Volver a los diecisiete

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No ano em que fiz 17 anos, eu me alistei no Exército. Estava angustiado com tudo, não apenas com o futuro, ainda mais com o que seria de mim se tivesse que sentar praça, se tivesse que servir Exército. 

O ano em que fiz 17 anos era o 17º da ditadura militar, uma vez que nasci em 1964. 

Servir Exército durante regime autoritário, de exceção, não era, para mim, algo apetitoso exatamente. 

Não lembro em que quartel eu fiz o alistamento. Lembro-me da propaganda na televisão: 

– Jovem, aliste-se! 

De muitas coisas na vida quis fugir. E se fugisse? Seria desertor. Seria apátrida. Tudo era um terror. Um fantasma. 

Na véspera de eu fazer exame médico, em que eu teria que ficar nu frente ao médico e ao lado de outros rapazes, eu já contava com meus 18 anos. Tinha cabelos compridos lisos, não tinha barba, tinha poucos pelos no corpo. Eu era imberbe. 

Na véspera desse dia, fui ao teatro. Fui ver Baal, peça do dramaturgo e poeta Bertolt Brecht, no Teatro São Pedro de São Paulo. Foi ver uma montagem dos alunos da Escola de Arte Dramática de São Paulo. 

Eu estava perturbado com o dia seguinte, mas entrei de cabeça, corpo e alma na ação da peça, na montagem que tinha na trilha It’s a long way, canção que me afetou, que me comoveu. 

Seria um longo caminho. Tirando o clichê, mesmo tudo sendo um grande clichê, até dizer que tudo é clichê é um clichê, acordaria cedo no dia seguinte. 

O exame seria no Ibirapuera. Eu fui de ônibus para o Ibira. 

Para que o leitor tenha uma ideia da distância longe que era (e é ainda), eu morador da Zona Norte de São Paulo e o Ibirapuera na Zona Sul, é como ir do Oiapoque ao Chui. 

Eu tinha que ir. Eu fui. Eu era um rapaz tímido, porém espalhafatoso. Eu já havia dito com 13 para 14 anos, no pátio da escola, sobre uma goma de mascar com recheio que aquilo era o chiclete que goza na boca. 

Mas no Ibirapuera, naquela manhã, eu estava mudo e sem sinal de demonstrar qualquer tentativa de ser espirituoso. Eu temia por meus cabelos compridos. 

Entrei calado no recinto onde se deu o exame médico. Eu tirei minhas roupas também sem abrir a boca e me coloquei frente ao médico calado. Apenas respondi o que ele me perguntou. 

Eu usava óculos, tinha uma marca de nascença (que ainda tenho), e uma costela a menos, também de nascença. 

Tive todas as doenças infantis que uma criança de terceiro mundo tem. E a revelação maior: tive febre reumática (reumatismo no sangue). Embora eu não tenha ficado com sequelas, naquela manhã, para o médico do Exército, eu não sabia se não levava comigo sequelas. 

Não podia mentir, mas podia plantar uma dúvida na cabeça do médico, um receio. Pensei que os óculos, a costela a menos e qualquer soprinho no coração causado pela febre reumática seria um conjunto de coisas, uma somatória que me impediria de eu servir o Exército. 

Dito e feito, eu fui excluído. Entrei no excesso de contingente. 

Quase um ano depois, no dia de jurar a Bandeira no Pacaembu, junto da maior multidão de reservistas, eu estava com o meu pé esquerdo quebrado, com gesso. Fui assim mesmo. 

Jurei a Bandeira e me livrei daquele fantasma. 

A ditadura não acabara ainda. Eu tinha algo à esquerda quebrado. Com gesso, com remendo. 

Conto isso porque na volta do Pacaembu, livre parcialmente do Exército, peguei um ônibus errado para voltar para casa. Tive que descer dele na Rua Alfredo Pujol e subir, de bota de gesso e tudo, a ladeira Frei Vicente do Salvador. 

No topo da ladeira, tinha a bota de gesso ralada. O leitor não terá a noção da subida, do quão ela é íngreme, com ou sem gesso numa das pernas, se eu não a comparar com as Colunas de Hércules, ou com as Monumentais, as escadarias da Universidade de Coimbra. 

Escrevo isso porque fui salvo depois daqueles três fantasmagóricos capítulos de minha vida, que foram me alistar no Exército, fazer exame médico e jurar Bandeira, menos por acreditar em redenção do que por qualquer outra coisa, uns óculos, uma costela a menos, um provável sopro no coração. 

A ditadura foi chamada de Redentora. Eu era (e ainda sou) contra regimes de exceção. 

Escrevo para fazer crônica. Sem dor aguda. E porque hoje vi uma fotografia da Rua Frei Vicente do Salvador, historiador seiscentista, a quem muitos anos depois estudei. Escrevo isso não para ser historiador. Escrevo esta crônica apenas para voltar aos dezessete depois de viver um século. 

 

 

 


Créditos na imagem: Arquivo pessoal. Foto: Eduardo Sinkevisque

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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