A propósito de Rubem Fonseca – um obituário

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Para Nancy Casagrande e Luís Aquino

 

Rubem morreu e foi a maior violência do dia e fiquei arrepiado e meus olhos tremeram- se e tremeu o chão sob meus pés. Rubem morreu e o realismo pode voltara ser apenas realista. E a realidade venceu.

 

Em 1988/89 um grupo de meninos e meninas torcia o nariz pra Rubem Fonseca[1] nos corredores do Prédio Novo da PUC/SP. Uns poucos não torciam o nariz. Levavam até na mochila livros mais vendidos do escritor.

Ele era tido como diluidor, um sucesso de banca de jornal, embora festejadíssimo. Era um autor midiático. Médio, mediano. Eu fazia parte dos que torciam o nariz. e era dos que não tinham lido e não gostavam.

À época estava muito entretido com a considerada alta literatura, com a erudição etc.

O grupo pensava Rubem como autor pós-moderno. A mim, ele não interessava. eu apenas fui ler Rubem a partir de 2010. Li seus contos de primeira fornada, seu livro de estreia e seus primeiros romances. Li uma tese sobre ele e alguns artigos que o interpretam.

Fiquei leitor dele. Minha bronca com realismos deixei de lado. Entendi a invenção de realismo em Rubem. Ainda bem que não era mais o menino dos corredores do Prédio Novo da PUC/SP.

De 2010 até 2013, ao menos, eu li Rubem Fonseca. Ao ponto de o nomear aqui apenas Rubem. Encontrei, nas leituras, um autor erudito, que se debruça sobre a violência no (e do) Brasil, que critica a burguesia, o autoritarismo etc. Encontrei um conhecedor de música clássica (ou erudita), e da alta literatura, que o menino que eu tinha sido, erradamente, não viu.

Eu procurava fora de Rubem justamente o que em Rubem havia. E não é porque ele morreu que digo isso. Não é uma mea-culpa. Não é um elogio fúnebre o que escrevo. digo isso porque me tornei leitor de Rubem.

Se tenho uma dívida com ele, ela é a dívida do Cobrador. E com Rubem eu digo cruamente que “quero buceta!” e para Rubem eu desejo que a eternidade lhe dê buceta!

Pensamentos vastos e imprecisão (ainda sobre Rubem Fonseca)

 

Para João Adolfo Hansen e Celso Favaretto

 

Uma vez, praticamente sentados em um meio fio em frente a uma galeria de arte em São Paulo, eu e João conversávamos. Já nem lembro os assuntos. lembro que João contou que aguardava, quando jovem e morador de uma cidade do interior a chegada de novo livro de Drummond, sentado ao lado da banca de jornais, distribuidora de livros. A cidade não tinha livrarias. Ele e seus amigos passavam madrugadas bebendo e conversando a espera de Drummond.

João tinha sido meu orientador de mestrado e doutorado. Na ocasião dessa conversa, eu estava em meu primeiro pós-doutorado. Ele era ainda meu orientador. Ele tinha sido leitor do meu projeto de pesquisa desse primeiro pós-doc. Não me lembro por que Rubem Fonseca surgiu no papo. Qual miséria ou violência nos levou a Rubem?

Era noite. A iluminação pública era fraca. Estávamos na Barra Funda, ao lado de uma antiga vila operária dos anos 20 do século XX. Havia conosco um professor de filosofia, da área de estética. João lembrou um conto de Rubem em que um casal antes de dormir juntos, na mesma cama, e mesmo quarto, e mesma casa, privando de intimidade, retirava cada um deles suas próteses.

João disse palavra por palavra, como se pernas mecânicas fossem retiradas, dentaduras depositadas em copos ao lado de cabeceiras. E, agora, eu invento cílios postiços, perucas, seios.

João era preciso, rigoroso, como só poderia. Eu, um ouvinte distraído, e agora um narrador esquecido, não sei o nome do conto de Rubem. Foi a única vez que conversei com João em que Rubem Fonseca aparecesse.

Graciliano já havia estado em nossos papos, Clarice também. e, para nós um dos poetas preferidos, Drummond.

João, talvez, corrigisse as imprecisões de meu relato. Mas penso que o rigor acabaria com a vastidão. Tintas imprecisas anunciam haver muitos caminhos narrativos. A crueza do amor maduro está dito. Rubem foi mestre nisso, nas coisas cruas. E, essa história não é apenas memória. Foi vivida. A vila operária remanescente quase destruída.

 

 

 


NOTAS:

[1] Rubem Fonseca morreu em 15 de abril de 2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Rubem Fonseca — Foto: Divulgação/Zeca Fonseca

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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