Integrar para dissolver: o desafio do gênero nos estudos históricos e políticos

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Talvez seja minha aparência, ou o fato de que sou uma mulher intelectual, possivelmente o fato de estar rodeada por homens e mulheres de esquerda, o que faz com que as pessoas olhem para mim e vejam o que elas esperam de alguém na minha posição, e não o que eu sou de fato. Fato é que eu sou tida como uma mulher feminista antes de me pronunciar sobre o assunto. Na verdade, no meio em que estou inserida – ao leitor desavisado: a área de humanidades da Universidade Federal de Minas Gerais – espera-se algo de mim e eu não sou capaz de atender a essa expectativa. Espera-se que eu seja militante. Isso, eu não sou. Não mais.

Li Beauvoir aos 15 anos durante o tempo das aulas que matava para fumar nos arredores da escola (se você conhece Belo Horizonte, sabe que o Colégio Santo Antônio, onde passei minha infância e adolescência, é terrivelmente próximo às mais diversas tentações da vida boêmia). Meu ídolo era a Madonna, minha mãe é uma diva do teatro que casou três vezes e não dependeu nunca de homem nenhum para nada. No mais, entendia minimamente a dor da violência sexual desde terrivelmente cedo – a vida, não pretendo entrar em detalhes, me ensinou, nesse sentido, mais do que os livros. O que Simone tinha para me dizer eu, em alguma medida, já sabia. Feminista, para mim, era natural. Assim, eu cresci. Li Lispector, Woolf, Plath, Luft, Duras, Meireles, Stein, Austen, enquanto, ao meu redor – não me entendam mal, não falo de qualidades literárias, mas de temáticas – as meninas (e meninos) liam Harry Potter e Crepúsculo.

Não foi sem espanto que recebi a “quarta onda” do (ciber?)feminismo que poderia, mais precisamente, ser chamada de tsunami. Por breves instantes tive, talvez, uma sensação de pertencimento. Desvaneceu-se rapidamente à medida que entrava em idade adulta. A necessidade de encaixe, de um grupo, tão marcante da adolescência, deu lugar à certeza de que eu nunca pertenceria ao que quer que fosse. Ao meu redor, erguiam-se, monumentais, termos como “rad”, “interssec”, “lib” e “queer”, e as pessoas pareciam afoitas para entrar em alguma dessas caixas e ficar entre os seus.

Subitamente, feminista se tornou uma identidade como tantas outras, e passou a dar algum tipo de orientação à sociabilidade. Nas faculdades onde me graduei surgiram grupos de estudos de gênero, rodas de conversa entre mulheres, ciclos de debate. Após uma vida alheias a esse fato, minhas colegas de escola agora pareciam tomar consciência do que significava ser mulher. Mais do que isso, estavam dispostas a orientar suas carreiras na direção de seu “ser mulher”. Promoviam eventos, vestiam (literalmente) camisas, se pronunciavam numa base diária sobre ser mulher, investiam seu tempo em pesquisas acadêmicas sobre mulheres, com mulheres. Isso foi verdade, também, para meus amigos homossexuais que, impulsionados pela própria vivência, se empenharam em pesquisar gênero e sexualidade. Meus amigos da graduação, hoje em seus estudos de pós, estão, quase em sua totalidade, envolvidos com temáticas afins. Se tornaram mulheres que estudam mulheres, ou homossexuais que estudam homossexuais, e assim por diante.

Assim, quando digo que meu objeto de pesquisa são os curdos (na Síria e no Iraque), com frequência o que se entende é que estudo as mulheres curdas – que, imagino, são a parte mais famosa internacionalmente dos conflitos entre os povos curdos e os Estados aos quais pertencem. As mulheres curdas têm saído em noticiários comandando tanques e portando AKs 47, o que é realmente impressionante. Não é, entretanto, meu objeto de pesquisa. Mais de uma vez, e sem que eu tenha dado motivos para isso, as pessoas presumiram, pelo fato de eu ser uma mulher que estuda um tema inusitado, que o que me atraiu para esse tema inusitado foi uma pauta, digamos, identitária. Vontade de pesquisar “coisas de mulher”.

Pois é essa um pouco a nova cara que tem a divisão social do trabalho intelectual, por assim dizer. Um homem, estudando a Síria, poderia estudar crises, guerras, desdobramentos econômicos, nacionalismos, autoritarismos, política externa e diplomacia. Eu, estudando os curdos da Síria, pareço remeter imediatamente às mulheres curdas, e estudá-las é o que se espera de mim.

Eu me recusei a fazer esse projeto. Eu sou analista internacional e historiadora. Consigo analisar a política internacional, as relações de poder na curta e longa duração; os fenômenos políticos dos tipos mais variados no presente e no passado. Entendo de política, história, economia, diplomacia, guerras, desenvolvimento, complexas relações entre países médio-orientais e potências ocidentais. Também sei alguma coisa sobre gênero, como sobre raça e outras identidades. De alguma maneira, esse último grupo parece ser sempre algo à parte dos outros componentes do mundo social e político. Raça, gênero e demais construções identitárias parecem estar flutuando ao lado da política interna e externa, das guerras, do colonialismo e da economia. São variáveis estudadas separadamente com vínculos muito frágeis com o resto da imagem. Espera-se que eu produza sobre mulheres, sim, mas de maneira completamente desvinculada de qualquer outro tema (mais, digamos, masculino) que venha a me interessar.  Espera-se que eu me torne uma mulher especialista em mulheres. Eu recuso, entretanto, este papel. Gênero jamais me interessou tanto assim. Não estou disposta a dedicar anos de estudo e trabalho intelectual a divisões (diferenças de gênero ou sexualidade) que, para mim, nem fazem sentido – mas que, sinto, eu posso acabar por reificar.

A opressão feminina dentro de seus próprios lares e no espaço público não é um tema desinteressante. Não é, contudo, tão interessante assim – não para mim, pelo menos. Me interesso pela vastidão do mundo, os suplícios diversos, longas histórias de opressão e exclusão pelo imperialismo europeu, a constituição de nações e a farsa da construção das identidades nesse contexto. É claro que as mulheres são parte desses contextos mais amplos. Um problema é o apagamento deles. Outro problema é fazer o movimento radicalmente oposto e concentrar-se apenas nas mulheres, esquecendo-se do contexto.

É, portanto, com alguma surpresa que minha pesquisa, desenvolvida, a princípio, no âmbito das Relações Internacionais, é recebida nos círculos acadêmicos. Se o que se espera de mim é que eu faça uma história das mulheres curdas, o que é entregue é algo, ainda, muito raro. Minha pesquisa trata, em linhas gerais, da constituição histórica de uma identidade curda no contexto da expansão imperialista sobre o Oriente Médio. Essa identidade, que logo se transformou – com os contatos com o iluminismo europeu – em nacionalismo curdo, passa por uma noção (muito familiar a vários movimentos revolucionários de esquerda do século XX) de homem novo.

Percebi, entretanto – e não poderia conferir ênfase suficiente a esse fato – que a construção desse homem novo, e da identidade do curdo como um todo, não poderia, de forma alguma, ser separada da construção da identidade da mulher curda. A genderização dos corpos, no final das contas, demonstrou-se uma chave fundamental para a compreensão da maneira como o imperialismo, o stalinismo e o nacionalismo, constituíram, ao longo de mais de um século, uma identidade aparentemente una, que os curdos orgulhosamente chamam de sua. Em determinado ponto da pesquisa, simplesmente tornou-se inevitável falar das mulheres curdas, porque falar dos curdos sem considerar metade de sua população estava me levando a um beco sem saída, do qual Foucault me ajudou a sair. Foi apenas no último capítulo que as mulheres, em sua especificidade, foram mencionadas. Mas esse ponto foi absolutamente essencial para fechar o trabalho, sem deixar pontas soltas. No meu entender, este é o lugar das mulheres nos estudos históricos e políticos.

As mulheres não são, necessariamente, um tópico à parte, um ramo de estudos. Elas são parte constituinte de qualquer história que se venha a contar. Falar das mulheres é jogar luz sobre a constituição de sociedades e identidades, falar das mulheres é, também, falar sobre os homens. Todo discurso que se faz sobre a mulher é um discurso sobre os homens, e vice-versa. As duas coisas estão profundamente imbricadas. Rejeitar a história das mulheres, ou fazê-la como um apêndice, não elucidando as conexões que essa história paralela tem com a história formal, é conferir aos estudos que levam gênero em consideração um papel subordinado ao da história oficial. O caminho, no que diz respeito à escrita de uma história que não apaga as mulheres, é o da integração, e não o da separação.

O que se observa no meio acadêmico, entretanto, é a conformação de núcleos de especialistas, tão focados em suas próprias questões de base que são incapazes de integrar as particularidades que estudam em um contexto maior de escrita da história. Essa é uma falha que nós, mulheres e homens que escrevemos a história, temos que nos comprometer a sanar.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Maria Raphaela Campello

Maria Raphaela Campello é bacharel em História (UFMG) e Relações Internacionais (PUC Minas). Atualmente, faz parte do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Suas áreas de interesse incluem relações entre países médio-orientais e a Europa e os Estados Unidos, além da Nouvelle Droite em suas várias formas.

1 comment

  1. Gustavo Campello 11 março, 2023 at 05:15 Responder

    Tenho pesquisado faz anos o confederalismo democrático e Abdullah Öcalan, nunca procurei muitas coisas em português até agora e me deparei com vários escritos seu, que tem o mesmo sobrenome que eu. Achei de uma coincidência incrível.

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