Tradução de Temístocles Cezar – UFRGS
Os economistas estão no volante de nossa sociedade agora, quando deveriam estar no banco de trás.
John Maynard Keynes (1946)
Passado um ano, o surto da Covid-19 e sua rápida disseminação perturbou nossas temporalidades cotidianas. O vírus impôs-se como imperioso mestre do tempo e a curta história da epidemia poderia ser representada como uma sucessão de batalhas para recuperar o controle. Este é o caso da implementação de confinamentos, toques de recolher e, mais recentemente, a campanha de vacinação. Porém, a descoberta de variantes levanta dúvidas e inquietações: por sua capacidade de sofrer mutações constantes, o vírus inevitavelmente está um passo à frente e nós um passo atrás.
Janeiro de 2020, foi um ano atrás: a Covid-19 já estava lá. Ela já tinha infectado a cidade de Wuhan e estava a caminho. Foram anunciados focos e, logo, a OMS falaria em epidemia, e em seguida se declararia o estado de pandemia (11 de março). Há um ano não sabíamos, e o mundo ocidental, apanhado de improviso, demorou a querer e depois a poder ver o que era e iria acarretar este novo patógeno: imprevisto, mas não imprevisível. Um ano depois, certamente não sabemos tudo sobre ele e seus efeitos (longe disso), uma vez que ele continua ainda ativo e mortal, senão mais, muito mais, e uma vez que as primeiras vacinas finalmente permitirão combatê-lo.
Longe das palavras lenientes ou balbuciantes do início, longe das proclamações de resiliência instantânea, longe das “retomadas” que são esperadas ou decretadas muito rapidamente após alguns meses, muito longe das negações como as de Trump e de seus seguidores, nós sabemos que estamos enfrentando uma crise que se tornou um “fato social total”, para usar o conceito de Marcel Mauss, e um fato social total mundial: ela “pôs em movimento” as sociedades e suas instituições em sua “totalidade”. Em seu último livro, Les capitalismes à l’épreuve de la pandemie, o economista Robert Boyer demonstrou a fecundidade de tal abordagem. Mais limitado é meu propósito.
Com efeito, em um artigo anterior “Perturbações no presentismo”[1], eu me esforcei para, no próprio instante, apontar o que o surto do coronavírus havia mudado em nossa relação com o tempo. Quase um ano depois, o que dizer das temporalidades inéditas geradas por ele, aquelas que ele perturbou? Outras emergiram desde então? As “perturbações” no presentismo tornaram-se ainda mais acentuadas? E, acima de tudo, os conflitos entre essas várias temporalidades agravaram-se? Do fato social total e mundial, eu reterei apenas seus componentes temporais.
O surto do vírus e sua rápida disseminação abrem um novo tempo que é uma forma de kairós: ele vem romper o curso do tempo cronos ordinário. Daí, aqui e ali, entre alguns fiéis, respostas religiosas mais ou menos afirmadas, até mesmo veementes. Nada há aqui de surpreendente, visto que associar epidemias com cóleras divinas é um fato muito antigo. Nos movimentamos então no universo da punição, da expiação, muitas vezes também da busca de bodes expiatórios. Mas se ficarmos apenas no registro do tempo cronos, a propagação do vírus pode ser vista como a de uma bomba de fragmentação. Com efeito, ele contagiará ou afetará passo a passo as múltiplas temporalidades que configuram o cotidiano de nossas sociedades e de nossas vidas, até que se afirme como mestre imperioso do tempo.
Como sempre, a verdadeira questão é quem está no volante? Assim, poder-se-ia representar ainda a curta história da epidemia como uma sucessão de batalhas (até aqui malsucedidas) travadas por cronos para recuperar o controle. A recente descoberta de variantes mais contagiosas mostra que a luta não acabou. Como Proteu, ele escapa da luta e leva, se assim ouso dizer, sua vida de vírus mutante que passa de hospedeiro em hospedeiro de acordo com sua própria temporalidade (quanto mais ele circula, mais se transforma aumentando a chance de novas variantes aparecerem).
O tempo do vírus
Em que contexto temporal ele se intromete? Ele surge em sociedades onde o presentismo domina o cotidiano. Tweets, as mensagens de texto (sms), streaming de mídia, redes sociais, grandes plataformas e cotações de ações ao vivo definem o ritmo; em suma, a urgência reina, por vezes sua tirania. Com a urgência, que é uma forma de presente concentrado, vem quase inevitavelmente o atraso. Declaramos a urgência e denunciamos o atraso. Os dois formam um casal. Para responder à emergência e afastar o espectro do atraso, contamos então com a aceleração, e com uma aceleração que deve ser cada vez mais veloz.
A panóplia das primeiras respostas à epidemia se encaixa bem neste quadro. Altamente significativo a este respeito é a votação do estado de urgência sanitária pelo Parlamento francês (23 de março de 2020, prorrogado em 17 de outubro e prolongado por enquanto até 16 de fevereiro de 2021). Podemos notar uma aceleração no uso desse procedimento que instaura uma ruptura com o tempo ordinário da vida democrática. Nesse caso, a lei deve permitir, entre outras coisas, que as autoridades respondam mais rapidamente às evoluções da situação sanitária.
Nas primeiras semanas da epidemia, as demandas da cena midiática-presentista fizeram com que, nas bancadas de televisão, os economistas e os cientistas políticos fossem substituídos por epidemiologistas, virologistas, infectologistas, médicos urgentistas que rapidamente mostraram os impasses de uma ciência que gostaríamos de ver ser feita ao vivo. Eles ocuparam o assento do motorista, mas parecia haver mais de um. Mais seriamente, como uma situação de incerteza poderia se dobrar às restrições da emergência da mídia? Como a tentativa e o erro inerentes a todas as pesquisas não poderiam ser reduzidos à expressão de simples opiniões diferentes, até mesmo divergentes? Mesmo que os pesquisadores tenham sido os primeiros a reconhecer (para se felicitar) que nunca haviam avançado tão rapidamente no conhecimento de um vírus e que os Estados nunca haviam investido tantos recursos no desenvolvimento de uma vacina. Mas o artigo primeiro da lei da aceleração é que ela é interminável: quanto mais rápido se vai, mais rápido se tem que ir.
No entanto, a mídia, em nome de seu dever de informar, comprometeu-se a colocar de volta a cada dia, para falar com familiaridade, uma moeda na máquina. Produzindo, por fim, o efeito contrário ao anunciado: nem sempre uma iluminação melhor, mas mantendo a ansiedade, pois cada avanço era imediatamente seguido de novas dúvidas e do apontamento de potenciais inquietações à maneira de: “E se decidimos fazer isso, então não há o risco de quê …?”. Como se, com uma porta abrindo uma fresta, fosse necessário primeiro inventariar todos os perigos que poderiam estar atrás dela antes de arriscar um pé dentro. Isso equivale a pretender lutar contra o medo alimentando-o: o presente é insuportável, mas o futuro é ameaçador. Há urgência, mas não deixa de ser menos urgente esperar! Com a chegada da vacina, foi ouvida imediatamente a musiquinha de “Esperamos até termos um pouco mais de distanciamento!”. E foi assim que o antigo preceito da festina lente[2] pôde ser repintado como estratégia vacinal.
Com a decisão tomada pelos Estados de confinar e, portanto, de arbitrar a favor da vida em detrimento da economia, os tempos da economia foram postos em causa, a começar pelo postulado segundo o qual “os mercados seriam o melhor meio para socializar visões sobre o futuro”.[3] Como forjar previsões informadas quando o próprio princípio da racionalidade econômica vacila? Se as teorias financeiras buscaram aclimatar o risco (em 2008, a crise dos subprimes mostrou dolorosamente os limites), então elas são impotentes diante da incerteza, de uma incerteza radical. Comprar, vender? A volatilidade reina e as bolsas despencam. Diante dessa situação de aporia, o mimetismo, como aponta Robert Boyer, tem sido um recurso, seja para investidores seja para Estados, em virtude do princípio de que é melhor errar juntos do que correr o risco de ter razão sozinho.
É assim que podemos compreender o papel desempenhado, em março de 2020, pelo modelo do Imperial College sobre a propagação e mortalidade da epidemia. Na Europa, tem servido de referência para o estabelecimento de várias estratégias nacionais. Com os múltiplos prejuízos causados pela crise do coronavírus, as finanças do mercado – que é um poderoso motor do presentismo – puderam entender que fazer do seu ultrabreve tempo a medida de todos os outros, tanto da economia quanto da sociedade, em todos os seus componentes, não é defensável duravelmente. Poder-se-ia sonhar com uma inversão da hierarquia das temporalidades que só os Estados, desde que ajam em conjunto, poderiam impor. E ainda porque os GAFAM[4] tornaram-se poderosos ordenadores do tempo, cujo domínio aumentou mais na pandemia.
Outra expressão do presentismo que a crise deitou por terra é a do just in time[5], amplamente disseminada como meio de reduzir os custos. Produz-se sob encomenda e não se guarda estoque. Vimos no que resultou essa lógica aplicada à saúde: escassez de máscaras, de respiradores e de princípios ativos. Todos correram, ao mesmo tempo, para os mesmos fornecedores na Ásia. “Os gestores redescobriram que o na hora certa garante custos baixos apenas se o ambiente for estável e previsível”.[6] Por quanto tempo essa redescoberta manter-se-á? Em todo caso, foi então que o mantra da “antecipação” espalhou-se por todos os lados para vituperar contra sua ausência. Era evidentemente um jogo justo, mas quem antecipou, embora durante décadas a saúde tenha sido vista como um custo que precisava ser contido, se não reduzido? Não testemunha a crise interminável dos hospitais?
Ao par urgência-atraso faz-se necessário adicionar a antecipação. Mas o que significa antecipar em um regime presentista, mesmo que quase tudo possa ser feito online e que alguns cliques devam ser suficientes para ativar o just in time para responder sem atraso à urgência? Assim, quando diante da progressão exponencial das contaminações, o mundo se torna confinado e mergulha na incerteza radical, não deveríamos reconhecer que o tempo do vírus se tornou o mestre? Ele é quem está no assento do motorista. Como o tempo cronos não consegue retomar o controle, atua-se indiretamente sobre o tempo do vírus. Há um paradoxo aqui: para acelerar a saída da crise, somos reduzidos a suspender o tempo do mundo, o que tem por efeito retardar a circulação do vírus. Estamos entre frear e acelerar.
Nem é preciso dizer que a medicina não pode se limitar a seus antigos gestos profiláticos. Na ausência de cura, ela gostaria pelo menos de conseguir articular um diagnóstico e um prognóstico um pouco certo, ou seja, converter o tempo do início da doença, desconhecido, depois mal conhecido – com suas fases, seus momentos críticos – em um tempo cronos que pode ser dividido em dias e semanas. Os construtores dos modelos ou cenários da epidemia, por sua vez, não têm escolha a não ser adaptar os modelos construídos para epidemias anteriores (SARS e H1N1), e é somente com o acúmulo de novos dados que eles podem especificar gradativamente o custeio dos vários parâmetros. Consequentemente, existem margens de incerteza e divergências nas previsões de um modelo para outro. Embora alguns sejam mais “alarmistas” do que outros, todos enfrentam a dificuldade de testar gradualmente os efeitos das várias decisões tomadas. Eles desenham cenários ou fazem previsões? Anunciam o que vai acontecer ou, como os profetas antigos, o que vai acontecer a não ser quê…? Como fazer bom uso desses modelos para apoio à decisão em situações de incerteza? São tantas questões que têm sido colocadas dia após dia.
Nessas condições, compreende-se melhor a tentação de mimetismo entre os tomadores de decisão política, especialmente se for reforçada pelo uso de um modelo de referência (o do Imperial College por um tempo). Tanto mais que em poucas semanas o Estado se tornou o primeiro e o último recurso: em termos de urgência sanitária, da urgência econômica, da urgência social. Falou-se logo do “retorno” do Estado, apenas para denunciar imediatamente seus fardos. Ao declarar o estado de guerra, o Presidente da República tentou tornar-se dono dos relógios, pelo menos dos tempos sociais e políticos. Para o resto, o vírus continuou a ocupar o assento do motorista.
Com o confinamento, ele suspende, com efeito, o tempo ordinário e com o anúncio do desconfinamento, ele o reinicia. Ao indicar datas de referência (11 de maio, 15 de dezembro de 2020), estabelece-se uma cronologia e um horizonte em relação aos quais se focalizam as várias temporalidades econômicas, sociais e políticas que devem desencadear sua ressincronização. Mas, como já experimentamos, nada obriga o vírus a obedecer. Isso novamente leva a uma onda de protestos e explosões de descontentamentos: “nenhum rumo”, “nenhuma estratégia” e, claro, “falta de antecipação”! Há aqui uma forma de histerização[7] presentista aqui. Se chamo a atenção para as formas temporais que estruturam os debates e as controvérsias, isso obviamente não significa que se reduzam a elas e que elas sejam desprovidas de conteúdo.
O direito não permaneceu intocado pelo presentismo. Como poderia ser, já que as construções jurídicas são sempre operações sobre o tempo? A este respeito, a crise da Covid desempenhou um papel de acelerador. Foi uma oportunidade para fortalecer a judicialização da vida pública. Na França, várias reclamações legais contra funcionários foram feitas em tempo real, se não ao vivo. Por ser uma forma de ficar registrada, a reclamação para o tempo. Enquanto lá estiver, permanece-se, com efeito, no presente da queixa, enquanto o queixoso reivindica o lugar da vítima. Embora seja normal que um dirigente seja levado a prestar contas e responsabilizado por suas ações, chega um momento em que a ameaça de reclamações instantâneas (tão rápido quanto um tweet) diminui ou até suspende a ação.
A acusação de pôr em perigo a vida de outrem e o uso extensivo do princípio de precaução são todos instrumentos que transformam o futuro em processo judicial. Daí vem parte do que é, mais do que nunca, denunciado como a lentidão ou o peso da burocracia: os juristas dos órgãos públicos escrevem textos intermináveis que devem torná-los inatacáveis. Os políticos tendem a não assumirem suas responsabilidades com a administração, que por sua vez garante que todos os guarda-chuvas estejam abertos. Mas o longo percurso de procedimentos a respeitar origina inevitavelmente acusações de atrasos insuportáveis e de demoras inadmissíveis. Não podemos sair do círculo: urgência, aceleração, atraso, antecipação.
O ar do tempo presentista também possibilitou, desde que a crise se iniciou, mobilizar o conceito de resiliência: como se ela pudesse ser instantânea. Mesmo antes de o trauma acontecer ou ser verdadeiro, alguns políticos lançavam este outro mantra da comunicação. Já que se parabenizar pela resiliência de uns e de outros, dos franceses em geral, era uma forma de fingir que o mais difícil ficou para trás e que eles haviam resistido magnificamente! A resiliência também é absorvida pela urgência. Outra fórmula, amplamente mobilizada nas primeiras semanas, inclusive pelo chefe de Estado, foi a do “mundo antes” e do “mundo depois”. Nada será como dantes, não deverá mais ser como outrora.
A ilusão de um ano zero faz parte do universo presentista para o qual a duração quase se tornou uma palavra obscena. Como se as reconfigurações que ocorrerão depois de controlada a crise sanitárias não dependessem de grandes tendências, principalmente da economia, que preexistiam à pandemia. Robert Boyer cita um estudo mostrando que os efeitos das principais epidemias ao longo da história estendem-se por décadas. O apelo por um mundo posterior diferente, se não muito diferente, também foi lançado por aqueles que acreditam que a epidemia é a oportunidade (kairós) de apressar a entrada em outro mundo. Deve-se utiliza-lo como um acelerador para precipitar o fim do capitalismo (neoliberal) e, ao mesmo tempo, para pelo menos atrasar a possível sexta extinção de espécies que ameaçam. Entrando em cena, a emergência climática se soma às demais e coloca a difícil questão de sua hierarquia: qual é a mais urgente? Em todo caso, oscilamos sempre entre urgência, desaceleração e aceleração. Contudo, desta vez trata-se de acelerar para desacelerar melhor. Os mesmos operadores temporais são mobilizados, mas, dessa vez, para colocá-los a serviço de políticas mais ou menos radicais.
Com a vacina, finalmente, parece que se escapa da jaula presentista. Com ela, cujo progresso acompanhamos semana após semana até a confirmação de sua chegada e depois de sua certificação, há uma verdadeira abertura para o futuro e um novo horizonte emerge.
Ele é a arma que permitirá a “saída do túnel”. Chegando à Europa na véspera de Natal (data que pode não ter sido escolhida por acaso), ela é esperada como uma espécie de messias. Não por todos, bem entendido. Pelo contrário, pode-se reconhecer nela uma obra do diabo ou do Grande Satã! Fantasias, oposições, medos, questionamentos, que prosperam nas redes sociais e notadamente além delas, traduzem, do ponto de vista da relação com o tempo (o único que me interessa aqui), dobras presentistas. Se até então o vírus permanecesse, em última instância, como o mestre do tempo, a vacina deve ser capaz de tomar o seu lugar: o tempo cronos deverá, finalmente, reassumir o volante.
Salvo que a descoberta de mutações (Reino Unido, África do Sul e Brasil) reviver dúvidas e inquietações. O vírus-Proteu está sempre um passo à frente e nós um passo atrás. É impressionante, mas não surpreendente, como os calendários de vacinação (recém definidos) e as campanhas (recém lançadas) são apanhados no vórtice do trio infernal da urgência, aceleração, atraso. O governo francês considerou preferível ou hábil, ou as duas coisas, optar pela festina lente, que foi imediatamente denunciada como lentidão inadmissível, até criminosa, e atraso incompreensível em relação aos nossos vizinhos. De repente, o horizonte recua. Enquanto há uma urgência, cada vez mais urgente, por causa das mutações do vírus, mais se faz necessário acelerar. Trata-se, mais uma vez, de uma corrida de velocidade. Sem entrar na discussão dos próprios argumentos, limito-me a estar atento à retórica temporal que os informa e que mais ou menos todos os atores compartilham. Algumas pessoas não hesitam em fazer um cavalo-de-pau: um dia é a aceleração que desejam e, no dia seguinte, sua cólera exige mais lentidão. Mas tudo se desenrola dentro da mesma jaula presentista, incluindo suas palinódias.
Intervindo nesse contexto, a crise da Covid-19 pode ter importunado, mas não abalado o presentismo. Ao trazer à tona as características mais salientes e injunções contraditórias, ela operou como um catalisador ou revelador. Mas ela fez mais e também o fortaleceu. Deveras, a vida confinada que, para muitos (mas não para todos), tem sido uma vivência conectada, o desenvolvimento do teletrabalho, o aumento do uso dos serviços de grandes plataformas, são todos fatores que aceleraram a transição para uma “condição digital” e, portanto, fundamentalmente presentista. A dependências das telas e o controle das grandes plataformas (que viram suas valorizações no mercado de ações subirem acentuadamente) têm se fortalecido, mesmo que, ao contrário, o tempo de confinamento tenha sido visto, por alguns, como uma oportunidade de sair da urgência ordinárias com base na desaceleração. Saber aproveitar o tempo poderia ser uma nova regra de vida. Trata-se de um luxo, a disposição de nichos dentro da jaula presentista, ou de um movimento que se amplificará e dela se sairá de verdade?
Além do presentismo
Paralelamente às reações que procuram responder na urgência, o vírus suscitou questões que nos obrigaram a olhar para trás: para o passado imediato ou em direção a um passado distante. Se com ele se abre um novo tempo, uma forma de kairós, ele não surge do nada, nem geográfica nem cronologicamente. Ele tem mesmo uma longa história por trás dele. Talvez inédita, certamente não é sem precedentes, pois humanidade e epidemia caminham juntas pelo menos desde os primórdios da agricultura e da domesticação dos animais. Desta longa de coabitação, a história, evidentemente, só reteve os episódios mais graves. Na primavera de 2020, voltamos então para os historiadores da medicina e das epidemias.
Foi uma oportunidade de reativar o velho topos das lições da história, de lamentar que não foram aprendidas ou, pior ainda, que foram esquecidas. Desde a Grande Peste de 1348, que liquidou em poucos meses um terço da população da Europa, até a gripe de Hong Kong, que, em 1969, havia feito na França trinta mil mortes sob uma indiferença geral, passando pela gripe espanhola em 1918, que matou entre trinta e cinquenta milhões de pessoas em todo o mundo. Ao observar semelhanças e diferenças, já se dava um primeiro pano de fundo histórico para a atual pandemia. Os medos despertados pelas epidemias e as formas de enfrentá-los podiam assim ser colocados em perspectiva.
Além desse quadro geral, epidemias mais recentes (SARS, H1N1, EBOLA) deram origem a pesquisas científicas e a alertas específicos. De fato, os coronavírus pareciam bons candidatos para a propagação de uma pandemia global. Em seu livro de 2012, Spillover: Animal Infections and the New Human Pandemic, que teve um grande impacto, o jornalista, especialista em ciência, David Quammen se referiu a ele como o “Next Big One”[8]. Ele especificou que este vírus provavelmente seria caracterizado “por um alto nível de contagiosidade precedendo o aparecimento de sintomas notáveis, possibilitando assim a sua difusão pelas cidades e aeroportos como um anjo da morte”.[9] Em 2020, ele se tornou aquele que “previu” a epidemia da Covid-19.
Se os países asiáticos mais afetados por esses patógenos tivessem tomado medidas, então o mundo ocidental estimava que não teria sido diretamente afetado. O vírus H1N1, que teve o bom gosto de desaparecer rapidamente, havia se tornado, na França, sinônimo de excesso de precaução e de fiasco vacinal. Parem de falar sobre máscaras ou vacinódromos! Nos primeiros meses de 2020, as defasagens de um continente a outro tornaram-se evidentes. Os países asiáticos não estavam ignorando a antecipação, enquanto o Ocidente contava com sua capacidade de responder rapidamente. As máscaras, de volta, se assim posso dizer, como bumerangues no espaço público, mostraram a falta de fundamento para essa garantia.
Essas epidemias, que se poderia dizer de novas gerações, são zoonoses, cujo número, mostram os estudiosos, não para de aumentar. Devem-se à atividade humana e, em particular, à destruição cada vez mais ampla e rápida dos ecossistemas. O que deve ser retido aqui é a aceleração das epidemias, que precisa ser colocado diretamente em relação à Grande Aceleração, ou seja, o período que viu um crescimento exponencial desde a década de 1950 em todos os parâmetros da atividade humana na Terra. Não há razão, efetivamente, para que as pandemias sejam uma exceção à lei da aceleração. Elas pertencem à globalização, da qual são, se quisermos, um dos custos há muito negligenciados. Com elas temos um verdadeiro estado de nossa relação com a natureza selvagem.
Por meio dessas poucas observações dota-se a Covid-19 de uma história e a inscrevemos no tempo do mundo. Mas é preciso ir mais longe e sair da jaula presentista, procedendo por uma verdadeira reversão temporal: não mais nós, olhando com urgência para o vírus, mas o vírus olhando para esses hospedeiros acolhedores que os humanos se tornaram ultimamente, qualquer que seja o agente intermediário (talvez o vison) que o permitiu passar do morcego ao homem. Em outras palavras, a pandemia é apenas um episódio na história da evolução e um episódio em andamento. As variantes isoladas recentemente mostram, de fato, que, por suas capacidades de mutações constantes, o SARSCoV-2 inevitavelmente tem uma vantagem inicial. “Na luta antiga e permanente entre os micróbios e o homem”, escrevem os imunologistas David Morens e Anthony Fauci em um artigo recente, “os micróbios geneticamente adaptados têm a vantagem: eles nos surpreendem regularmente e muitas vezes nos pegam quando não estamos preparados”.[10] Nessa batalha em que o vírus não tem outro objetivo a não ser garantir sua reprodução, o atraso tende a estar do lado do hospedeiro.
Avancemos ainda mais. Comparados aos vírus, os humanos nasceram ontem. “O Homo sapiens remonta a cerca de 300.000 anos”, enquanto, Morens e Fauci apontam, “formas microbianas de vida persistiram neste planeta por 3,8 bilhões de anos”. E acrescentam com o devido toque de humor “It may be a matter of perspectives as to who is in the evolutionnary driver’s seat”.[11] Isso abre uma perspectiva totalmente nova, como se, para fazer outra imagem, tivéssemos que encaixar bilhões de anos no porta-malas do presentismo!
NOTAS
* Le Covid et le temps : “Who is in the driver’s seat”?. Publicado em AOC. Analyse, em 27/01/2021. (https://aoc.media/analyse/2021/01/26/le-covid-et-le-temps-who-is-in-the-drivers-seat/). “Who is in the driver’s seat”? (Quem está no assento do motorista?). Agradecemos ao professor François Hartog pela gentileza em autorizar a publicação deste artigo, bem como sua disposição para esclarecer algumas dúvidas relativas à tradução. (Nota do tradutor)
[1] “Troubles dans le présentisme”, AOC, 02/04/2020.
[2] “Apressa-te devagar”, oxímoro atribuído a Augusto, imperador romano de 27 a.C. até sua morte em 14 d.C. (Nota do tradutor)
[3] BOYER, Robert. Les capitalismes à l’épreuve de la pandémie. Paris: La Découverte, 2020, p. 49.
[4] GAFAM é o acrônimo das gigantes da Web: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsof. (Nota do tradutor)
[5] “Na hora certa”. (Nota do tradutor)
[6] BOYER, Robert. op. cit., p. 96.
[7] “Deixar-se levar de forma totalmente excessiva, até obsessiva, por uma questão da atualidade, uma figura política etc.”, https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/hystérisation/10910922. (Nota do tradutor)
[8] Em uma tradução aproximada a partir do contexto da obra: “O próximo (vírus) grande/importante”. (Nota do tradutor)
[9] QUAMMEN, David. Spillover: Animal Infections and the New Human Pandemic. New York/London: W.W. Norton & Company, 2012, pp. 335-336.
[10] MORENS, David/FAUCI, Anthony. “Emerging Pandemic Diseases: How We Got to COVID-19”. Cell, 182, September 3, 2020, p. 1078.
[11] “Pode ser uma questão de perspectivas de quem está no volante da evolução”. Idem. (Nota do tradutor)
Créditos da imagem: Bartolomé Esteban Murillo. Mujeres en la ventana (1655–1660). Óleo sobre tela – 125.1 x 104.5 cm – National Gallery of Art, Washington, DC, USA. Releitura POA Estudio, Córdoba.
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