LIQUIDA-SE UM POETA

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Liquida-se um poeta.

As estantes estão cheias

e é já tempo das novas ofertas.

 

Liquida-se um poeta.

Nem novo nem velho,

nenhuma marca de uso,

apenas do tempo:

alguma poeira sobre,

algumas marcas de oxidação,

algumas leves manchas,

mas nada que comprometa,

que avarie a integridade.

 

Liquida-se um poeta.

Um desses comuns,

sem mais pormenores.

Desses sem escola nem manifesto

(só seu doído haver é manifesto),

poeta de aldeia,

sem distinto sangue ou linhagem.

Um poeta das gentes do barro,

rústico,

sem as luzes magníficas das metrópoles,

sem as cenografias corporais dos holofotes,

sem a eloquência das etiquetas,

sem a pósneopoética dos midiáticos.

Liquida-se um poeta,

apenas.

 

Quem o leva?

Colaborem!

Facilitamos tudo! Custo simbólico!

Aproveitem a oportunidade!

Carecemos de espaço.

As estantes estão cheias

e é já tempo das novas ofertas:

biografias de new myths

(como o Evangelho segundo Messias Basilisco),

vidas de digital influencers

(porque uma língua ditosa

diante do espelho em nudo corpo

vale mais que mil poetas),

guias de viagem a exotic people

(com dicas para o melhor aproveitamento

do olhar tristonho de criancinhas refugiadas

para self),

manuais de new poetic coaching

(Baixe no App e veja como

é rápido e fácil! Tudo só depende de você!

Parcelamos em até seis vezes no cartão.),

etc…

 

Liquida-se um poeta –

essa extemporânea coisa sentinte

sem mais(–)valia

nesse mundo liquidado.

 

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Dércio Braúna

Historiador e escritor, atualmente doutorando em história social (UFC), com pesquisas centradas na relação história e literatura. Autor de obras poéticas (Metal sem húmus, Aridez lavrada pela carne disto, Como cavalos fatigados abrindo um mar, Escrevivências), de contos (Como um cão que sonha a noite só) e estudos historiográficos (Nyumba-Kaya: Mia Couto e a delicada escrevência da nação moçambicana).

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