Faquir

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Deita numa cama de prego e cria fama de faquir 

Não tentes fugir ao sossego, meu nêgo 

Tu és fraco como um anjo e sabes voar

Caetano Veloso 

Na madrugada passada, refiz meu histórico de coluna. Histórico de coluna? Sei, o leitor pergunta. Sim, histórico de coluna. Quando foi que minha coluna, minha espinha dorsal começou a encrencar? Teria sido no circo? Naquelas aulas à tarde, depois das aulas de teatro pela manhã, nos primeiros anos do curso de formação de ator? Minha falta de braços e de abdômen para me sustentar no trapézio? Foram os exercícios de acrobacia? Ter sido base para pirâmides?  

Não, nada disso. Foi antes. Foi no parquinho do prédio onde morava meu primo mais novo, filho da madrinha. Um dia brincando caí de costas. Doeu muito, mas disse a frase besta, a frase bosta: nem doeu. Não vi estrelas. Eu engoli um urro e um choro. Tinha que bancar o forte em frente aos meninos. Ser macho, orra meu! 

Nos anos 80, eu chegava em casa das aulas e meu avô dizia que eu chegava puxando de uma perna. 

Um dia, eu cheguei com tanta dor no ciático que fui direto para meu quarto deitar e dormir. Não durou muito a tentativa disso. Meu avô logo me mandou chamar porque havia um telefonema para mim. A moça que eu namorava estava ao telefone. Quando saio do quarto, ouço ele dizer para ela: 

– Ele chegou em casa puxando de uma perna e foi pro quarto. 

Esse puxando de uma perna nunca deixou minha memória auditiva. Imagine a memória corporal toda, leitor? 

Houve um ano, lá nos 80, que eu saia da escola de teatro e ia ao acupunturista. Antes almoçava na rua Augusta, com tickets refeição que meu pai me dava, que a empresa onde ele trabalhava fornecia, como agregado ao salário dele. 

O acupunturista era um senhor cego. Recomendadíssimo. Ele deu jeito em minha coluna por um bom tempo. 

Depois, veio o tratamento antroposófico, depois mais acupuntura com outro médico. 

Quase 20 anos de histórico de coluna. 

Em 1998, eu tive uma baita crise de coluna no fim do ano, às vésperas do natal. Passei de 24 a 25 na cama sozinho, em frente à TV até pouco mais da meia noite. Recebi a visita de meus pais e, quase de manhã, mais uma visita e um atendimento médico. Depois da injeção de sei lá que medicamento, eu dormi. 

Em 2002, eu operei uma hérnia de disco enorme, cujo exame de imagem fiz somente naquele ano pouco antes da operação. Isso daria outra crônica. Deixo para outro dia o miúdo desse episódio. 

Operado, tive uma crise pequena de coluna, mas daí fui a um outro acupunturista indicado e ele deu jeito, mas me recomendou fazer terapia, psicanálise. 

Eu topei. Fazia fisioterapia e psicanálise. E fiz por um bom tempo. Não tive mais crises de coluna. 

O histórico da minha espinha dorsal tem um começo quando criança, brincando, passa pelo circo, pelo meu mestrado e início de doutorado. Não precisei ler “Viva bem com a coluna que você tem”.  A terapia, o processo de psicanálise, caminhar e escrever, eu penso, leitor, me fizeram entender. 

A trajetória refeita na madrugada passada desse histórico foi uma cama de prego. Deitei em cama de prego por não conseguir dormir. Na madrugada passada criei para mim uma fama de faquir. O conteúdo do meu histórico de coluna eu descobri com a psi. 

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Foto: Chronosfer.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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