A múmia queimada pelo incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista renasce como Fênix na poesia de Jacyntho Lins Brandão, que não repõe a múmia, nem a recria.

Em Harsíese (Patuá, 2023), Jacyntho Lins Brandão faz voar a Fênix, a desloca de lugares, que são Ouro Preto, Belo Horizonte, entre outros Orientes e horizontes.

Em seu recém-lançado livro de poemas, Brandão faz a múmia falar.

A poesia de Harsíese vem de um não-lugar ou do lugar-da-morte e se desenha aos olhos e ouvidos (internos) do leitor. É maravilha, espanto, precipício, memória, ruína, sítio, Babilônia, Cartago, Pérsia. É poesia da enargeia, da evidentia. História, escavação.

Quero dizer que li os poemas que compõem Harsíase seguindo sua disposição de partes. Li-os como um leitor não obediente, mas aderente às escolhas que o poeta fez. Ou seja, li sequencialmente “Brancor” e seus poemas; “Dialética Disléxica” e seus poemas; “Ouro Preto: Raízes”, e seus poemas e “Errâncias” e seus poemas. E os li devagar. E os li adiando o fim.

Em “Brancor” vi um tom melancólico, por vezes, um resquício de Drummond em “Casa dos Lodi”. E senti o ritmo lindo do poema. Anotei: maravilha! Maravilhoso!!! E vi o poeta fazer perguntas retóricas que prescindem de respostas. Vi graça em “Delira, Marília”, aquela dama cantada desde o século XVIII, mas que carrega consigo tantos lugares antigos de mulher, tantas camadas de lirismo. Ouvi a cantiga, a canção com refrão de Jacyntho nesse poema-modinha.

E ouvi também a cantiga de “Me equilibro em corda tensa”, a musicalidade do poema, a graça, a leveza. Me ri na epígrafe de “Nada Dizer”, vi o estimado Luciano na “Ilha da utopia”. Me diverti em “Ode ao fumo”, encontrando mais uma vez Drummond em Brandão em “Palavra em ponto de bala”. Vi emulação. Vi Jacyntho vencer o (suposto) modelo.

Em “Dialética Disléxica”, de que não vou me ater à agudeza que nomeia esta parte de Harsíese, eu comecei por grafar uma exclamação logo ao ler a epígrafe.

Aliás, as epígrafes do livro são todas ótimas e saborosas, compondo uma leitura paralela para além de cumprirem sua função de complementar, ilustrar de alguma maneira os textos. Aliás, as epígrafes podem funcionar como inscrições lapidares, lápides.

Se minha hipótese de leitura, de que o poeta faz o morto falar, faz a ruína falar, as epígrafes de Harsíese são lápides.

Mas voltando à “Dialética Disléxica”, reconheci em Jacyntho Lins Brandão um homem de seu tempo, de muitos tempos, de todos os tempos.

Sublinhei muitos versos, desenhei muitas exclamações, derramei afecções sobre as afecções propostas.

“Ouro Preto: Raízes” foi a parte em que menos me comovi, a parte que menos me moveu. Entendo-a como uma espécie de cancioneiro, assim meio que à maneira de Cecília Meirelles. Um cancioneiro ouro-pretense, que imagino em homenagem à cidade, um dos amores de Brandão.

Mesmo assim grafei exclamações indicando ter sido atingido por um ou outro poema da série, que anotei lindíssimo.

Vi nesta partícula de Harsíase mote/glosa de si mesmo nos anos, como no poema de 1955 (p. 69), as variações elocutivas.

Em “Errâncias”, para ser “breve e leve”, e não ser amplificativo condenso o comentário ao dizer que vi Drummond novamente. Vi emulação de Drummond em “Não há mais bondes para as pernas”.

Harsíese termina em Ítaca. Como só poderia.

Inicia-se com o “traço que corrompe” e termina o percurso, a diegese, em Ítaca!

A poesia de Jacyntho deste livro está posta sob égide de Harsíese, alto funcionário egípcio que o fascismo brasileiro fez e deixou queimar.

O mais recente livro de poemas de Jacyntho Lins Brandão, publicado pela Patuá, é poesia da dissolução. Pode como uma rima ser apenas uma solução, mas não. Tendo (e às vezes tem) ou não rima é mais do que solução, soluço grande. É poesia grande, que está sob a dissolução.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Gladyston Rodrigues/Estado de Minas/D.A Press.

 

 

 

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