Nada será como antes? Ciência e universidade no pós pandemia e uma hipótese sobre a essência da história

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O ineditismo da atual pandemia para as nossas gerações recolocou algumas questões que já estavam presentes de alguma forma, mas que, agora, apareceram de forma mais patente. Uma delas é sobre a possibilidade de aulas remotas oferecerem nesta, ou na próxima crise, uma saída para a impossibilidade das aulas presenciais. O efeito colateral da quarentena de reforçar o uso das redes sociais tornou possível observar os posicionamentos de vários colegas acadêmicos sobre essa possibilidade. Se uma oposição inicial entre os defensores do modelo EAD e aqueles de uma paralisação completa da atividade de ensino foi notada, logo algumas posições mais balizadas pareceram surgir na defesa de uma “paralisação ativa”. Ou seja: que muito mais interessante do que uma paralisação completa das atividades ou de uma continuação ingênua do “inadiável” calendário acadêmico, poderia ser a manutenção remota de um amplo debate não apenas da vida universitária, mas de todo o modelo de sociedade que estávamos reproduzindo até então.

A proposta ganhou aderência especialmente por abrir espaço para recolocarmos as bases do debate sobre a importância da universidade e do conhecimento científico no espaço público, num momento em que se tornava rotina uma conjunção entre cortes de financiamento para pesquisas e a emergência de negacionistas aos postos mais importantes em vários países. Seria a chance de se refazer um pacto perdido há algum tempo sobre o lugar e a importância da ciência e da universidade num país periférico e extremamente desigual. Além disso, a proposta torna público o convite para que a universidade passe a ocupar novos espaços de construção e difusão do conhecimento e se preparar para aquilo que o biólogo Átila Iamarino (USP) nomeou como o “novo normal”, isto é, as restrições cada vez mais intensas sobre a circulação de pessoas.[1]

O “novo normal”, porém, é feito também de algumas características nem tão inéditas, mas que irão se impor gradual ou abruptamente daqui em diante. Falamos daquilo que a jornalista Eliane Brum identificou como o “fim da ilusão de que o mundo é controlado por humanos”[2] e que se coloca na forma de bomba biológica que a crise climática irá impor ao século XXI. O vírus seria, assim, apenas uma palhinha do que veríamos logo ali adiante pelo o que nosso modo de viver nos levou: o superaquecimento do planeta e suas decorrências que já ouvimos bastante, a saber, o impacto apocalíptico para a agricultura, para os recursos hídricos e para a vida animal, além da intensificação das desigualdades. O ritmo relativamente lento da crise climática, porém, que é diferente do alastramento de um vírus, permitia que até então charlatães jogassem com ela e prometessem a manutenção de um estilo de vida completamente insuportável para o planeta. O tempo do vírus, porém, tão ou mais acelerado do que a aceleração que a sociedade capitalista já nos impunha, se não jogou por terra o discurso dos charlatães, ao menos os obrigou a lidar com algo que se impõe aos discursos e as mistificações: o real.

E não falo aqui de um real puro, autossuficiente em relação às formas de mediação e acesso a este real que a própria teoria da história já discute há décadas, mas de um real que ameaça radicalmente a vida e, por isso mesmo, torna obsoletas as formas de mediação com ele que tínhamos até então, exigindo sua reinvenção. Sua imposição, porém, não traz pressuposto que acabou o tempo da negação da ciência e do negacionismo como estratégia política. Logo após a eleição de Jair Bolsonaro, escrevi neste mesmo portal um texto[3] que relatava como o bolsonarismo era uma hidra que atuava em diversas frentes e tornava impotentes as contraposições que insistiam com a razão e a ciência contra aquele que oferecia crenças sob demanda. O bolsonarismo desafiava não só a história com o seu negacionismo do passado, mas o jornalismo, a ciência e, grosso modo, a razão. Não tínhamos, até então, a mínima ideia de como seria possível desestabilizar aquele movimento. A atual crise, porém, se não derrota definitivamente o negacionismo, ao menos mostra que o imponderável ainda existe e é uma fenda a partir da qual a ciência e a razão podem voltar a atuar. Adiante!

Antes de encerrar este texto, porém, gostaria de apresentar uma hipótese sobre aquilo que muitos vêm se perguntando ultimamente: o que teria um historiador a dizer em meio a uma pandemia e uma crise de tal proporção? O historiador Marcos Cueto (FIOCRUZ) aventou uma boa e precisa resposta, reforçando que “como no passado, hoje, a ausência de liderança de governantes, assim como a xenofobia, a desinformação, o pânico, a desordem e o caos também agravam a calamidade sanitária.”[4] Assim, a História cumpriria aquela função que dela esperamos: orientação e produção de sentido como forma de nos guiar como cidadãos e sujeitos ativos no nosso presente. De fato, essa continuaria sendo uma das funções mais nobres da História, munindo a sociedade de um conjunto de elementos e informações indispensáveis para enfrentar a crise atual. É bastante comum, e mesmo justo, que se recorra à história como fonte de exemplos, experiências que nos informam e proporcionam orientação para o presente, ainda que estejamos bastante longe de um regime historia magistra vitae.

O que gostaria de colocar como hipótese provocativa aqui, porém, vai além disso. Seria não o exemplo, o recorrente, o permanente, que a História nos legaria como seu principal ensinamento ou como sua principal contribuição neste momento. Seria propriamente o acontecimento, a irrupção, o imprevisível, aquilo que não se espera e que, quando emerge, pega o rei (ou o historiador) nu e exige dele a reinvenção dos seus modos de compreensão do real e do processo histórico.

Como historiadores, portanto, se quisermos buscar a verdadeira essência da história, talvez tenhamos que procurar não exatamente naquilo se apresenta ou se vende como recorrente, reiterado, como o único caminho possível para um determinado fim. Foi assim que vimos vários essencialismos bastante comuns antes da epidemia (e isso não quer dizer que eles vão desaparecer depois dela) derreterem a cada dia que a epidemia avança. Sejam eles essencialismos econômicos, políticos ou culturais. É quando a história parecia mais fechada, mais radicalmente caminhando num sentido único, em que o modelo econômico para o “desenvolvimento” é somente um, que a forma política para alcançar esse desenvolvimento prescinde da democracia e que a cultura lasciva de certos países “atrasaria” seu progresso, que a fenda se abre e nos permite embaralhar novamente as cartas na mesa. Como efeito direto, tal compreensão nos levaria a abrir mão daquela velha associação entre “história” e “passado”, tidos como sinônimos, e abrir o horizonte para uma compreensão da história como devir histórico, isto é, conjugando simultaneamente passado, presente e futuro.

Poderia terminar este texto com uma passagem marcante de um historiador mexicano, Edmundo O’Gorman, autor de uma das mais instigantes interpretações sobre o devir histórico latino americano e que desejava da História uma narrativa liberada da camisa de força do essencialismo:

 

“Quiero una imprevisible historia como lo es el curso de nuestras mortales vidas; una historia susceptible de sorpresas y accidentes, de venturas y desventuras; una historia tejida de sucesos que así como acontecieron pudieron no acontecer; una historia sin la mortaja del esencialismo y liberada de la camisa de fuerza de una supuestamente necesaria causalidad.”[5]

 

Prefiro, porém, terminar mantendo viva a pergunta-título deste texto, me remetendo à letra da canção de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento que, em 1972, buscavam notícias dos amigos (hoje em quarentena) e anunciavam que, já naquele momento, nada seria como antes, resistindo na boca da noite um gosto de sol. Provavelmente falavam da história, “imprevisível e suscetível de surpresas”, como queria O’Gorman.

 

 

 


NOTAS

[1] https://www.youtube.com/watch?v=s00BzYazxvU

[2] https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-25/o-virus-somos-nos-ou-uma-parte-de-nos.html

[3] https://hhmagazine.com.br/a-historia-sob-o-bolsonarismo/

[4] https://www.cafehistoria.com.br/um-historiador-da-saude-fala-sobre-novo-coronavirus/

[5] OGORMAN, Edmundo. Fantasmas en la narrativa histórica. In: _______. El arte o de la monstruosidad. México: Editorial Planeta, 2002.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Mauro Franco

Professor de Teoria da História e Historiografia na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e doutorando em História pela UFOP. Realizou estágio de doutorado sanduíche na mexicana UAM-Azcapotzalco. Seus interesses de investigação estão relacionados às experiências do tempo e da história em contextos advindos da situação colonial, bem como nas construções identitárias envolvendo países latino-americanos.

2 comments

  1. Géssica Guimarães 8 abril, 2020 at 16:15 Responder

    Excelente reflexão do professor Mauro! É muito importante que neste momento a gente possa perceber que temos uma chance real de colocar o próprio sistema capitalista em xeque, ou pelo menos essa versão de um neoliberalismo brutal que se ensaia no governo Bolsonaro. O professor Ricardo Benzaquen certa vez falou que a narrativa histórica moderna é anti-trágica, no sentido de que ela não concede espaço para a hibrys, a desmedida, o acaso. Me parece que estamos face uma grande oportunidade de escrever uma história de tonalidades trágicas e que nos ajude a superar a parcela do imaginário moderno que nos mantém atrelados ao discurso do progresso inexorável.

  2. Paulo Rogério Lopes 9 abril, 2020 at 18:34 Responder

    Parabéns, Mauro! Uma análise rápida e contextualizadora. Que a ciência, a educação, o bom senso, a racionalidade, a justiça social, a ética, a solidariedade e, acima de tudo, a “humanidade”, possa se estabelecer e se enraizar na nossa sociedade.

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