O historiador e cientista político José Murilo de Carvalho partiu no último domingo, 13 de agosto de 2023. Nasceu nos decisivos anos 1930, mais especificamente em 1939. Representante de uma geração de intelectuais que elevou a República a objeto de pesquisa e ajudou a criar as bases do conhecimento sobre esse período, mesclou história e ciência política com maestria. Para além de todos os adjetivos elogiosos, produziu uma historiografia que se caracteriza pela atualidade para interpretar o Brasil.

À medida que se revelam detalhes e entranhas do movimento mais recente de interferência militar na política brasileira, é imprescindível dar os créditos a José Murilo de Carvalho. É dele um dos livros de referência sobre a relação entre as Forças Armadas e a esfera política. Em Forças Armadas e Política no Brasil, o historiador mineiro recorda que o golpe civil-militar de 1964 o levou a estudar a história dos militares.

Se a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República elevou o intervencionismo fardado a figurar entre os temas emergentes e gerou um modismo na academia, José Murilo fora pioneiro nesse campo, conforme ele mesmo descreve. “Como foi possível que ninguém tivesse previsto aquele tipo de golpe [de 1964], embora todos falassem, e muitos pensassem, em golpe? Como foi possível ignorar as mudanças por que passara esse ator político, responsáveis por sua nova postura?” (CARVALHO, 2006, p. 8).

Os bons pesquisadores fazem as perguntas certas. Movido por esses questionamentos, ele descobriu, em 1964, “que quase não havia entre nós estudos acadêmicos sobre o tema. Era necessário começar quase do nada” (CARVALHO, 2006, p. 8). Na década de 1970, a partir de um convite feito pelo também historiador e cientista político Boris Fausto, José Murilo aprofundou a análise inicial.

Fausto tinha assumido a responsabilidade de organizar a História Geral da Civilização Brasileira, antes dirigida por Sérgio Buarque de Holanda. Ele pediu a José Murilo um artigo a respeito da participação dos militares na Primeira República, para compor a coleção. O texto seria publicado em revista científica em 1974, e três anos mais tarde na História Geral da Civilização Brasileira.

A pesquisa foi aprimorada, aprofundada e ampliada nas décadas seguintes, até a reunião dos escritos em livro, publicado em 2005. Nas conclusões desse livro, José Murilo questiona se, após quatro décadas do golpe de 1964, e diante de um cenário transformado, valeria “continuar estudando os militares dentro das novas conjunturas nacional e internacional e em face de Forças Armadas cada vez mais dedicadas a tarefas profissionais em obediência aos parâmetros constitucionais” (CARVALHO, 2006, p. 195).

A resposta foi sim, esclarecendo que aquele objeto de pesquisa ainda se justificava por diferentes motivos. Fatos ocorridos no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostravam que a questão militar seguia (seguiria, e segue) como uma sombra a pairar sobre a República Federativa do Brasil.

Episódio recente que levou à saída do ministro da Defesa mostrou que ainda há feridas abertas resultantes do período dos governos militares. Famílias de torturados e mortos ainda aguardam informações sobre o destino das vítimas. O comando das Forças Armadas, sobretudo do Exército, insiste na inexistência de documentos, ao mesmo tempo em que resiste à abertura de arquivos. Obedecendo ao velho estilo conivente dos políticos, no conflito entre o ministro e o comandante do Exército, o presidente da República substituiu o primeiro e manteve o segundo. Essa ferida precisa ser tratada em nome da conciliação entre as Forças Armadas e parcela relevante da nação. Há direitos inalienáveis envolvidos. (CARVALHO, 2006, p. 196)

Sem falsa modéstia e ciente da grandiosidade de suas contribuições, afirmou que as pesquisas sobre a atuação dos militares na nossa história, a partir de um olhar eminentemente político, “contribuíram para estabelecer a legitimidade do estudo dos militares dentro da universidade” (CARVALHO, 2006, p. 195). Outra consequência foi a abertura para o que ele classifica como uma nova historiografia sobre o militarismo, sob múltiplas perspectivas de análise.

Contra os incautos que pregavam uma democracia consolidada, no início do século XXI, alertou que “seria imprudente supor que já estejamos imunes a retrocessos políticos” (CARVALHO, 2006, p. 197). Novamente, os fatos e o desenrolar do processo histórico dariam razão a José Murilo.

Os que desconhecem a “operação historiográfica” vão afirmar que o historiador profetizou o que estaria por vir uma década depois do lançamento do livro, com o retorno dos militares ao poder. Mas se trata apenas de um trabalho científico, em que as hipóteses foram confirmadas empiricamente. Segundo ele, era bastante plausível que fôssemos “novamente atropelados” e “surpreendidos” por acontecimentos semelhantes aos de 1964 (CARVALHO, 2006, p. 198).

Não é difícil imaginar cenários em que haja pressão no sentido de uma ação mais incisiva das Forças Armadas. O artigo da Constituição que prevê o uso delas para a manutenção da ordem interna está longe de se ter tornado obsoleto. E as fronteiras entre uma intervenção constitucional e a inconstitucionalidade são tênues. (CARVALHO, 2006, p. 197)

Não é mero acaso ou coincidência que o Artigo 142 da Constituição Federal, ao qual José Murilo faz referência, tenha sido usado constantemente como ameaça golpista pelo então presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores, e na defesa de um inexistente Poder Moderador para as Forças Armadas, em caso de crise política e impasses institucionais.

Se não pode ser reconhecido como um golpe clássico com tanques e militares armados, a ascensão de Jair Bolsonaro causou surpresa para muitos analistas e intérpretes da nossa história. Não para José Murilo de Carvalho. Dez anos antes, nas conclusões do livro publicado em 2005, vaticinara que o processo histórico poderia desenrolar-se naquela direção, “por falta de vontade política, de competência, de capacidade de antecipação, de virtu, como dizia Maquiavel” (CARVALHO, 2006, p. 198).

Desde o governo de Michel Temer, muitos assistem, bestializados, à recidiva da ingerência militar nos assuntos políticos. Os ingênuos vão acreditar que basta ler este e outros obituários de José Murilo de Carvalho para estabelecer relações entre a gênese da República (que não foi) e o estágio atual. Nesta República inconclusa, a atualidade da obra de José Murilo os convida e fala por si, para que não sejam novamente “surpreendidos”, como em 1º de abril de 1964.

 

 

 


REFERÊNCIA

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

 

 

 


Créditos na imagem: Foto: Raquel Cunha / Reprodução: Folhapress.

 

 

 

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