Um trem que passou em minha vida

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O convite do Instituto Histórico e Geográfico do Mucuri para escrever sobre a estrada de ferro Bahia-Minas causou-me sentimentos híbridos.  O afago na alma de cronista neófito veio de mãos dadas com certo desconforto. Como discorrer sobre algo que não vivi? Qual o problema? diria o Fernando Sabino, é assim mesmo: “nós só devemos escrever sobre aquilo que (ainda) não sabemos.” O espirituoso Sabino disse numa entrevista: “Eu nunca sei o que irei escrever, eu escrevo pra saber.” Eu acho que ele tinha razão. Parece que não é o escritor que guia a escrita, mas é a escrita que conduz o escritor. Ela carrega o enredo, por caminhos desconhecidos e, às vezes, surpreendentes. E é assim, com as rédeas soltas, que eu empreendo este texto, esperando ter a cumplicidade e a benevolência do leitor para ser meu companheiro de viagem.

A ferrovia Bahia-Minas foi cantada por Milton Nascimento na música Ponta de Areia, de 1975. A letra conta a história da velha estrada que ligava Minas ao mar. Mais especificamente, a Ponta de Areia, distrito de Caravelas, no extremo sul baiano. Em 1975, eu não sabia quem era Milton Nascimento. Tinha 9 anos e morava no distrito de Pedro Versiani, a 26 quilômetros de Teófilo Otoni. Naquele tempo, assim como a Gabriela de Caymmi, eu não atinava em nada, ou quase nada. Pelo menos nada ligado à música, literatura ou alguma forma de arte. Minha vida era estudar (e era estudioso mesmo), jogar bola, montar a cavalo e aprisionar coleirinhas e brejais. Eu ainda não sabia, mas Ponta de Areia e a Bahia-Minas estavam conectadas à minha vida de várias formas.

Parece que o mineiro tem certa fixação pelo trem; e pelo mar também. Quando esse trem leva Minas ao mar então, imagine. Rígido, sisudo, obstinado, preso aos trilhos, às regras; seria o trem uma metáfora do mineiro? Acho que sim; pelo menos em alguns estereótipos. Por outro lado, Paulo Mendes Campos escreveu que Minas há duas: uma nítida, outra sombria e difusa. Essa névoa, esse mistério também fazem parte da tal mineirice. Mas, voltando à história de trem e de mar, alinho-me com a mineirada quando assumo que sou apaixonado pelo mar. Pelo mar e pelo Rio. Mas me ressinto ao dizer que (ao contrário de Sérgio Sampaio) nunca viajei de trem. O texto que ora lavro servirá, inclusive, para reparar essa falha venial. Após alguns parágrafos, terei enfim viajado de trem — pelo menos— no trem da minha história com a Bahia-Minas.

Olhando a linha do tempo, percebo que, de fato, são fartas as conexões entre minha vida e a estrada. Quando menino, sempre ouvia os velhos falando da Bahia-Minas, na verdade, pronunciada Bahiminas (obviamente que esse incômodo hífen não resistiria à incontrolável mania dos mineiros de emendar as palavras). O tom era sempre nostálgico. Tempo do progresso. Do movimento nas estações. O transporte do café, madeira e cereais. Meu avô Zé Dias me falava, orgulhoso, de figuras emblemáticas: o maquinista, o chefe de estação, o mestre-de-linha. Por certo, assumir essa visão romântica é mais confortável do que pensar no seu lado ruim: índios dizimados, devastação da mata nativa, corrupção e injustiça social. Há relatos de que os trabalhadores das turmas —chamados “turmeiros” — eram açoitados como forma de punição (isso em pleno século XX). Essa parte deixo a cargo dos historiadores, como o meu amigo Márcio Achtschin, uma autoridade no assunto.

Quem primeiro me falou sobre Ponta de Areia foi meu primo Zazá, em Belo Horizonte. Cabeludo, largadão, estilo grunge e muito boa-praça, Zazá era um pintor talentoso. Um vampiro que dormia o dia inteiro e saía à noite pro underground belorizontino. O quarto dele era uma caverna, cheio de quadros, livros, souvenirs e fotografias na parede. Uma vez, vi uma foto de Zazá deitado debaixo de um coqueiro, ao lado de uma moça com olhos de Capitu. “Onde é isso?” perguntei. “Ponta de Areia, menino. Você precisa conhecer esse lugar. Nossa raiz está lá”. Aquela fotografia tinha algo de mágico. A praia, o mar, os coqueiros, o olhar da moça. Era uma atmosfera de amor livre. Com a cabeça em On the road, planejei uma viagem errante pela Costa das Baleias no verão seguinte.

A minha relação com a Bahiminas tornou-se nítida em Pedro Versiani, lugarejo onde passei a infância e que abriga, até hoje, uma das estações da ferrovia. Com a extinção da linha, a velha estação virou o cartório civil onde meu pai trabalhava. Fascinavam-me os grandes livros pretos nos quais eram lavrados os registros dos que nasciam, casavam e morriam. À noite, ainda sem luz elétrica, a rapaziada se reunia na calçada da estação, feita de enormes blocos de pedra. Era o tempo das festas da igreja. Namoricos. Beijos furtivos. O viço hormonal da juventude.

É curioso como a vila pachorrenta que conheci destoa da vida intensa do homem Pedro José Versiani. Descendente de italianos radicados em Minas, Versiani morou na corte do Rio de Janeiro, onde fez-se engenheiro civil. Consta ter sido aprovado com excelentes notas em banca formada pelo Visconde do Rio Branco, André Rebouças e Benjamin Constant. Trabalhou na construção de várias linhas férreas no Brasil e foi engenheiro-chefe da Bahiminas. Morreu em 1937, aos 83 anos, na rua Tonelero, em Copacabana. A mesma Tonelero que, em 1954, seria cenário do nebuloso atentado contra Carlos Lacerda, o corvo. A enorme pressão política e militar após o atentado acabou levando Vargas ao suicídio em 24 de agosto daquele ano. Coincidências históricas.

Além de história, eu sempre gostei de genealogia, mas de uns tempos prá cá, o negócio piorou e me meti a escarafunchar as gavetas do tempo. Essas incursões pelo passado reacenderam o meu interesse por Ponta de Areia. A Bahiminas veio de cambulhada. Meu tataravô paterno Antônio Guida, italiano da Calábria, chegou ao Brasil nos tempos do império e acabou indo parar em Ponta de Areia.  O velho calabrês montou uma pensão com restaurante para atender ao pessoal da ferrovia. Sua filha mais velha, minha bisavó Madalena Guida, casou-se e foi pra Minas. Tenho uma vaga lembrança dela: velhinha esguia, de olhos vivos e nariz afilado. Usava coque.

Fui algumas vezes a Caravelas procurando rastros da família. Descobri que Antônio Guida Júnior, meu tio-bisavô, foi chefe de oficina na Bahiminas. Tinha um jipe e um sítio na beira do mar (Deve ter sido o cenário para as aventuras amorosas de Zazá). Agora em janeiro, estive no sul da Bahia novamente. Contemplei o rio Caravelas, as ruas de pedra, as casas fantasmas em Ponta de Areia. O tempo passou e a viagem aventureira ficou guardada lá atrás, no baú dos sonhos juvenis. O plano agora é conhecer Abrolhos. Despedi-me de Caravelas com saudade não sei de quê. É a velha melancolia mineira.

Outro dia, estava lendo uma crônica do Otto Lara Resende sobre as coincidências da vida. A coisa é séria. Seríssima, como diria o escritor mineiro. Tema de matemáticos e filósofos alemães, a coincidência existe, mas não é fácil de entender. O Otto passou pela Parapsicologia e quase foi parar na clínica de repouso. Mas o que isso tem a ver com esta história? Explico. Consigo identificar aqui algumas coincidências pessoais curiosas. A Bahiminas foi extinta em 1966, mesmo ano em que nasci. Um nasce, outra morre. É a vida; sim, mas esse desencontro físico no mesmo ano é também coincidência. Outra: a ferrovia ligava Ponta de Areia, terra da minha bisavó Madalena Guida a Araçuaí, terra do meu avô Zé Dias. Assim, a Bahiminas unia as duas pontas da minha gênese paterna.

Por falar em gênese, percebo admirado que os ramais ferroviários existem também no lado materno. Meu avô Jardelino Teixeira, que era baiano e nunca leu Machado, gostava de falar, com um risinho sarcástico, que a única mulher que andou na linha o trem matou. Generalizações à parte, a frase do meu avô traduz o pessimismo machadiano com a natureza humana, mas mostra também que, em Minas, até as piadas falam de trem. Menos irônico, meu tio Adão Teixeira me contou que, na estação chuvosa, anos 50, ele subia num jipe em Ataléia e sacolejava em estrada lamacenta até Pedro Versiani. De lá, pegava o trem da Bahiminas até Teófilo Otoni. A maria-fumaça serpenteava entre vales enquanto as fagulhas de lenha lhe queimavam a roupa nova. É inegável: pra qualquer lado que olho, vejo que minha vida andou nos trilhos desse trem.

A viagem é prazerosa e nem me dei conta de que está chegando ao fim da linha, ao último parágrafo. Passei pela infância, pelos devaneios juvenis, pela genealogia e pelas coincidências pessoais. Conexões presentes nos trilhos do passado, mas e o futuro? A velha ferrovia vai voltar? Tema recorrente e incerto. Confesso que já fiz coro com os órfãos da Bahiminas e sonhei ouvir os seus dolentes apitos ecoando entre as montanhas. Hoje, sou mais cético. Reconheço o seu legado na história do Mucuri e penso que preservar sua memória é mais factível do que sonhar com sua volta. Como despedida, tiro o meu chapéu e levo ao peito, numa vênia afetuosa à estrada encantada que nunca morrerá na lembrança dos mineiros da minha terra.

 

Goiânia, janeiro de 2021

*Luciano Alberto de Castro,

Cronista e professor da Universidade Federal de Goiás

 

 

 


Créditos na imagem:  Fotografia do trem da EF Bahia-Minas, feita por Fany Moreira de uma pintura de Bruno Gonzalles, ambos de Teófilo Otoni-MG.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Luciano Alberto De Castro

Luciano Alberto de Castro é mineiro de Teófilo Otoni, cruzeirense, dentista e professor da Universidade Federal de Goiás. Mora em Goiânia. Paralelamente à docência, dedica-se à música e literatura, atuando como compositor, cronista, contista e poeta. O autor se considera um apaixonado pelas várias formas de arte, pela história do Brasil, pelas plantas e passarinhos. Colabora para várias revistas, sites e jornais brasileiros e internacionais. É um dos autores do Coletânea Clube dos Escritores publicado pela e-Galáxia em 2021. O primeiro livro solo Os óculos do poeta, uma coletânea de 50 crônicas, foi publicado em 2023 pela editora Kotter.

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