O “mito” Brasileiro

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Outro dia escrevi aqui sobre a condição de evento-estruturante que a atual pandemia carregava consigo. Pensava em possibilidades, inclusive de orientação política, que poderiam emergir do caos sanitário que não encontrava ressonância realista no discurso fakeoso do governo central. Se, mesmo que de maneira ainda por se estudar, o discurso anti-científico, irracional e obscurantista poderia se fazer valer frente a uma realidade cotidiana minimamente estável, o que em nosso caso significaria a reiteração dos mesmos problemas fundamentais e estruturantes no dia a dia, numa situação pandêmica, entretanto, a coisa tende a mudar. Até porque a pandemia é uma novidade que nos arranca dos mesmos problemas ou nos revela a profundidade e complexidade deles.

Nesse movimento, vemos que o chamado bolsonarismo sofreu inúmeros golpes, inclusive de agentes que até então tergiversavam ou ignoravam soberbamente suas atitudes claramente antidemocráticas, misóginas, racistas, simpáticas ao fascismo e, mesmo, completamente delirantes. Tudo isso com uma cartilha econômica feita de frases feitas há muito repetidas e cuja aplicação apenas gerou a precarização do trabalho, o desamparo social e a indeterminação, ainda maior, no destino das pessoas. Sem falar da estabilidade do desemprego em índices altíssimos e do aumento do dólar. Agentes que, até então, não faziam grande caso disso, começaram a se movimentar. Da rede Globo ao Supremo Tribunal Federal, dos governos estaduais à polícia federal.

Nesse aprofundamento da experiência brasileira devido à pandemia, os problemas e as características históricas do país aparecem de maneira mais sensível segundo um confronto com a realidade agressiva. Talvez haja mesmo um momento de aceleração de alguns registros que já vinham sendo revistos há muito tempo, mas que ainda não gozavam de grande evidência e clareza coletiva.

Mas agora temos que os encarar. A ideia (mito) de um Brasil como país da felicidade, do carnaval e afins deve realmente cair por terra. Baseado em imagens de integração racial, festividade do povo e celebração da ignorância miserável, frente à pandemia, notamos as práticas de concorrência predatória, do interesse econômico explicitamente vocalizado pelo presidente e encontrando, ainda, bastante ressonância em governadores, prefeitos e políticos em geral. A violência parece ser mais constitutiva da história daqui, do que qualquer outro aspecto.

Moro em uma cidade que tem os piores índices do meu estado. Os discursos se atropelam. O prefeito, apesar de receber o valor emergencial, parece não ter construído um leito de UTI sequer, como agora mostra a lotação completa de tais unidades fundamentais. A mídia de oposição ao prefeito diz que o vírus não é tão perigoso assim, que as pessoas estão sendo internadas sem estarem contaminadas. A população parece concordar com tais afirmações sobre “exagero da doença” e reivindicam o direito a livre competição e exercício da concorrência econômica. Na onda do presidente, as pessoas adotam o salve-se quem puder e “todo mundo morre um dia”.

Não há lugar para políticas amplas e concatenadas que pensem a pandemia de uma maneira coletiva realmente. Trata-se do cada um por si. De algo que no Brasil se chamaria de modelo inglês, liberal, coisa de americano, porque lá as pessoas não têm sentimentos, são racionais e individualistas. No Brasil não, no Brasil o povo é pobre, mas é amigo, cordial, solidário. É um povo cristão. A solidariedade e cristandade parecem operar movimentos de filantropia e ajuda individual, mas incapaz de pensar um sistema de proteção social efetiva. Pelo contrário, a filantropia, como muito já repetido, pode, no mais das vezes, tratar-se de uma boa consciência do filantropo que necessita da manutenção da miséria para exercer sua caridade esporádica. Os ataques históricos ao SUS revelam essa característica. A salvação precisa dos pobres.

O tema do racismo ganhou uma nova onda no decorrer da pandemia. Mesmo que através de um caso ocorrido no estrangeiro. Se o racismo brasileiro há muito vem sendo teorizado, dessa vez, pelo menos, viu-se uma mobilização midiática que se enrolou muito para lidar com o tema. Se isso terá resultados maiores no futuro, é difícil saber. Ao mesmo tempo, temos o presidente da Fundação Cultural Palmares defendendo o “mito” da democracia racial. Parece que ele não terá, porém, grande sucesso na empreitada que já envolveu, além de reações as mais variadas, processos judiciais quanto à sua competência. Ainda que não caia do cargo, ficará como monumento da crise de tal mitologia nacional. O que se desponta é o contrário: a verificação do racismo como base constituinte da identidade brasileira, da qual ele não se libertará tão cedo.

Por falar em monumento, começou uma onda de derrubada de monumentos. E não faltaram os defensores das estátuas. A verdade é que uma pessoa que vai derrubar ou intervir num monumento desse tipo: personagens históricos monumentalizados por alguma razão, deve estar entre as poucas que sabem o que realmente aquele monumento significa. Os que o colocaram ali, que o defendem conscientemente, também o sabem. E por isso temem tais atos. A maioria, que nunca deu a mínima pra tais monumentos, fica dividida entre um discurso e outro. De qualquer forma, questiona-se a história monumentalizada, explora-se o potencial do monumento no seu significado de construção da valores e memória nacional. A inclusão social, política e democrática há de enfrentar também a inclusão da visão de tal diversidade no passado. Democratizar o passado.

Quando o presidente foi candidato, não por acaso, recebeu o apelido de “mito”. Hoje parece claro que tal termo carrega realmente uma luta reacionária que pretendia consolidar ou impedir a derrota de cada um desses mitos: da democracia racial, do brasileiro alegre, dos monumentos dos conquistadores, da benignidade da escravidão, da unidade nacional, do autoritarismo cordial, do país pobre, mas com sorriso no rosto, do verde amarelo, da solidariedade coletiva, das mulheres sensuais e dos homens viris e de deus acima de tudo. E essas pessoas, apoiadoras dessa onda reacionária, querem, clamam, acampam, brigam, gritam, mentem, matam, batem, esperneiam e deliram pela manutenção de tais mitos.

 

 

 


Créditos na imagem: “Samba”, mural de Di Cavalcanti.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago Lenine

Thiago Lenine é professor de história na Universidade Federal de Uberlândia, toca violão, guitarra, cavaquinho e canta. Mas dança mal.

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