A indiferença como barreira letal

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O cenário pandêmico nos colocou em estado de atenção. A nossa percepção está direcionada aos estatutos de enfraquecimento das existências que revelam  e  acentuam as margens políticas. Essas margens são mantidas pela sobrevalorização da precariedade e da fragilidade das existências que, em nome de um projeto de poder colonialista, capitalista, racista e patriarcal, são lançadas ao esquecimento.

A “naturalização” da violação, a assimetria política e a vulnerabilidade tecida ferramenta de despotencialização, estão expostas.  Estamos diante de processos cotidianos de relativização das vidas que, por estarem à distância dos que se compreendem como norma, são apreendidas como descartáveis. A relatividade extrema da vida dos outros sujeitos deixa entrever um estado contínuo de guerra. Nessa relação marcial, os outros sujeitos — lidos enquanto corpos descartáveis — têm um alvo em seus peitos. É preciso destacar que a indiferença, enquanto produto dessa relação assimétrica e bélica entre o sujeito que marca e suprime a subjetividade do outro, é produto de uma percepção singularmente colonial.

A administração representativa, valorativa e estética do mundo, sob as insígnias da relação entre o colonizador e o colonizado se mantém alicerçada no fetiche da desumanização. Nesse desejo se encontra a pretensão de subjetividade normativa, centralizadora e detentora de um domínio sui generis.  A destruição da vida se torna um discurso comum e a implementação ativa, simbólica e discursiva da violação perpassa pelo nosso cotidiano. É em nome da memória da colonização que é possível que os atores políticos menosprezem as mortes em decorrência do Covid-19 e, ao mesmo tempo, banalizem os fenecimentos construídos pela manutenção ideológica das “normalidades compulsórias” e genocidas em relação a raça, ao gênero e a classe.

A suposta neutralidade, a relativização e o silêncio diante de mortes dos que são apresentados e apresentadas continuamente como “os abjetos” demonstra “as zonas inabitáveis” constituídas e mantidas pelas técnicas de poder, como apresenta Judith Butler, em Corpos que importam.

As figuras e os lastros coloniais que fomentam a memória de consumo dos corpos, a vulgarização das vidas e a construção contínua do outro como o abjeto, o inimigo ou o criminoso, sustentam uma organização geográfica da morte. A negação da cidadania dos que são forjados como descartáveis descreve a implementação refinada e altamente articulada do necropoder. A fragmentação dos espaços, acessos e possibilidades de reconhecimento fomentam o que Mbembe descreveu como “múltiplas maneiras de matar”. Dentre essas inúmeras maneiras de exterminar está a apresentação contínua de “corpos vazios”, destituídos de subjetividade e que estão condicionados ao perecimento.

Trata-se de um “ideal civilizatório” que, em nome de suas visões restritivas e dos seus valores manchados de sague, hierarquiza a condição humana, como demonstra Kabengele Munanga, em Negritude: usos e sentidos. Os resultados dessa composição supostamente civilizatória e de seus interesses genocidas são múltiplos. A descrição seletiva e estereotipada dos corpos, enquanto técnica de operação da implementação colonial, retroalimenta o terror direcionado aos que são os eleitos como os anormais. A seleção do “outro” é constituída pelo pressuposto político de homogeneidade. Essa marcação da “exterioridade radical”, como define Mbembe na sua Crítica da Razão negra,  banaliza as agressões cotidianas. O “humor depreciativo”  ocorre como arma de regulação da humilhação, como aponta Adilson Moreira. A bala encontra, até mesmo dentro de casa, o corpo de João Pedro.

Esse “ideal civilizatório” é perverso em sua forma e em seu conteúdo. Ele desalinha o encontro, pois parte de uma assimetria abismal entre os sujeitos. Esse ideal, enquanto gestão do espaço político, repele o que é diferente subvaloriza a sua presença. Os que propõe a sua articulação consomem o que Krenak chama de “vaidade dessa humanidade”, isto é, a destruição do comum, em nome da resistência à coabitação. A indiferença diante das mortes, enquanto resultados da engenharia política de destruição, constrói as barreiras letais. Essas barreiras impendem que os outros sujeitos sejam reconhecidos. Essas paredes devem ser destruídas através da solidariedade insurgente entre “desprezíveis”, pois como nos lembra Fanon em Os condenados da terra, o sujeito colonizado “liberta-se em e pela violência. Esta prática ilumina o agente por que indica os meios e o fim.”

 

 

 


REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. Tradução de Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: n-1 edições, 2019.

FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Tradução de Serafim Ferreira. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2019.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2019.

MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Pólen, 2019.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. (Coleção Cultura Negra e identidades)

 

 

 


Créditos na imagem: Alex Pazuello/Semcom;Fotos Públicas.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago Teixeira Santos

Professor do Departamento de Filosofia da PUC minas. Professor da Plataforma Feminismos Plurais. Mestre em Filosofia pela FAJE. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Autor do livro Inflexões éticas. Colunista da Revista Senso. E-mail: thigoteixeiraf@gmail.com

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