Benta Pereira 562

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Conversando com Raffaella Fernandez, fico sabendo que o sobrado onde Carolina Maria de Jesus morou na Zona Norte de São Paulo, em Santa Teresinha, bairro também conhecido como Alto de Santana, ou pertencente ao Alto de Santana, fica na Rua Benta Pereira, número 562.

Raffaella Fernandez é uma grande estudiosa de Carolina Maria de Jesus. Estuda Carolina há muitos anos[1].

Ficamos amigos quando estudei diários da Biblioteca Nacional brasileira no Rio de Janeiro. Ao mapear os tipos de diários dos acervos da instituição, foi incontornável consultar os manuscritos de Carolina de Jesus ali guardados. Isso foi o que me aproximou de Raffaella.

Raffa, como eu a chamo, perguntou-me, sabendo que sou morador da Zona Norte, do Alto de Santana, se conheço a Rua Benta Pereira. A princípio, me confundi com uma rua, travessa de uma ruazinha aqui perto de casa com nome de poetisa. Essa era poetisa mesmo, não poeta, como mulheres preferem ser chamadas atualmente. Confundi a Rua Benta Pereira com a Rua Francisca Júlia. Rapidamente, localizei a Benta Pereira em minha memória.

Antes de falar da Rua Benta Pereira, digo o nome da ruazinha que faz travessa com a Francisca Júlia, ou seja, a Rua Ana Benvinda de Andrade, também poetisa, parenta de Mário de Andrade que, diga-se de passagem, escreveu artigo sobre poesia parnasiana onde diz gostar da poesia de Francisca Júlia.

Sugeri a Raffaella procurar no Google Maps o endereço de Carolina Maria de Jesus da época em que morou em Santana. Não resistindo à curiosidade fiz isso eu mesmo.

Raffa me pediu, então, para ir ao endereço e fotografar a casa. Pensei que, sem carro, em pleno primeiro ano da pandemia de COVID, e em reclusão, iria demorar a fazer a fotografia para minha amiga.

Localizei o endereço, o número do logradouro, a casa. Salvei a foto, enviando para Raffa, com o endereço na Web.

Raffa me diz:

– Caramba, mudou. Está à venda. Vou comprar.

A Rua Benta Pereira para mim sempre foi local de passagem. Meandro desses para sair do bairro, acessando a Av. Brás Leme. Quebradas dessas em que a gente escolhe trafegar para fugir de engarrafamentos.

Além disso, a Rua Benta Pereira é uma travessa de uma rua, que não lembro o nome, onde morou uma amiga de infância de minha mãe, que virou comadre dela, a quem minha mãe conhece há mais de 60 anos. Lugar onde cansei de ir.

Há outra característica saborosa na Benta Pereira. Por ali, muito próximas havia duas casas de comidas árabes, cujas esfihas eram deliciosas.

Em um terceiro endereço onde se vendiam esfihas eu ia, com meu pai, aos sábados. Ficava numa das ruas laterais do Cemitério Chora Menino. Para ir lá a gente também passava pela Benta Pereira.

Era uma casa com forno à lenha no quintal rodeado por árvores. Esperávamos ali mesmo a encomenda ficar pronta. Não havia delivery à época. O senhor que abria a massa e a recheava mal falava português. Essas esfihas foram as melhores que comi em toda minha vida.

Para irmos lá passávamos pela Benta Pereira, como disse. Talvez o racismo estrutural, em mim, ou uma espécie de lirismo (prefiro está hipótese, mesmo não descartando a primeira) sempre fez com que eu achasse que Benta Pereira fosse nome de uma mulher negra. Não é.

Nunca pesquisei quem foi Benta Pereira, que deu nome à rua onde morou Carolina Maria de Jesus em seus tempos de casa de alvenaria e que foi lugar de passagem em minha vida, até Raffaella me contar da moradia de Carolina ali no número 562.

Fui ver quem foi Benta Pereira. Ao contrário do que pensava, Benta Pereira foi uma senhora escravocrata, dona de terras que viveu e lutou contra o Visconde de Assecas no século XVIII[2].

Benta, benzida rua a Benta Pereira para mim. Lugar de passagens e de memórias.

A conversa com Raffaella Fernandez me levou à Casa de Alvenaria, de Carolina, ao volume dois da recente publicação da Companhia das Letras.

Benta Pereira não foi uma mulher negra.

No número 562 da rua, cuja placa homenageia uma viúva, proprietária de terras, uma escravocrata, que batalhou para manter suas terras, morou uma mulher negra, uma escritora, Carolina Maria de Jesus.

Talvez meu lirismo ainda que menino soubesse da moradora escritora ali. Da mulher negra que, de Jesus, era benta por seu talento de escritora. Talvez em meu lirismo infantil, e sem saber, sabia ser Carolina Maria de Jesus a Benta Pereira negra, não a branca escravocrata.

Não imaginava que no logradouro em questão duas mulheres combativas, resistentes, cada uma à sua maneira ficariam costuradas por minhas memórias.

Os nomes das ruas sempre me intrigaram. As placas historiam ilustres nem sempre bem quistos, nem sempre razoáveis. As placas são monumentos urbanos. Fazem vezes de esculturas, retratos, estátuas equestres. Assim como os outros monumentos, as placas de ruas devem ser repensadas.

Em Santana, onde nasci e vivi quase sempre, onde tenho vivido há muitos anos depois de ter voltado de Porto Alegre (e de ter morado em outras cidades), há inúmeras ruas com nomes de escritores, escritoras, poetas, como Aphonsus de Guimarães, Aloísio Azevedo, Afonso Shimidt, para além das já mencionadas Francisca Júlia e Ana Benvinda de Andrade. Já prometi, para mim mesmo, mapear essa plêiade, mas nunca faço isso.

Quando morrer, não quero ser tal qual Mário de Andrade, que disse em poema para enterrarem as partes de seu corpo em sítios espalhados de São Paulo. Quero ser desenterrado da cidade. Tal qual a um fantasma quero assombrar a Rua Benta Pereira, trocando para Carolina o nome da placa. Ao menos em minha fantasia ela há de se chamar Rua Carolina Maria de Jesus e não mais Benta Pereira.

 

 

 


NOTAS

[1] Raffaella Fernandez é pós-doutora em Estudos Culturais pela UFRJ (2020), autora de A poética de resíduos de Carolina de Jesus, resultado de sua pesquisa de doutorado em Teoria e História da Literatura pela Universidade de Campinas (Unicamp). Organizou os três últimos livros de Carolina intitulados Onde estás felicidade? (2014), Meu sonho é escrever (2018) e Clíris (2019). Atualmente compõe o conselho editorial da Companhia das Letras que irá publicar a obra completa de Carolina Maria de Jesus. Para mais informações sobre a publicação das obras completas de Carolina Maria de Jesus, pode-se consular este link: https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,ineditos-de-carolina-maria-de-jesus-comecam-a-ser-publicados,70003800305

[2] O leitor que quiser saber mais sobre Benta Pereira pode acessar os links: http://g1.globo.com/rj/norte-fluminense/noticia/2015/06/documentario-sobre-benta-pereira-sera-lancado-em-campos-no-rj.html ; https://www.youtube.com/watch?v=4O2PZwBxYoY

 


Créditos na imagem: Divulgação. Atual construção de casa no endereço onde morou Carolina Maria de Jesus, em Santana, São Paulo. Fonte: Google Maps.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

1 comment

  1. Avedis Balakdjian 18 novembro, 2021 at 21:22 Responder

    Oi Eduardo! Avisa a sua amiga que houve modificação na numeração da rua e a casa que era da Carolina Maria de Jesus é a de número 578 hoje. Sou filho de quem comprou a casa que era dela, e tenho a escritura onde consta o nome dela. Estou à disposição para mostrar o documento e a casa. Abraço. Avedis.

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