HH Magazine
Coluna da Associação Brasileira de Ensino de História

A aula de História entre o culto das cinzas e a proliferação do fogo

As aulas de História que assisto regularmente em classes do ensino fundamental e do ensino médio, ao supervisionar estagiários e estagiárias em exercício docente em escolas públicas da região metropolitana de Porto Alegre, são um terreno onde oras se está cultuando cinzas e oras se está fazendo proliferar o fogo. A frase que inspira o título desse artigo é normalmente atribuída ao compositor erudito romântico Gustav Mahler (1860-1911): “A tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo”. Essas duas palavras, cinza e fogo, a modular o conceito de tradição, servem de alegoria aqui para alocar, em dois polos, muito do que acontece no ensino de História nos dias de hoje. Como toda polaridade binária, a dupla alegoria estreita os limites de análise, mas tem a vantagem de organizar um pouco o complexo território que desejamos entender, a sala de aula de ensino de História. Mas fica o aviso: o que acontece numa aula de História é sempre mais e maior do que aqui vamos organizar, sempre vaza, sempre excede, anda além e para todos os lados, vai e volta e surpreende. O artigo segue uma estrutura onde se alternam parágrafos mais teóricos e outros com relatos comentados dos diários de campo de dois projetos de pesquisa em andamento, que fazem a etnografia do espaço escolar. Num deles investigando a circulação de elementos que dizem respeito ao ensino de História e em outro a circulação de elementos que dizem respeito à produção das relações de gênero e sexualidade nas culturas juvenis.

 

Tradição é uma ideia chave tanto no pensamento histórico quanto no desenvolvimento de uma aula de História. Usamos nesse artigo o conceito ligado à origem do termo em latim, que oscila entre “passar adiante”, “entregar” e “transmitir”. Assumimos que a tradição é a construção deliberada e intencional de certos modos de operar a transmissão de valores, códigos culturais, costumes, jeitos de ser, registros simbólicos, memórias, falas, crenças, bens, registros, narrativas. A tradição pode ser pensada também como um regime de conexões entre passado e futuro, operado no tempo presente. O tempo presente que nos interessa é a aula de História: um professor ou uma professora frente a uma classe de alunos e alunas, imersos no contexto brasileiro. Em geral, a estudar algo que “já passou”, que “já aconteceu”, e a dar algum sentido que aquele “algo” pode ter no mundo de hoje. Muitas questões aí se colocam. Este elemento do passado pode ajudar na vida do presente da classe de alunos e alunas? Ele indica um modo pelo qual as coisas “devem” ser feitas na atualidade, ou ele serve de inspiração para pensar o modo como elas “podem” ser feitas hoje? O elemento trazido do passado é algo que devemos “romper”, interrompendo sua circulação entre nós, ou é algo que devemos “repetir”, pois ele tem a ver com a nossa identidade e nos liga a certo território? Volta e meia aparece na aula de História a frase “isso é da nossa tradição”. Mas ela pode aparecer tanto como afirmativa – isso é da nossa tradição – como pode aparecer como pergunta – isso é da nossa tradição? Quando colocada na forma de pergunta, certa suspeita já recai sobre a suposta tradição. E é na história das questões de gênero e sexualidade que as duas formas – afirmação ou pergunta – mais duelam hoje em dia.

 

Tarde ensolarada, escola de ensino médio na região central de Porto Alegre. Aguardo no corredor enquanto a turma de alunos e alunas entra na sala, a estagiária foi a primeira a entrar. Preciso saber onde cada um senta, para então escolher o lugar onde me instalar para observar a aula, por isso fico para entrar por último. Percebo que os meninos estão todos encostados nas duas paredes do corredor, e aguardam as meninas entrarem. Depois que todas as meninas entraram, então eles começam a entrar. Não resisto e faço um comentário para alguns deles: “vocês aqui seguem a tradição, deixam as meninas entrarem primeiro na sala”. Responde um deles: “se a gente passa na frente delas, elas passam a mão na bunda da gente, essas gurias são assim hoje em dia”. Fico pasmo! Essa cena aconteceu muitos anos antes do recente episódio em que a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos afirmou “Vamos ensinar nossos meninos na escola a levar flores para as meninas, por que não? A abrir porta do carro para a mulher, por que não?[1]”.

 

Cruzam-se aqui a saudade de um determinado passado, e o desenho de um certo futuro nas relações de gênero, e estas duas possibilidades não coincidem. A polaridade binária que construímos acima pode ser levada adiante. A aula de História oscila entre um sentimento de nostalgia e uma euforia de mudança. Nostalgia é tristeza grande, causada pela falta de algo. É saudade de um momento vivido, tão bom, e do qual se está tão distante hoje em dia. É se perceber longe de coisas, pessoas, relações sociais, lugares, sensações, elementos queridos. A nostalgia pode provocar um forte desejo de retornar a esse cenário antigo, que nos era tão agradável. Quando em situações de mando e poder, pessoas nostálgicas podem querer não apenas retornar a antigos contextos, como podem forçar sociedades inteiras a retornar a estes idílicos momentos em que tudo estava em seu devido lugar. Quando a Ministra diz que os meninos devem levar flores para as meninas, e devem abrir a porta do carro para elas, não há aqui nenhuma criação, mas simples repetição nostálgica de um passado idealizado, onde todos os homens tinham carro e todas as mulheres recebiam buquês de flores destes mesmos homens. A novidade importante é afirmar que isso deve ser ensinado na escola, pois certamente nos tempos antigos isso não era matéria escolar, isso simplesmente “acontecia”. Agora virou matéria escolar! Há um evidente traço de nostalgia no lema do presidente eleito dos Estados Unidos Donald Trump “Make America Great Again” (fazer – ou tornar – a América grande novamente). Lema parecido teve a campanha presidencial de Ronald Reagan na eleição presidencial em 1980: “Reagan For President. Let’s make America great again” (Reagan para presidente. Vamos fazer a América grande novamente). A nostalgia remete a certa relação com o passado. Mas na aula de História também aparecem elementos da euforia com novas possibilidades de futuro, novos arranjos que rompem modos consolidados das relações de gênero.

 

Manhã fria e chuvosa, escola da zona sul de Porto Alegre, bastante distante do centro da cidade, turma de primeiro ano do ensino médio, alunos e alunas claramente oriundos de classes populares. Estou sentado no fundo da sala, cercado de meninos. Quatro meninas estão apresentando um cartaz com informações sobre a vida da mulher nas sociedades indígenas existentes no Brasil quando da chegada dos portugueses. Uma delas acentua com vigor que “não havia estupro e nem violência contra a mulher na sociedade indígena, embora todo mundo andasse sem roupa”, e outra das meninas completa “não é que nem agora, que a gente toda hora tem medo de ser estuprada pelos guris”. Um menino do fundo fala em voz alta “já começou (sic) os feminismos na aula, todo dia é assim agora”. Outra menina se manifesta “é o feminismo para acabar com o machismo”. Outra complementa “a gente vai ser engenheira enquanto tu fica (sic) lá no obrão”. Todo mundo cai na gargalhada. A aula segue. Na saída converso com a professora regente da classe, conto a cena, e ela explica que a palavra “obrão” é usada com frequência pelos meninos, que vão desistindo da escola ao longo do ensino médio, e vão trabalhar na construção civil, nos tantos condomínios populares do Minha Casa Minha Vida que estão sendo erguidos na região. Há certa conexão entre trabalhar na obra (ou no “obrão”) e virar homem como o pai, os irmãos mais velhos e os tios. Os meninos que ficam na escola estudando são por vezes vistos como menos masculinos do que aqueles que já estão “na obra”. A professora referiu um episódio em que três meninos que já haviam desistido de estudar foram aguardar a saída da turma em um dia de aulas aos sábados pela manhã, no meio do ano, para combinar uma festa entre todos e todas. Ao passar pelo grupo que reunia a classe que ainda estava estudando e os três que haviam desistido, escutou um comentário de uma das meninas “vocês estão muito bonitos, todos bronzeados em pleno inverno”, e um dos meninos trabalhadores respondeu “é que a gente passa todo dia na obra, tomando sol”, e outra menina comentou “e esses aqui tudo branquelo” referindo-se aos meninos que ainda estudavam na mesma classe com elas.

 

Como se discute em ARENDT (2011), a escola é um território ponte na articulação das tradições entre o mundo privado da casa e da família, e o mundo público dos adultos e das instituições. A disciplina de História cumpre papel importante nessa operação. A cena acima mostra certa erosão da autoridade escolar, que perde para o mercado e o regime de trabalho, a transformar os jovens em homens adultos. Meninos que permanecem na escola podem ser lidos como menos masculinos. E a escola pode ser vista como lugar feminino, o que aliás se verifica pelas estatísticas educacionais, a dar conta de que no Brasil as meninas estudam mais do que os meninos em média, embora depois venham a receber salário menor no mercado de trabalho[2]. Permanecer na escola, em particular no ensino médio, pode permitir que a História faça diferença na vida dos jovens. Mais ainda, que os conhecimentos aprendidos “afastem” os jovens das crenças familiares e religiosas. A escola é um ambiente mais plural do que a família ou a comunidade religiosa. É evidente certo temor nos dias de hoje com os aprendizados escolares, que estariam a transformar as mentes dos jovens, afastando-os das crenças familiares. Não por outro motivo, a reforma do ensino médio acentua fortemente essa etapa como preparação para o trabalho, já vincula escola com o mundo do trabalho, e afoga a possibilidade de uma formação crítica em relação ao mundo.

 

Tarde quente e ventosa. Há certo desassossego na classe de alunos e alunas, escola de ensino fundamental, nono ano, extremo da zona leste da cidade. O estagiário não está conseguindo coordenar a turma, que se agita, fala, interrompe a todo o momento a atividade proposta. Não chega a ser uma hostilidade em relação a ele ou a aula, é mais um estado de dispersão. Ele interpela a turma diretamente, perguntando “porque vocês estão assim hoje tão agitados”? Um aluno responde “a professora de Ciências também reclamou, ela disse que é a Primavera, é muito pólen no ar, a gente fica agitado”. Outro retruca separando bem as sílabas “é pó-len que tá afetando todo mundo”. Outro diz “é aquele pó do gesso hospitalar, aquele pó branco, ele deixa todo mundo ligado”. Muitos riem. Fica claro que o estagiário não percebeu que estão se referindo a cocaína em pó. Um menino fala em voz bem alta “por isso que tem que ser escola militarizada, para ter ordem e disciplina, expulsar quem bagunça”. Imediatamente se estabelece um debate, a revelar que o assunto já havia circulado entre a classe. Uma menina retruca se dirigindo ao que falou “mas tu ia ser o primeiro a ser expulso, olha o teu cabelo comprido, já não tem espaço prá colocar mais tatuagem”. Todo mundo concorda com ela, mas o menino insiste “eu ia ser expulso, mas tem que ser assim, regime militar”. Dois meninos de estilo afeminado entram no debate, afirmando que não tem nada a ver, eles querem vir para a escola do jeito que eles gostam, escola militar “castra” as pessoas diz um deles, termo que provoca novas risadas. Algumas meninas também se manifestam dizendo “eu não quero usar meu cabelo preso” e “eu gosto de inventar com as minhas roupas”. O menino que iniciou a polêmica insiste “naquela época não tinha assalto, não tinha roubo, a gente podia sair à noite e ninguém roubava o celular da gente”. Alguém retruca “tu nem viveu naquela época, como é que tu sabe?” Um outro menino interpela diretamente o estagiário de História: “era assim mesmo professor? Conta prá gente como é que era naquela época”. A aula de História passa a fazer diferença na vida da classe de alunos.

 

A qualidade de uma sociedade se mede pela qualidade do seu espaço público, aí incluída a escola e nela a disciplina de História, com garantias de livre manifestação da palavra, livre debate e livre interpelação. Família não é base da sociedade. Base da sociedade é espaço público democrático. Projeto civilizatório é trazer os sujeitos progressivamente ao espaço público, para aprendizado do convívio com a diferença. Boa parte da nostalgia do passado é um culto as cinzas, empurra os sujeitos de volta ao espaço privado – vide as propostas de educação doméstica ou homeschooling – ou então busca colonizar o território escolar com os valores das famílias – vide a proposição do “escola sem partido” de que professores não podem dizer em sala de aula nada que conflite com os valores das famílias. Não se vai à escola para repetir o que se ouviu na família. Se vai à escola para ter a euforia do novo, do pluralismo democrático, do convívio com a diferença e conhecer da produção científica. A aula de História ajuda a proliferar sentidos do viver, pois aborda sociedades outras, em tempos e territórios outros, com valores culturais diversos dos nossos.

 


 

NOTAS

[1] A fala da Ministra aconteceu no 8 de março de 2019 e pode ser conferida na íntegra na reportagem disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/celina/nos-vamos-ensinar-nossos-meninos-nas-escolas-levar-flores-para-as-meninas-diz-damares-23507911 (acesso em 10/03/2019)

[2] Dados acerca do desempenho mundial na progressão de estudos entre meninos e meninas podem ser obtidos consultando o The Global Gender Gap Report 2018, produzido anualmente pelo World Economic Forum, disponível para consulta em https://www.weforum.org/reports/the-global-gender-gap-report-2018

 


 

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A crise na educação. In.: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro.  São Paulo, Perspectiva, 2011 p. 221-247

 

 

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