Evento, história e fim do governo Bolsonaro

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O que é um evento? Como essa palavra é de uso comum e recorrente, podemos começar nossa reflexão com os típicos exemplos individuais que podem esclarecer ou confundir ainda mais a matéria, mas, de qualquer forma, dão ao leitor a sensação de reconhecimento, de estar em casa no assunto.

Numa vida qualquer, na sua vida leitor, você poderia facilmente definir os eventos mais importantes que nela ocorrera: seu nascimento, a primeira experiência sexual, a morte de alguém que você ama (afinal o amor pelos que se foram nunca passa realmente), um acidente, o casamento, do divórcio… Alguns eventos, podem nem ser conscientes, no sentido de não serem acessíveis à lembrança imediata. Ninguém se lembra de ter nascido, porém, poucas pessoas não reconheceriam nisso um dos eventos marcantes de sua existência. Nos eventos não lembrados espontaneamente podem estar os traumas, as violências sofridas, abusos e torturas que residem no inconsciente individual, mas que são capazes de desencadear sofrimentos  psíquicos que, apenas com auxílio de terapia podem, então, de uma forma ou de outra, vir à consciência e curar ou amenizar as patologias mentais.

Os eventos, portanto, são aquilo que importa. O que é importante. Durante muito tempo e ainda hoje, uma maneira de se tentar organizar a história, ou seja, o passado coletivo de uma comunidade, um país ou da humanidade, era falar ou situar os eventos mais importantes. O evento, nessa história tradicional, cumpre papel de organizador das mudanças significativas para aquilo que veio depois: a Revolução Francesa, as duas Guerras Mundiais, a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria.

Elencar eventos importantes no passado coletivo é algo que pode variar muito. Num escopo nacional, podemos falar dos eventos importantes na história de um país: a independência do Brasil, a abolição da escravidão, a proclamação da República etc. Num escopo regional, pode-se falar da história de um Estado elencando eventos como a Inconfidência Mineira ou a revolução Constitucionalista de São Paulo etc.

Essa foi a preocupação dos historiadores do século XX. É preciso dizer, que o século XIX foi profícuo na produção de eventos: independências nacionais, consolidação de imperialismos, emergência de regimes constitucionais, aparecimento da nação e do sentimento nacional como grande fator de coesão política e social, expansão da imprensa em moldes industriais, associação entre desenvolvimento científico, expansão industrial, tecnológica e comercial, surgimento de narrativas, literaturas e artes que se imiscuíam no cotidiano das populações urbanas a reboque da consolidação da cultura midiática, abolicionismos do trabalho escravo. E, de alguma forma, o século XX  foi a acentuação e a ressaca desses processos: o nacionalismo está na base das duas grandes guerras, o desenvolvimento tecnológico se consolida em corrida pela dominação econômica  e política, o trabalho oscila entre a criação dos direitos e a manutenção da servidão em várias partes do planeta, os regimes alteram suas constituições por várias vezes, como é o caso do Brasil e por aí vai.

A história pensada como eventos, portanto, apesar de chamar a atenção para a importância de determinados acontecimentos pode ser muito arbitrária e ter seus olhos cegados pelo brilho dos acontecimentos reluzentes. De fato, os historiadores profissionais nos últimos cem anos, especialmente na América Latina e Europa, tentaram, de alguma forma, escapar da atividade de elencar eventos que, de alguma forma, nos levaria ao presente em que se escrevia tais histórias. Alguns poderiam dizer que a história, na figura dos historiadores, queria parar com os eventos, fugir dos eventos, diminuí-los, porque já estava demais. Mais importante do que os eventos, seriam as estruturas, assim como mais importante do que o casamento seria toda a relação construída antes disso, de modo que o casamento seria apenas a expressão pública de algo que já vinha se estruturando no convívio mútuo. Eventos não explicariam as coisas profundamente. Assim como a Revolução Francesa, a degola dos reis, não levou a França a um regime democrático, popular e igualitário, da mesma forma, a carta universal dos direitos humanos não consolidou o fim do racismo e do preconceito na Europa, pois o racismo e o preconceito estruturam a sociedade europeia e a nossa também, diga-se de passagem. A abolição da escravidão não acabou com o trabalho escravo no Brasil e com relações de trabalho altamente exploratória, porque essas relações estruturam o trabalho por aqui. Os eventos, assim, seriam enganadores, uma espécie de feitiço feito para nos distrair daquilo que permanecia de maneira repetitiva, incisiva, contínua e sem graça. A história tomada do ponto de vista estrutural é, de fato, bem sem graça. A sua imagem mais expressiva é a do historiador Fernand Braudel  que, numa praia brasileira, à noite, olha para um bando de vaga-lumes. Para ele, o evento são as luzes a piscar, ao passo que a escuridão seria a estrutura que possibilita tais flashes. Ora, quem vai ver vaga-lumes e presta atenção na escuridão ao fundo? Pois é, o historiador estrutural.

Assim, quando falamos de evento em história devemos ter esses cuidados que são, na verdade, um grande ganho reflexivo e científico na compreensão da passagem dos homens pela terra. E onde que a queda do Bolsonaro entra nisso? Muito simplesmente num processo que se inaugura com um evento: a Pandemia desse Corona aí. Se não podemos ser articuladores de eventos como é a historiografia tradicional, tampouco podemos abstrair da força dos acontecimentos que influem diretamente nas ações das pessoas e, portanto, geram, em maior ou menor medida, consequências históricas. Gostaria, assim, de reservar ao termo evento uma definição que já coloco agora: o evento é estrutura sintetizada no instante. Diferentemente de acontecimentos e circunstâncias que seriam relativos e não teriam tal abrangência e profundidade, o evento seria capaz de, num curto espaço de tempo (dias, semanas, meses), incitar uma abertura capaz de modificar um estado de coisas mais ou menos consolidado e até vislumbrar modificações de permanências estruturais.

No que nos diz respeito, a tomada da atual pandemia como evento atingiu o cenário político brasileiro de maneira certeira. É preciso lembrar que o campo político é o mais propício a produção de eventos pensados como vaga-lumes. Ou seja, o mundo político é carregado de brilhos, flashes e manchetes midiáticas que nos atolam de acontecimentos que, porém, apenas atualizariam estruturas repetitivas. Eleições, discursos, mortes, movimentações públicas etc. tudo isso é o nosso noticiário do político ou dos políticos que nos atualizam daquilo que é corrente, mas, no fundo, ficaria tudo mais ou menos do mesmo jeito. Há um risco do político, de levar a sério demais o político, pela sedução do seu poder e capacidade de gerar acontecimentos e, às vezes, eventos.

Não será certamente um agente político ou um acontecimento que nos levará a cair em tal canto de sereia. A Pandemia atual, porém, começa a provocar modificações que parecem sem volta, ao menos nos próximos meses. Por si só, o instante da pandemia gera demandas políticas no largo sentido do termo: políticas legais, econômicas, sociais e culturais. É preciso criar leis complementares de reorganização do sistema público como um todo, é preciso criar leis complementares em torno do orçamento, é preciso criar medidas sociais e até legais acerca da circulação de pessoas. Não é pouca coisa. Por isso, prefeituras, governadores e presidência se atropelam em suas ações. Mas nada disso tirou nenhum presidente de país ocidental de seu cargo. Não parece haver muita dúvida de que há expectativas otimistas que trabalham com ideias de recuperação e “normalização” nos próximos meses, inclusive com a volta do futebol, e outras, menos proclamadas, bastante catastróficas, ou ao menos pessimistas, que não vislumbram um fim para tudo isso. Ou que isso seja o fim. Alguns dizem, nada será como antes.

Por aqui, o que nos importa é que, sim, o presidente, pela primeira vez desde as eleições se vê isolado. Mais do que isso. Perdeu a governança, está desprestigiado. Sua presidência era e é focada em sua própria figura, suas aparições em transmissões de internet, seus posts em redes sociais, suas saídas à porta do Palácio para falar com seus seguidores fieis. Incorporou a figura do Messias. Acontece que surgiu agora uma outra figura que, em meio à pandemia, toma à frente do processo e claramente se contrapõe ao seu chefe, com um discurso avesso ao do presidente. Trata-se do ministro Mandetta. Mandetta fala como Bolsonaro, só que com termos opostos ao de Bolsonaro. Este explorou o combate aos inimigos políticos, à esquerda, ao comunismo. Assim, se fez soldado do Brasil, lutador, que jamais deixaria o país cair nas garras desses doentes. Nossa bandeira nunca será vermelha. Mandetta faz a mesma coisa, mas fala do lugar do médico. “O Brasil é o meu paciente”. Um médico não abandona o seu paciente. Essa a bravata do ministro. Frase pra ganhar eleição. Ao inimigo imaginário de Bolsonaro, o comunismo, Mandetta opõe o inimigo mundial real: o Corona.

Mais do que isso, Mandetta utiliza o vocabulário realista e científico que é contrário a tudo aquilo que Bolsonaro alimentou em sua campanha, todo esse imaginário obscurantista de Damares, de Weintraub, de Ernesto Araújo, de Olavo de Carvalho e Sérgio Moro. O ministro da saúde fala em ciência, em academia, universidade e pesquisa. Bolsonaro não tem espaço nesse campo. Os políticos de plantão, ávidos pela sucessão, já perceberam: o Congresso está com Mandetta, o Supremo também, a mídia também. Mais, governadores e prefeitos tem sofrido retaliações da população que quer sair às ruas e fingir que a pandemia não existe, seguindo o presidente. Esses chefes dos executivos regionais também estão com Mandetta. Eles irão certamente compor a chave de oposição a Bolsonaro nos próximos meses e, bem provável, nas próximas eleições. Todos aí querem o poder, como bons políticos.

Mandetta ofereceu o cargo, mas não aceitou pedir demissão. Médico não abandona paciente. A ideia de ser o médico do Brasil é sedutora, dá voto. Tudo o que as pessoas esperam numa pandemia é que elas sejam contempladas pelo governo, que elas tenham um rumo, que se sintam mais ou menos seguras. A medida de Bolsonaro, a primeira medida que é dele mesmo, foi conclamar um jejum e uma oração pelo bem do Brasil no dia cinco de abril. Parece piada. Agora. Antes não parecia, era isso que ele fazia, é isso que ele é.  Ele ganhou assim. Mais importante, portanto, é que não é apenas a figura de Bolsonaro que caiu. Mas, quase tudo aquilo que ele representa: obscurantismo, ignorância, elogio da força, minimização das complexidades sociais, violência como solução de todos os problemas, aversão à política como meio de entendimento dos homens e muito mais. Basicamente, qualquer coisa que se contraponha às ideias de razão, serenidade, diálogo e temperança.

Assim, a Pandemia como evento: como estrutura sintetizada no instante, no caso brasileiro, parece nos trazer isso. Pode ser o contrário, também. Que a estrutura brasileira consolidada nos últimos dois séculos foi de desenvolvimentos progressistas frente à gente e ideias como as de Bolsonaro. É uma luta nos trópicos. De qualquer forma, o evento da Pandemia se tornou abertura por aqui. Há pesquisas que falam em gente querendo migrar para cidades menores, por se sentirem mais seguras por lá. Podemos vislumbrar uma fuga das capitais, caso essa pandemia não seja controlada. Podemos imaginar muita coisa. Isso também é abertura do evento, abertura à imaginação, à utopia frente à distopia que já vivemos e, também, à perspectiva, que muito me afigura, de um caos completo. Cada um encontre a sua.

Não poderíamos deixar de dizer que Mandetta, se continuar no cargo e for minimamente bem-sucedido, ou seja, que morram algumas milhares de pessoas e que o sistema de saúde não entre em colapso, será candidato. Dória – Mandetta? As pautas também parecem se modificar, mais preocupação com a saúde e com os direitos das pessoas ao bem-estar social. Haverá lugar para Paulo Guedes? Qual será a nova forma do capitalismo estruturante da história econômica moderna? Vislumbrar seu colapso pela Pandemia parece mais que demais. Historiadores, porém, são péssimos adivinhos, para nós, escrever sobre o presente já é um estar deslocado. Da mesma forma, como não vivemos no passado também, estamos sempre deslocados, encantados com a escuridão por detrás dos vaga-lumes e desconfiados do brilho das stars.

 

 

 


Créditos na imagem: Palácio do Planalto. Marcos Corrêa/PR.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago Lenine

Thiago Lenine é professor de história na Universidade Federal de Uberlândia, toca violão, guitarra, cavaquinho e canta. Mas dança mal.

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