Rock e Preconceito: contestação ou consentimento?

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Surgido em meados dos anos 1950, nos Estados Unidos, o rock n’roll se tornou, ao longo do tempo, um estilo musical entre os mais consolidados e populares do mundo. A sua origem atrela-se essencialmente ao modelo de música afro-americana, a exemplo do blues rural, estilo presente no início do século XX, bem como ao blues urbano, o gospel e o rhythm and blues. Por outro lado, apesar de ser um gênero com fortes raízes na música negra, o rock´n roll também sofreu influência dos estilos mais voltados para a música branca, a exemplo do folk e do country que se fundiriam, contribuindo ainda mais para a origem diversificada desse gênero.

Além dessa variedade de estilos que compõem sua origem, faz-se necessário ressaltar também que o aparecimento do rock´n roll provocou sentimentos contraditórios entre os jovens e seus pais nos anos 1950. Se, por um lado, a juventude aderia paulatinamente essa novidade musical como forma de criação da sua própria identidade, para os pais, o efervescente gênero representava um agente de degeneração da juventude, afastando-a dos padrões conservadores ensinados pela família norte-americana. Entretanto, apesar da desconfiança que o rock despertava à época, ele foi conquistando um espaço cada vez maior, fazendo florescer artistas que ganharam destaque dentro desse universo.

Entre os anos 1953 e 1955, período considerado como a fase da explosão do rock clássico, despontaram artistas no cenário musical norte-americano como Fats Domino (1928 – 2017); Chuck Berry (1926 – 2017); Litlle Richard (1932 – 2020) e Bill Halley (1925 – 1981). Todos esses cantores, com exceção de Bill Haley, eram de origem negra, o que reforça não somente a genealogia do próprio estilo musical, como também ajuda a desvelar o preconceito que existia na sociedade estadunidense durante a década de 1950.

Enquanto gênero emergente e voltado prioritariamente para o público jovem, certamente a mensagem transmitida através das canções lançadas por esses artistas, bem como a postura apresentada por eles no palco e na vida, despertou o interesse e influenciou, em determinada medida, o comportamento dos jovens à época. No entanto, para os pais, essas mesmas canções, muitas vezes com letras que falavam de amor e sexo, comprometia a infalibilidade da família e a honra da sociedade. Pior ainda, por se tratar de um gênero de origem afro-americana e, a princípio, sendo divulgado maioritariamente por artistas negros, uma parcela significativa dos pais brancos atribuíam a deturpação comportamental dos filhos à má influência dos negros na sociedade, aumentando, ainda mais o racismo nesse primeiro momento.

Com a chegada dos anos 1960, o rock deixou de ser uma novidade apresentada apenas pelos negros estadunidenses, expandindo-se não apenas em seu país de origem, como também por outros locais da Europa, a exemplo da Inglaterra, transformando-se em um gênero oficial. Sendo assim, na década de 60, temos a presença marcante do roqueiro norte-americano Elvis Presley (1935 – 1977) e das bandas inglesas The Beatles, finalizada por volta dos anos 1970, e The Rolling Stones, ainda em atividade no século XXI. Tais artistas colaboraram para uma ampla difusão e, porque não dizermos, maior aceitação do rock entre a população branca.

No entanto, será que essa propagação do rock por intermédio de artistas brancos a partir dos anos 60, bem como através das bandas que encabeçaram as novas vertentes que foram surgindo no decênio setentista em diante, contribuiu para diminuir o preconceito e o racismo apresentado de forma acentuada no contexto dos anos 1950? Em 30 de abril de 1978, o festival Rock Against Racism, reuniu cerca de 100 mil pessoas e bandas de rock a exemplo de Clash, Steel Pulse, entre outros artistas, na cidade de Londres, a fim de protestar contra uma ascensão fascista que permeava o Reino Unido à época. A organização do movimento iniciou suas atividades motivada por conta do surgimento de um grupo político neonazista na Inglaterra, o National Front, que se posicionava contra a imigração de refugiados de outros países para a nação inglesa. O slogan utilizado pelo grupo era: “Mantenha a Inglaterra branca”.

Nesse contexto de ascensão fascista, artistas prestigiados que circundavam o universo do rock proferiam discursos racistas, a exemplo do cantor e guitarrista inglês Eric Clapton (1945 -), que pronunciou em um de seus shows, ainda no ano de 1976, declarações racistas, alegando que a Inglaterra estava se transformando numa “colônia negra” e que estes refugiados deveriam ser enviados de volta para seus países de origem. Outro afamado roqueiro britânico, David Bowie (1947 – 2016), exibia um postura polêmica ao abordar questões ligadas ao fascismo ou a respeito da estética nazista, afirmando que “Hitler seria o primeiro astro do rock”, descaracterizando a origem do gênero em prol de uma apologia à “branquitude” do rock.

Todavia, ideias fascistas divulgadas por artistas do cenário roqueiro não eram uma realidade apenas no contexto britânico e tão pouco somente nos anos 1970. Nos EUA, durante a década de 1990, o racismo e o preconceito também se fizeram presentes em algumas canções lançadas à época. É o caso da canção “One in a Milion”, lançada no ano 1988, pela banda norte-americana Guns N´ Roses. A canção, contendo um forte teor homofóbico, xenófobo e, sobretudo, racista, demonstrava o repúdio que o grupo tinha contra os imigrantes e os homossexuais que residiam nos Estados Unidos naquele período. Em “One in a Milion”, esses estrangeiros adentravam o país com o intuito de fazerem o que quisessem, de transformar os EUA numa espécie de Iran ou com o objetivo de espalharem doenças para a população norte-americana. A mensagem na canção é clara: imigrantes, “bichas” e “crioulos” não eram bem-vindos na terra do Tio Sam.

Deste modo, semelhantemente ao que ocorreu no início dos anos 1950, quando o “rock negro” era considerado por uma parcela significativa das famílias estadunidenses como um agente de degeneração, pouco mais de quatro décadas depois, o racismo e o preconceito permaneciam, desta feita, divulgados através de declarações proferidas por artistas do próprio universo roqueiro, ou através das mensagens contidas nas letras de algumas canções produzidas pelos cantores e bandas de rock. Parece que o “antigo rock n’ roll”, de origem diversa e plural, permeado pelo espírito contestador e rebelde, típico de seu público alvo, o jovem, abriu espaço para o consentimento do que há de mais vil na sociedade: o ódio ao outro, ao diferente, a uma etnia que fez nascer, em meio a uma década mergulhada na Guerra Fria (1947-1991), um dos gêneros mais explosivos e importantes no cenário musical à época: “o bom e velho rock’ n roll”.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. 1ª ed. São Paulo: Editora Página Aberta LTDA, 1994.

AIEX, Tony. Em 1978, The Clash tocava para um mar de gente na luta contra o racismo. Tenho Mais Discos que Amigos. 30 Abr. 2020. Disponível em: <https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2020/04/30/the-clash-rock-against-racism/>. Acesso em: 22 jun. 2023.

COELHO, Frederico Oliveira. Revolução Comportamental no século XX. In: O século Sombrio: Uma história geral do século XX. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 323 – 345.

DOGGETT, Peter. O homem que vendeu o mundo: David Bowie e os anos 70. Curitiba: Nossa Cultura, 2014.

FRIEDLANDER, Paul. Rock and roll: uma história social. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.

JONZE, Tim. ‘Se houver ameaças de morte, não me diga’ – como o Rock Against Racism lutou contra o fascismo. The Guardian. 23 ago. 2022. Disponível em: <https://www.theguardian.com/music/2022/aug/23/death-threats-rock-against-racism-fascism-national-front-clash-rar>. Acesso em: 22 jun. 2023.

One in a Milion. Duração: 6:08. Composição: Duff Rose McKagan, Izzy Stradlin, Saul Hudson, Steven Adler e W. Axl Rose. Guns N’ Roses. Álbum G N’ R Lies, 1988. Gravadora: Geffen Records – EUA. Faixa 02.

Rolling Stone. 6 polêmicas de ícones do rock que ninguém fala sobre: De Eric Clapton racista a Bowie fascista. 05 mar. 2020. Disponível em: <https://rollingstone.uol.com.br/noticia/polemicas-que-icones-do-rock-ja-se-envolveram-mas-ninguem-fala-sobre/>. Acesso em: 22 jun. 2023.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Johnny Cash, Chuck Berry e Elvis Presley (Fotos 1 e 2: AP; Foto 2: Gilles Petard / Redferns). Imagem disponível em: <https://rollingstone.uol.com.br/noticia/1950-e-o-rock-decada-da-musica-que-mudou-o-mundo/>. Acesso em: 22 jun. 2023.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Mônica Porto Apenburg Trindade

Doutora em História Comparada pela UFRJ. Mestra em Educação e Graduada em História pela UFS. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq). Professora Substituta de História do Colégio de Aplicação (UFS) e da Secretaria do Estado da Educação de Sergipe (SEDUC/SE).

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