HH Magazine
Coluna da Associação Brasileira de Ensino de História

Memórias de leituras para um ensino de História emancipatório

 

Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão

Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte

(Divino Maravilhoso, Gil e Caetano, 1968)

 

No final do segundo semestre de 2018, enquanto dialogava com graduandas do curso de Pedagogia em uma das aulas de Metodologia do Ensino de História em que estudávamos a história do ensino de História no Brasil, me dei conta da inversão de expectativas para a prática docente entre o período que cursei licenciatura em História (1985-1989) e atuei como professora no ensino fundamental (1990 – 2012) e o atual contexto de formação e atuação docente.

Em meus tempos de formação inicial e atuação na educação básica, período de redemocratização do Brasil, vivenciávamos movimentos docentes que nos encorajavam a ousar, experimentar planos de aula que se negavam a reproduzir o ensino de História enfadonho baseado no eurocentrismo como abordou Nilton Mullet Pereira na coluna de fevereiro. Planejávamos com liberdade aulas que rompiam com a memorização de fatos, datas e nomes da História Oficial, e descortinavam estudos e diálogos sobre histórias de sujeitos múltiplos, de diferentes etnias, gêneros, classes sociais, territórios, em suas lutas, conflitos, encontros e desencontros que constituem e constituíram a história do Brasil.  Víamos serem transformadas em políticas públicas educacionais (leis 10.639/2003 e 11.645/2008), as reinvindicações de movimentos sociais que lutavam para que a participação dos africanos, afrodescendentes e indígenas na nossa história fosse valorizada.

Com estas conquistas ainda em processo de consolidação, conforme refletiu Giovani José da Silva na  coluna de janeiro sobre o desafio da História Indígena e de  seu ensino no Brasil, presenciamos, atualmente, tempos de perseguição, de tentativas de criminalização do fazer docente, de policiamento. Como escreveu Luis Fernando Cerri, nesta coluna, em  dezembro, temos a impressão de que retrocedemos aos tempos da democracia não consolidada dos  anos 1980, mas agora ao invés do vislumbrar possibilidades, enfrentamos ameaças.

Tempos difíceis que não podem nos desanimar, que não podem inibir a criatividade e autonomia das futuras professoras em formação. Tempos que nos fazem recordar nossa identificação “com a produção, as pessoas e os contextos que surgem no fim da ditadura militar brasileira (1964 – 1985), no processo em que se pensa e se faz a história ensinada como um elemento fundamental da reconstrução da democracia brasileira” (CERRI, 2018).

Ao ler este trecho do primeiro artigo publicado nesta coluna da ABEH, rememorei minhas leituras de graduanda e professora iniciante e senti o desejo de aproveitar este espaço para compartilhá-las com as novas gerações. Retomo aqui quatro publicações dos anos 1980- 1990 que nutriram os saberes e fazeres da equipe de professoras de História com quem planejava aulas no cotidiano escolar: Repensando a História (1984), organizado por Marcos A. da Silva e patrocinado pela Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH); O ensino de História: revisão urgente (1986) de Conceição Cabrini, Heleneci Ciampi, Maria do Pilar Vieira, Maria do Rosário Peixoto e Vavy Pacheco Borges; O ensino de História e a criação do fato (1988) com textos de Jaime Pinsky, Elza Nadai, Paulo Miceli, Circe M. F. Bittencourt, Nicholas Davies, Maria Carolina Bovério Galzerani; e Dossiê Ensino de História (1992/1993),  publicado na Revista Brasileira de História da ANPUH, v. 13, n. 25/26, com artigos de Elza Nadai, Katia Abud, Ernesta Zamboni, Circe Bittencourt, Luiz Carlos Villalta, Lídia Possas, Helenice Ciampi e José Ricardo Oriá Fernandes.

Nadai (1992/1993) narrou a história do ensino de História no Brasil que se constituiu entre experiências hegemônicas baseadas na memorização de fatos, datas e nomes vinculados às ações de heróis brancos da História oficial e eurocêntrica, e diversas propostas de ensino e práticas docentes que buscavam contribuir para a compreensão da multiplicidade de relações e grupos que constituem o processo histórico. Ao final, concluiu, de forma esperançosa, que “a História, a mais política das ciências sociais, tem ressurgido das cinzas (onde a ditadura pensou sepultá-la), tal qual Fênix, mais fortalecida do que nunca. Apesar de ainda existirem ‘adolescentes que detestam a História’ ou que não saibam tantos nomes e datas como antigamente, dificilmente encontramos quem desconheça o papel da História para ajudá-lo na compreensão de si, dos outros e do lugar que ocupamos na sociedade e no dever histórico” (NADAI, 1992/1993, p. 160).

Conceição Cabrini, Helenice Ciampi e outras professoras pesquisadoras (1986) relataram e refletiram sobre uma das experiências que impulsionaram este olhar esperançoso de Elza Nadai para o ensino de História. Por meio deste registro,  incentivaram o diálogo e a ação conjunta de profissionais que atuam no ensino superior e na educação básica,  para a construção de um ensino de História em que professoras e estudantes participem como protagonistas da história e da produção de um conhecimento histórico que explique “os ‘comos’ e os ‘porques’ das transformações sociais, ficando atentos às diferenças, às diversidades e às especificidades das diversas sociedades” e destrua “o mito do saber acabado e da história como verdade absoluta” (CABRINI et. al. 1986, p. 29).

Este diálogo entre pesquisadoras e professoras da História que atuam em diferentes níveis de ensino foi o propulsor da publicação de Repensando a História. Na nota introdutória à esta coletânea de artigos, Marcos Silva ressaltou que “ao invés de desqualificarem uns aos outros como ‘ignorantes’ […], os trabalhadores de 1º, 2º e 3º graus projetam suas experiências para o campo em comum do conhecimento como processo em permanente elaboração” (SILVA 1984, p. 11).

As preocupações extraídas das publicações aqui destacadas permearam também as reflexões de Déa Fenelon em outro texto que vale a pena reler para refletirmos sobre a formação universitária dos pesquisadores-professores de História que precisa considerar os desafios da educação básica. Em artigo que registra uma conferência  pronunciada por Déa, no XI Simpósio Nacional da ANPUH, em João Pessoa – PB, em julho de 1981, ela analisa que  “dissociado da prática, o fazer História se torna abstrato e a História, enquanto disciplina, não faz mais do que reproduzir um conhecimento desarticulado, despolitizado, fragmentado, especializado, cada vez mais tomado como prática educativa destinada a desenvolver nos alunos o mito da ‘memória nacional’, com seus ritos e maniqueísmos de vilões e heróis. […]. Por isto estamos insistindo na necessidade de não apenas valorizar, mas realmente começarmos a realizar a pesquisa e a produção, desde o curso de graduação e de todos os níveis de ensino. […] a problematização do concreto, o necessário posicionamento no presente, a busca de compreensão crítica de nosso passado, sem falsos dilantismos ou simples prazer de erudição. […]. Queremos um profissional de História no qual as pessoas possam se reconhecer e se identificar, porque para nós a História é uma experiência que deve ser também concretizada no cotidiano, porque é a partir dela que construiremos o hoje e o futuro”.

Voltando à nota introdutória do Repensando a História, Marcos a conclui com um alerta que precisamos fazer  ecoar em  tempos de Escola sem Partido, de reforma do ensino médio que apagou a História do currículo escolar, de um Ministério da Educação ocupado por gestores militares e civis que não participaram, de forma dialógica,  da produção do conhecimento educacional nos últimos trinta anos: “[…] o debate sobre a importância do conhecimento histórico como patrimônio coletivo é, portanto, urgente e necessário, antes que sua efetiva perda pese para a formação social brasileira […]” (SILVA, 1984, p. 11).  Somamos a este alerta, os apontamentos de Paulo Miceli (1988) registrados nas considerações finais do texto em que pensava sobre como ensinar “outras histórias do Brasil” que rompessem com história que tentava doutrinar os jovens para acreditar que viviam em um país sem conflitos, sem preconceitos: “é necessário ter coragem de […] burlar vigilâncias, criar e aceitar novos desafios e experiências. É necessário ter coragem de lutar de todas as formas para que, na voz de seus profissionais, a história ganhe respeito e importância, mesmo quando isso pareça impossível” (MICELI, 1988, p. 41).

É possível encontrar indícios crescentes  desta coragem que redefiniu o lugar do ensino de História no Brasil, dos anos 1980 até hoje, em revistas científicas que publicam artigos e relatos de experiências sobre o ensino de História no Brasil como Revista História Hoje, publicação institucional da Associação Nacional de História (ANPUH);  História & Ensino publicada pelo  Laboratório de Ensino de História do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL); Cadernos de História publicada, até 2008, pelo  Centro de Documentação e Pesquisa em História, Laboratório de Ensino e Aprendizagem em História do  Instituto de História e pela área de História da Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Ensino Em-Revista da Faculdade de Educação da UFU; Opsis, revista do Departamento de História e Ciências Sociais do Campus Catalão da  Universidade Federal de Goiás (UFG) e outros dossiês sobre o ensino de História cuidadosamente levantados pelo Laboratório de Ensino de História e Educação da  Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Ao relembrar estas escritas dos anos 1980 e 1990, somadas às produções e experiências cada vez mais registradas em revistas científicas, queremos fortalecer a potência de nosso agir coletivo e democrático nas universidades e escolas de educação básica. É tempo de nos unir para assegurarmos e avançarmos nas conquistas que obtivemos para a construção de uma educação e de um ensino de história emancipatórios.  Por mais desalentador que o contexto atual nos apresente, vale lembrar, mais uma vez, o que Bittencourt (1992/1993, p. 193) ressalta: “a história do ensino de História tem se caracterizado por uma longa trajetória de confrontos e disputas entre intelectuais e políticos encarregados da organização e institucionalização do saber escolar”. Precisamos nos manter firmes neste movimento para fazer valer as propostas de formação docente e ensino de História comprometidas com o agir social baseado em relações democráticas e plurais.

 


REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Circe M. Fernandes. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana. Revista Brasileira de História, v. 13, n.25/26, pp. 193-221, set. 1992/ago. 1993.

CABRINI, Conceição e outras. O ensino de História: revisão urgente. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986.

FENELON, Déa Ribeiro. A formação do profissional de história e a realidade do ensino. Tempos Históricos, v.12, n.1,  pp. 23-35, 2008.

MICELI, Paulo. Por outras histórias do Brasil. In: PINSKY, Jaime (Org.). O ensino de História e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 1988.

NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectivas. Revista Brasileira de História, v. 13, n.25/26, pp. 143-160, set. 1992/ago. 1993.

SILVA, Marcos A. da (Org.). Repensando a História. Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero, 1984.

 

Cr;edito da imagem: Leitores em uma biblioteca popular no Rio de Janeiro, 1972. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.

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