Por ocasião da celebração do bicentenário da independência do Brasil (2022) se destacaram recentemente reflexões e análises sobre os estudos literários brasileiros. Com foco especial nas décadas finais do século XX é possível recolher alguns títulos de escritores que se dedicaram a elaborar a representação literária do jovem país, tendo como objeto central de suas criações o problema da nacionalidade, da pátria e do ser brasileiro e brasileira, num contexto das transformações socioculturais e econômicas contemporâneas aceleradas.
Tendo em vista que a literatura não pode ser tratada como um território fechado em si mesmo, sua expressão reflete, para além das relações de causa e efeito, as mudanças, tensões e angústias pelas quais passam a população e a sociedade de cada país ou estado-nacional. Assim, não poderia deixar de ser exemplar que as obras e títulos literários de maior repercussão social e cultural, fossem exatamente aquelas que trazem palavras sobre estas estruturas de sentido, ou sentimento, predominantes em diferentes períodos históricos (WILLIAMS, 1979). É o que acontece quando se observa a lista de títulos e obras, que servem de base para esse breve texto reflexivo.
Lembrando Nelson Werneck Sodré (1995), podemos dizer que as obras e títulos destacados aqui, seguindo suas orientações metodológicas, fundamentam-se na máxima segundo a qual somente quando os “escritores se aproximam da vida, isto é, dos que o rodeia, da terra, da gente, dos dramas e dos problemas próprios do nosso meio e do nosso tempo, elaboram uma literatura peculiar, original”, é quando temos a expressão artística digna desse nome. Em nossa lista exploratória encontramos alguns deles:
a) Brasileiro: profissão esperança, Paulo Pontes, 1970; b) Que país é este? Millor Fernandes, 1978; c) Que país é este? Affonso Romano de Sant’Anna, 1980; d) Não verás país nenhum. Inácio de Loyola Brandão, 1981; e) A Morte do Brasil, Ledo Ivo, 1984; f) Viva o povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro, 1984; h) O primeiro Brasileiro, Gilberto Vilar, 1995.
São obras e títulos que revelam aspectos da dialética presente entre o autor, a obra e a sociedade envolvente. Com esta lista se pode seguir trajetos de diferentes vertentes que certamente vão abalar as estruturas sedimentadas pelo senso comum, muito embora estejam enraizadas no cotidiano da população, fazem emergir sentidos e sentimentos fluídos e dispersos subjacentes. Tal perspectiva panorâmica torna-se particularmente significativa, considerando que as últimas décadas transcorridas pelo país, apontam para obstáculos abissais. Em diferentes momentos da história recente se colhem expressões de profundo ceticismo nacional, tais como: “décadas perdidas”[1]; “o Brasil morreu”; “fim do Brasil”; “o suicídio de uma nação”[2]; etc. Tal cenário contrasta com os ufanismos expressos em outros momentos da história, especialmente após a segunda guerra: “país do futuro”; “país que vai pra frente”; “deus é brasileiro”; etc.
No entanto, a partir das décadas de 1980 e 1990, deparamo-nos com um cenário de crises sociais e econômicas que desmoronam aquela atmosfera ilusória, fruto de investimentos promovidos tanto na economia como no imaginário social corrente: o “milagre econômico” da década de 1970.
A propósito dessas considerações sobre o ufanismo e o pessimismo em relação ao país, se pode recordar de um diálogo ocorrido entre Gilberto Freire e Aldous Huxley, em Recife de 1958. Na casa do sociólogo recifense, Aldous Huxley citou a frase que considerou muito curiosa: “deus é brasileiro”. O sociólogo e escritor pernambucano comenta que se trata de “uma expressão de comodismo brasileiro que, entretanto, neutraliza outra – esta, expressão do pessimismo nacional – que há anos diz do Brasil: ‘é um país à beira do abismo’.”
Huxley, diante do comentário do anfitrião, já que o encontro se deu na casa de Freire, observa em tom humorado: é provável que “o Brasil venha andando à beira do abismo mas que, como um bailarino, já aprendeu de tal modo a andar perigosamente que não há perigo nessa proximidade do abismo”. Na oportunidade, Freire concordando com a observação de Huxley, diz que “já vem considerando, há tempos, bailarinos dionisíacos, não só os jogadores de futebol[3] mais caracteristicamente brasileiros como os políticos mais tipicamente nacionais”. Freire arremata que possivelmente esta seja uma das marcas do “nosso estilo nacional”, senão de vida, de arte (FREIRE, 1968: 260).
Pode-se dizer que além dos jogadores de futebol e dos políticos nacionais, nossos escritores e literatos também mereçam estar incluídos nessa lista de “bailarinos dionisíacos” que dançam “à beira do abismo”. E é como bailarinos dançando a dança das representações do Brasil na história que se pode imaginar um diálogo literário travado entre dois imortais da literatura brasileira. Diálogo que não ocorreu de fato. Portanto, se trata de uma fabulação imaginária. Ao reunir trechos e excertos das obras de Lêdo Ivo e João Ubaldo Ribeiro, se pode elaborar a possibilidade dos dois autores estivessem travando um diálogo através da contraposição de suas ideias sobre o país.
Na verdade, não se trata exatamente de um diálogo, mas sim de uma possível resposta de João Ubaldo ao livro de Lêdo Ivo, A Morte do Brasil, de 1984. No entanto, trata-se de uma conjectura, sem base factual para sustentar essa possibilidade de um diálogo entre os dois escritores. Porém, João Ubaldo parece reagir e responder ao Lêdo Ivo, sob o impacto de sua obra, e a pesquisa ainda não detectou a existência de uma réplica do escritor alagoano.
Destarte, é fato que Lêdo Ivo declara a morte do Brasil. E através do escrivão Laudelino, personagem do livro, se anunciam sentenças como: “Grande decadência, a do Brasil. Este país está morrendo” (IVO, 1984, p. 36). Já com a personagem diretor do Arquivo Nacional, destacam-se as máximas: “O Brasil está em artigo de morte. O Brasil vai morrer” (p. 41). Selando um destino baldio: “Estamos perdendo nossa identidade. (…) Somos sombras. (p. 45). No “Brasil dos desaparecidos” os nativos são como “seres não amadurecidos, em perpétua formação”, em suma, “criaturas incompletas” (p. 48).
Aprofundando os motes de seu réquiem, Lêdo Ivo apresenta sua visão sobre a memória colocando a imaginação no centro do trabalho de ressuscitar “nesse cemitério de lembranças repudiadas”. Escreveu: “A chave da imaginação abre a porta da memória”; pois “a memória é, na realidade, uma aventura de nossa imaginação” (p. 43). É assim que Ivo imagina um “senhor” anônimo de “paletó xadrez”, um “queremista histórico”, bradar: “- Eu não me conformo com a covardia do povo brasileiro. O povo que não se levantou, não é de nada. É um povo desfibrado, sem caráter. Tem medo de sangue” (p. 150).
Nestes breves, mas densos recortes da obra de Lêdo Ivo observa-se o tom amargo da escrita sobre o país. Algo que contrasta definitivamente quando se abrem logo as primeiras das mais de seiscentas páginas de Viva O Povo Brasileiro. Ao contrário do réquiem de Ivo vislumbramos uma verdadeira ode exaltando uma saga invencível de “coragem e determinação”. Ode que instiga à ação, à luta: “Cabe-nos preservar, conservar, manter. E preservar não é somente trazer viva a memória de quem somos, mas dotarmo-nos das condições a que temos direito e sem as quais feneceremos.” (RIBEIRO, 1984, p. 122). Através do velho João Popó ‘rosna’: “O Brasil está ameaçado, compreendem isso? Ameaçado, atacado, odiado pelo inimigo! Estamos em guerra, é preciso haver coragem e determinação, o Brasil não pode sucumbir, não sucumbirá jamais!” (p. 412).
Bem se sabe que a tradução da obra de João Ubaldo Ribeiro para o inglês foi realizada pelo próprio autor. E nesta autotradução o escritor optou por mudar o título da obra e a designou Uma Memória Invencível. Nada mais significativo neste veemente reforço da memória em disputa. Embate que pode ser descortinado em diferentes passagens das referidas obras.
No capítulo 4 Os Desaparecidos, na obra de Lêdo Ivo, encontra-se: “A nossa verdade é tecida de ficções. Na identidade a nós atribuída, a mentira emerge como a proa de um navio rompendo o nevoeiro” (IVO, 1984, p. 44). Na epígrafe do Viva o Povo Brasileiro: “O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias” (RIBEIRO, 1984).
João Ubaldo fez a sua escolha e encampou a sua história, numa escrita apaixonada. E pelo grito do cabo Zé Popó, filho do velho João Popó com Rufina do Alto, bradou: “— Viva o povo brasileiro! — Viva nós!” (RIBEIRO, 1984, p. 484).
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO, Ignácio Loyola. Não verás país nenhum. São Paulo: Global, 2007
BRASILEIRO, Profissão: Esperança. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento404741/brasileiro-profissao-esperanca>. Acesso em: 09 de setembro de 2022. Verbete da Enciclopédia.
CARVALHO, Gilberto Vilar. O primeiro brasileiro: Bento Teixeira. São Paulo: Marco Zero, 1995.
FERNANDES, Millôr. Que país é este? São Paulo: Círculo do Livro. 1978
FREIRE, Gilberto. Brasis, brasil e brasília. Rio de Janeiro: Gráfica Record Ed., 1968
IVO, Lêdo. A morte do brasil. Rio de Janeiro: Record, 1984
RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
SANT’ANNA, Affonso Romano. Que país é este? e Outros Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1979.
NOTAS:
[1] Economia à brasileira: em 40 anos, duas décadas perdidas: <http://www.dumasconsulting.com.br/economoia-a-brasileira-em-40-anos/>.
[2] Em setembro de 2018, o jornal francês Le Monde publicou editorial comparando a situação do Brasil com a de um suicida. “Brasil: o naufrágio de uma nação”: <https://www.lemonde.fr/idees/article/2018/09/08/bresil-le-naufrage-d-une-nation_5352184_3232.html>. Acesso: 9 SET 2022.
[3] Lembrando que naquele ano de 1958 a seleção brasileira de futebol ganhava o primeiro título mundial contra a Suécia.
Créditos na imagem: Reprodução: O brasileiro Lêdo Ivo é um dos poetas estrangeiros mais conhecidos da Espanha. Foto: Marcelo Carnaval/Agência O Globo, 2013.
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