma nova noção de compreensão; uma compreensão que está intimamente conectada ao anseio ético. Entendo esse estudo como uma parte de um panorama mais geral sobre a questão ética desde o pós-segunda guerra mundial, que é o tema com o qual venho trabalhando desde antes do Pós-doc – na verdade, praticamente desde o meu Pós-doc anterior, sobre o conceito de totalitarismo. Embora Arendt não tenha desenvolvido exatamente uma “ética” no sentido tradicional da filosofia, entende-se que é possível visualizar proposições éticas em sua obra. Alguns comentadores mencionam até a existência de uma ética negativa, que não pretende dizer o que fazer, mas permitiria evitar certas ações em momentos decisivos. Arendt, como sabemos, enfrentou, por experiência própria o anti-semitismo e o exílio. A ascensão do nazismo e o aparecimento dos campos de extermínio foram eventos que marcaram definitivamente sua trajetória e sua obra. Depois do totalitarismo, que, para ela, teria surgido como uma verdadeira ruptura da tradição ocidental; tornou-se necessário reconsiderar o significado da política e reconhecer a importância do que é estar no mundo em companhia de outrem. Nessa pesquisa, quero mostrar como a noção de compreensão vislumbrada por Arendt se desenvolve e passa a abarcar algo que vai muito além de uma ideia de compreensão como empatia; ou como um colocar-se no lugar do outro. Compreender, como a própria autora diz, “não é tudo perdoar”. Não é um exercício de alteridade isento do mundo. Mas se não se trata de perdoar, isso não significa que a compreensão seja permissiva. Ao contrário, como pretendo sublinhar, compreender guarda uma demanda por responsabilização. O caso Eichmann, analisado por Arendt, é bastante claro nesse propósito. A autora diz que quer compreender a participação de Eichmann no nazismo; compreender como ele conseguiu enviar pessoas para a morte nos campos de concentração. Compreender os atos de Eichmann não significa dizer que ele não é responsável pelo que fez. Então, a pesquisa vai por aí, no sentido de mostrar como a noção de compreensão arendiana está relacionada com a demanda por responsabilização.

 

HHM: A noção de “cultura da responsabilidade” parece central a suas intuições.  Poderia explicar para gente a categoria?

 

R.S.: Sim. Como vocês puderam acompanhar na minha palestra e como já venho indicando nessa entrevista, a pesquisa sobre o conceito de compreensão na obra arendtiana é parte de uma teoria mais geral, que surgiu da conexão dos meus estudos sobre totalitarismo e crimes contra a humanidade; debate pós-colonial; e feminismo. Todos esses estudos, de certo modo, têm me levado a pensar sobre justiça e justiça transicional. Desenvolvi a noção de cultura da responsabilidade para explicar um processo, que, a meu ver, vem se delineando desde a segunda guerra mundial, sobretudo, desde o pós-guerra – que é um processo de ênfase na responsabilização. Cultura da responsabilidade é uma cultura que valoriza os procedimentos e os dispositivos de responsabilização. Creio que essa cultura ascende no imediato pós-segunda guerra mundial. Pode ser visualizada nos tribunais de guerra, nos processos de justiçamento dos colaboradores ou inimigos de guerra. Na França, por exemplo, pode-se detectar muitos casos de justiçamento “com as próprias mãos” – seja pela violência física propriamente dita, seja pela segregação social. A cultura da responsabilidade encontra um expoente forte no braço institucional, mas, na verdade, ela perpassa toda a sociedade. Por isso, entendo que é muito importante tratar esse advento como o aparecimento de uma cultura no sentido geral e não simplesmente considerar os procedimentos no âmbito de uma justiça de transição. A cultura da responsabilidade permeia toda a sociedade. Aparece nos tribunais, nas sentenças, nos justiçamentos, nos debates públicos, nas discussões acadêmicas, etc. Note-se que ela não se refere apenas a cidadãos ou instâncias específicas. Aliás, entendo que esse é um dado central da cultura da responsabilidade. Ela alcança ou pode alcançar a todos. É uma cultura que envolve a demanda por justiça nos e para além dos tribunais. Está relacionada à postulação por responsabilidade. Para entender como se delineia a cultura da responsabilidade temos que vislumbrar certamente a grande novidade das guerras totais no início do século XX. Uso aqui a categoria cunhada por Eric Hobsbawm na Era dos extremos. A ideia de total tem pelo menos três sentidos. Está ligada à rendição incondicional – uma espécie de guerra até o limite total. Refere-se ainda à noção de totalidade do social, no sentido, de que não há uma divisão estanque entre civis e militares, já que a guerra afeta por completo a vida de todos os envolvidos e deixa-os sujeitos a ataques diretos (cidades bombardeadas) e indiretos (falta de alimentos, etc). Total, na perspectiva de Hobsbawm, tem ainda relação com a imagem de totalidade do globo. Quer dizer que, de um modo ou de outro, a totalidade do planeta é afetada ou participante nas guerras totais. Isso me interessa porque deixa perceber que quando finda a segunda guerra mundial estamos diante de uma série de novidades. Aparecia não só um novo tipo de crime – o crime contra a humanidade -, mas se configurava uma nova situação no que tange à questão da responsabilidade. Numa guerra onde todos estão de algum modo implicados; todos são também de certo modo responsáveis. Podemos visualizar os primeiros efeitos do aparecimento da cultura da responsabilidade quando acompanhamos os debates e os julgamentos sobre os crimes de guerra no imediato pós-segunda guerra mundial. Hannah Arendt é uma fonte riquíssima para visualizar elementos desse período. Sua interlocução calorosa com Jaspers a respeito do tema já nos diz muito. Jaspers preferia falar em culpabilidade da nação alemã. Enquanto Arendt pretendia fazer a distinção entre culpabilidade e responsabilidade. Para ela, uma coisa era sentir-se culpado moralmente, outra era realmente ter, de alguma maneira, participado ou executado um crime. Quando Arendt refuta o argumento do “dente na engrenagem” – que era usado pela defesa dos oficiais nazistas para dizer que os réus apenas cumpriam ordens de Estado –, deixava ver claramente o que está em jogo nessa nova cultura da responsabilidade: cada um é responsável pelo que faz e precisa arcar com seus atos. A cultura de responsabilidade, creio, é a cultura que não aceita isenção de responsabilidade. É uma cultura que “descobre” que os processos históricos; que os atos criminosos têm agentes responsáveis por trás deles. É uma cultura na qual as pessoas se sentem no direito e no dever de cobrar reparação, penalização, responsabilização por atos criminosos – físicos ou verbais. Atos que atingem os seres humanos em sua dignidade e pluralidade. Nesse sentido, a cultura da responsabilidade surge na esteira dos crimes contra a humanidade. Mais especificamente, na esteira da responsabilização pelos crimes contra a humanidade no pós- segunda guerra mundial.

 

HHM: Na sua palestra “Responsabilidade e juízo em Hannah Arendt” aqui na UFOP você falou em três diferentes momentos que o século XX pós-1945 teria vivido em relação a isto que seria a “cultura de responsabilidade”. Gostaríamos de ouvir um pouco mais a respeito, especialmente, sobre o terceiro momento que corresponde a nossa conjuntura atual.

 

R.S.: Acredito que a cultura da responsabilidade se forma no imediato pós-guerra com o desenrolar dos julgamentos dos oficiais nazistas e dos debates sobre a culpabilidade alemã. Os tribunais de guerra e os distintos meios de justiçamento são típicos desse período que se desenvolve até mais ou menos o final da década de 1960. Dos anos 40 aos 60, vemos que a demanda por responsabilização encontra vários expoentes. Não se fala apenas na segunda guerra mundial. A cultura de responsabilidade revela-se muito claramente na seara do anticolonialismo. Fanon, Césaire e tantos outros intelectuais e movimentos passam a exigir a responsabilização pelos atos criminosos cometidos durante as guerras coloniais; pelos crimes cometidos e sustentados pelo imperialismo. A demanda por justiça e reparação às vítimas passa a postular a identificação do agente colonizador, que é também responsável por crimes contra a humanidade e genocídios. Até agora recentemente vimos o presidente do México cobrar um pedido de desculpas da Espanha pela colonização.  É sempre arriscado propor uma datação ampla, mas defendo que a cultura da responsabilidade tem uma fase de desenvolvimento até o fim da década de 60. Podemos ficar com 1968 como marco. A partir de 1968, a cultura da responsabilidade entra numa fase que denomino fase de afirmação. Esse período se prolonga até mais ou menos os idos de 2011. O tal ano, como nos indicou Zizek, em que “sonhamos perigosamente”. De 2011 pra cá, podemos visualizar uma espécie de disputa em torno da cultura da responsabilidade, e, é nesse, sentido, que entendo que se mostra uma nova configuração. Então, se no primeiro momento, a cultura da responsabilidade se desenvolve em torno dos debates e penalizações relativos aos crimes contra a humanidade, na segunda fase, acredito, temos uma espécie de consenso em torno da importância da responsabilização. Nesse segundo momento, temos o aparecimento de uma série de tribunais e comissões da verdade – lembre-se que estamos falando do período de ascensão e declínio das ditaduras latino americanas, de regimes autoritários e criminosos no cone sul. E também pode ser contabilizada uma vasta gama de pedidos de perdão – aparecem pedidos de desculpas pela inquisição, pela escravidão, pelo holocausto, etc – e processos de reparação. Creio que essa fase, que chamo de afirmativa, encontra seu ápice na década de 1980. 1980 será um ano simbólico no que se refere ao ‘boom’ de memória experimentado pelas gerações descendentes das guerras mundiais. Como destaca François Hartog, no seu Regimes de historicidade, 1980 será considerado o ano da memória na França. O respeito que as noções de memória e testemunho vão adquirir nesse momento é muito sintomático disso que vislumbro como afirmação da cultura da responsabilidade. É significativo perceber que a ênfase em relatos e sobreviventes é correlata de uma determinada perspectiva teórica. Penso inclusive na própria concepção historiográfica, que se volta com força para o estudo de traumas e passados esquecidos. Sujeitos outrora invisíveis. Toda a “literatura menor”, para trazer a formulação de Deleuze, torna-se fundamentalmente tema da escrita. Tudo aquilo que estava nas bordas. Tudo aquilo que era minoria torna-se o centro. Isso vai acontecer na historiografia, na filosofia, na literatura, etc. Visualizar esse movimento como algo próprio à cultura da responsabilidade é notar que está em jogo aí um anseio por fazer justiça, seja por meios concretos – nos próprios tribunais e comissões da verdade -, seja pela via teórica – nas diversas formas narrativas. Dar voz aos que não tiveram voz. Dar vida aos oprimidos, marginalizados, esquecidos, invisíveis da história significa recontar os eventos, rever os cânones. Significa fazer uma espécie de justiça histórica (que é também como eu disse literária, filosófica, etc). No âmbito da cultura da responsabilidade é importante destacar que esse período é de afirmação porque nesse momento, quando todos os tipos de reparações são exigidos, seria como se pudéssemos ver essa cultura em seu ápice. Creio que a coisa toda foi vivenciada de tal forma que quase acreditamos que estaríamos ali para sempre. E então chegamos ao terceiro momento, que se apresenta desde os idos da primeira década do século XXI; desde mais ou menos 2011. Poderíamos falar também em 2008, ano de crise do capital. Mas entendo que vale circunscrever 2011 na esteira dessa crise, como um ano decisivo para a virada na cultura da responsabilidade. Virada que agora experimentamos com mais clareza. 2011, ano do Occupy Wall Street. Ano da Primavera árabe. O que me parece constitutivo desse período não é exatamente um declínio da cultura da responsabilidade. Não há exatamente um declínio, mas há um questionamento. Da afirmação do momento anterior, tal cultura passa agora à fase de disputa. A própria cultura da responsabilidade está em disputa. Temos de um lado, uma tendência de avanço da cultura da responsabilidade – cobramos cada vez mais retratações, reparações, desculpas, julgamentos, punições. Nesse período, creio que seja possível perceber, inclusive, uma crescente luta por justiça de gênero. Por outro lado, vemos uma espécie de reação à cultura da responsabilidade. Pós-verdade, fake news, discursos contra a pluralidade, questionamento da Ciência – em especial, que muito nos toca, o questionamento da História como ciência; da verdade dos fatos. Talvez aí seria melhor dizer um anseio de substituir uma idéia de verdade histórica por mera invencionice. Tudo isso parece ter vindo crescendo como que numa contra corrente daquelas demandas da cultura da responsabilidade. Esse terceiro período, momento em que estamos, é quando vamos nos dando conta de que aquela afirmação em torno da responsabilidade está agora, de certo modo, ameaçada. Com o crescimento da intolerância, da xenofobia, do racismo. Com o avanço da extrema direita, que se orgulha de pautas como essas, percebe-se que a cultura da responsabilidade, que emergiu no imediato pós-guerra e passou por transformações ao longo da segunda metade do século XX e início do século XXI, deixou atrás de si um rastro de ódio. Vemos como esse terceiro momento da cultura de responsabilidade aparece, hoje, para muitos de nós, em especial, para os historiadores como um pesadelo. No Brasil, por exemplo, ficamos muito chocados com o revisionismo em torno do golpe de 1964. É um susto ainda ter que lutar por questões tão óbvias, já há muito evidenciadas. Que houve golpe, repressão, torturas, assassinatos. Que esse passado precisa ser reparado. Que os crimes precisam ser punidos. Se há algo que podemos aprender, ao vislumbrar a cultura da responsabilidade nessa longa duração, é que precisamos lutar por ela.

 

HHM: Como esse terceiro momento se relaciona aos estudos pós-coloniais e decoloniais?

 

R.S.: A questão não é nova. Não sei se do ponto de vista da cultura da responsabilidade podemos indicar a conexão tão clara entre um terceiro momento e os estudos pós-coloniais e decoloniais. Como falei antes, encontramos nos autores e intelectuais ligados ao processo de descolonização as demandas da cultura da responsabilidade. Fanon, em Condenados da terra, cobra do colonizador e da elite colonial que lhe é herdeira um posicionamento sobre a hierarquização do mundo entreposta com a colonização. Libertação não aparece simplesmente como a formação de um país independente, mas com a construção de um país livre politicamente, economicamente e culturalmente. Nos anos 1980, o crescimento dos chamados estudos pós-coloniais pode sim ser conectado à afirmação da cultura de responsabilidade. Está ligado ao desenvolvimento de uma literatura e uma historiografia que vão procurar escapar da grade teórica eurocêntrica e tentar deixar falar os mundos nativos, outrora esquecidos, ofuscados, estigmatizados. É interessante a pergunta, pois entendo que a questão colonial está intimamente relacionada ao desenvolvimento e à afirmação da cultura da responsabilidade – sendo possível notar essa relação nos diferentes momentos da cultura da responsabilidade -, mas ela talvez sempre tenha nos dado pistas mais claras de que precisamos lutar pela cultura da responsabilidade. Se é possível circunscrever aí a cobrança pela responsabilidade do colonizador, a exigência da reparação física e/ou simbólica, a demanda por tribunais e pedidos de perdão. Se podemos ver em seu âmbito o movimento de afirmação teórica, a busca pela memória e testemunho, o anseio de reverter teórica e historicamente o apagamento dos povos nativos; também conseguimos vislumbrar que todos esses momentos fazem parte de uma luta constante e ainda não acabada. A luta contra o colonizador ainda persiste. Ainda é necessária. Mesmo depois de muitos movimentos de libertação nacional terem alcançado a independência.

 

HHM: Como a diferenciação entre “compreensão” e “conhecimento” pode auxiliar a História e as humanidades em geral em seus desafios epistemológicos, éticos, ontológicos… contemporâneos?

 

R.S.: Na perspectiva arendtiana, que estou estudando, a compreensão é um processo distinto do conhecimento. A compreensão precede e sucede o conhecimento. É um processo interminável que só acaba com a morte. Está relacionada à infinita – ou seja, sempre inacabada, reconciliação com a realidade. Arendt gosta de dizer que a compreensão tem a ver com podermos nos sentir em casa neste mundo. Porque ela tem a ver não com um produto final, com alguma coisa produzida, mas com a possibilidade de vislumbrar como alguma coisa foi possível – como alguma coisa veio ao mundo. Creio que as Humanidades e a História enquanto disciplina têm que considerar muito propriamente essa atividade da compreensão, pois o nosso trabalho não pode ser medido simplesmente através do produto final. Tratamos da existência dos homens e mulheres no mundo; de como agimos, de como nos responsabilizamos, de como significamos a vida, a nossa vida individual e coletiva. Se ficarmos com a teoria arendtiana, vemos que a compreensão lhe interessa não apenas no sentido formal, como uma categoria ou coisa assim. Ela se interessa pela compreensão porque quer, de fato, compreender seu mundo; compreender como o totalitarismo foi possível. Nesse sentido, a compreensão tem uma relação direta com a refutação das filosofias da história. Em determinado momento de sua obra, Arendt diz “compreensão é o outro lado da ação”. Quer dizer, a compreensão é uma atividade sumamente importante porque as pessoas agem e sua ação não está previamente definida. As ações têm a ver com escolhas, com desejos; muito provavelmente, também tem a ver com carências, traumas, medos. Mas de qualquer modo a ênfase na compreensão está ligada à refutação das filosofias da história, por um lado, e, por outro, à percepção de que quando alguma coisa passa a existir, quando um fato ocorre, não pode mais deixar de existir. A compreensão é importante porque as ações humanas e os fatos que delas resultam são irrevogáveis. Se a compreensão guarda esse impulso ético, como suponho que há em Arendt, ela é uma atividade muito significativa para nós historiadores, pois ela indica que o humano não pode ser pensado como coisa e a História não pode ser vislumbrada como um processo cujo sujeito é uma entidade transcendental.

 

HHM: A partir da responsabilidade ética em Hannah Arendt como você tem pensado sobre questões como memória, justiça, comissões da verdade?

 

R.S.: Arendt é uma autora bastante interessante para pensar essas questões de justiça e comissões da verdade. Creio que ela faz uma reflexão particularmente importante sobre a novidade do crime contra a humanidade, que se visualiza no pós-segunda guerra mundial. Ela nota que o que está em jogo não é a intenção do crime, mas o crime cometido. Nesse sentido, tenta retirar o debate da esfera da moral. Isso significa, no meu entendimento, reconsiderar a justiça sob a ótica do mundo. Da pluralidade do mundo. Na corte de Jerusalém, que julgava Eichmann, por exemplo, a promotoria teria ficado, de modo inócuo, tentando demonstrar que o réu teria matado com as próprias mãos. Ao passo que a defesa de Eichmann insistia no argumento do dente na engrenagem, quer dizer, defendia que Eichmann teria apenas cumprido ordens de estado. Na análise desse julgamento, Arendt observa uma série de equívocos e destaca a dificuldade de ambos os lados em compreender a novidade do crime em questão. O crime contra a humanidade, que pode ser assim chamado por ferir a pluralidade da humanidade, deve ser julgado pelo acontecido no mundo. A interioridade do perpetrador não deve ter o mesmo peso que o direito positivo lhe atribuía. O que vem à tona nesse crime é a relação com o mundo. Ultrapassa-se a relação mais específica do indivíduo com indivíduo (indivíduo perpetrador/indivíduo violado/assassinado). O crime contra a humanidade fere a todos e não apenas os que de fato morreram.  Trata-se da relação dos homens no mundo, em sua pluralidade.

 

HHM: Haja vista as recentes e crescentes manifestações amparadas por movimentos e governos de extrema direita em uma conjuntura global, quais relações são possíveis traçar entre essa conjuntura atual e os totalitarismos vivenciados e tematizados por Arendt?

 

R.S.: Essa é uma questão que também venho me perguntando. Tem movimentado uma série de formulações que pretendem comparar – não Arendt exatamente – mas o momento atual e o período de ascensão dos fascismos. Parece-me que, do ponto de vista arendtiano, essa aproximação deve ser muito cuidadosa, sobretudo, porque o totalitarismo é pensado pela a autora como uma nova forma de governo. Ele é muito mais que uma formulação conteudística, como xenofobia, anti-semitismo, racismo, etc. Totalitarismo está relacionado à combinação de ideologia e terror. Ideologia, por sua vez, significa para a autora, a lógica de uma ideia. Quer dizer, uma premissa através da qual as pessoas explicam a realidade. Terror também encontra uma especificidade no pensamento arendtiano. O terror totalitário ataca não um inimigo determinado – que tenha feito algo específico contra o governo ou que tenha características definidas. O regime tem sempre inimigos, que vão sendo classificados e adjetivados de modo próprio, mas o que mais importa na compreensão do totalitarismo é que ele não existe sem inimigos e que seus inimigos são “objetivos”. Posto isso, não acho que temos ainda o reaparecimento de regimes totalitários propriamente ditos, mas creio que governos como os de Trump, nos EUA; de Bolsonaro, aqui no Brasil, carregam elementos totalitários. Se ficarmos com a análise de Arendt, podemos ver algo para além das declarações e posicionamentos xenófobos e racistas. A presença da ideologia, de modo análogo ao caracterizado por Arendt em Origens do totalitarismo, pode ser notada facilmente nos partidários desses políticos. A ferramenta do Whats App e das redes sociais, inclusive, parece ter insuflado esse aspecto. A ideologia como premissa; como uma lógica através da qual se vê o mundo, deixou, na verdade, muitas pessoas cegas para a realidade. No processo eleitoral brasileiro isso apareceu de modo significativo. Os defensores de Bolsonaro simplesmente não aceitavam nenhum argumento que pudesse contrariar o que concebiam como realidade. Não vou me alongar com exemplos porque a entrevista já está muito extensa, mas, nessa analogia, ainda temos que notar como fica o terror. Ingrediente fundamental para os totalitarismos. Acho que esse elemento está presente nos governos atuais e foi importante para a tomada do poder e para o crescimento da extrema direita, mas ele se manifesta de modo distinto agora. O terror, que está, como vimos, relacionado à existência do inimigo objetivo, é, sobretudo, no momento atual, um terror narrativo; simbólico. O imigrante, o petista, o comunista, etc são os inimigos objetivos. O projeto não parece ser exterminá-los do globo terrestre através dos expurgos ou campos de concentração, mas há um discurso de apagamento desses tipos e até ações mais específicas para retirá-los de cena. Creio que não é possível dizer que há um totalitarismo, no sentido descrito por Arendt, mas acho que temos indícios para concluir sobre a presença de elementos totalitários nesses regimes democráticos.

 

HHM: Por fim, gostáramos que você comentasse sobre os caminhos e desafios para um pensamento ético politicamente orientado no Brasil hoje, e isto atentando a questões de responsabilidade e compreensão em Hannah Arendt. Se possível falando um pouco do elogio de Arendt a um perfil de historiador que tem um olhar atento sempre para o novo.

 

R.S.: Muitos desafios! É curioso porque agora vejo que a minha geração, talvez muito marcada pela discussão da memória e do testemunho, tenha, de um modo não tão claro, acreditado que ditaduras e totalitarismos eram coisas do passado. Estamos vivenciando um momento decisivo. Como estou entendendo, um momento de disputa em torno da cultura da responsabilidade. Cada vez mais, creio que devemos ter consciência de como somos agentes históricos, de como nossas escolhas e nossas narrativas importam. Precisamos ter e demandar responsabilidade no nosso dia a dia, no nosso trabalho, no nosso fazer, na nossa vida. Necessitamos resguardar e aprofundar a luta contra a intolerância, o apagamento histórico, a opressão. Que os nossos saberes sejam éticos, quer dizer, que estejam comprometidos, conscientes e dispostos a dar conta realmente da pluralidade do mundo. Que possamos entender que não somos meros sujeitos, ou inter sujeitos, como quer a noção de intersubjetividade. Somos já sempre uns com os outros, perpassados uns pelos outros, atravessados uns com os outros. Arendt tem um otimismo bonito, apesar de falar de grandes mazelas do nosso século e de nossa história. Ela diz que o milagre do humano é ser um ser que existe para o novo. Somos voltados para agir, para criar o novo, assim como somos nós mesmos novidade no mundo, ao qual chegamos ao nascer. O historiador é aquele que, por profissão, tem olhos treinados para a novidade. É quem pode vislumbrar como a História se compõem de muitas novidades, de muitos começos e não de muitos finais. É quem pode zelar, de modo especial, pela ação humana e sua liberdade.

 

Entrevista realizada por Ana Paula Santana, Larissa Ivo, Júlio Araujo e Ricardo Aquino.

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A ENTREVISTADA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “52”][/authorbox]

Related posts

De Panamérica a Hitler do III Mundo – As narrativas lisérgicas de José Agrippino de Paula

Patrícia Marcondes de Barros
1 ano ago

Moderna e arcaica, a nova Capital é aqui!

Isaías Gabriel Franco
5 anos ago

lugar errado

Adriano Menezes
5 anos ago
Sair da versão mobile