Pra ver a minha santa padroeira
Eu vou à Penha
De qualquer maneira
– Noel Rosa e Ary Barroso
Não foi Vila Isabel o bairro mais cantado por Noel Rosa, e sim a Penha. Não foi por acaso toda essa inspiração de Noel. E não foi só ele quem teve a festa da Penha como musa. São inúmeros os sambas que citam a Penha e sua festa. Nos finais de semana do mês de outubro acontecia a tão famosa festa da Penha – o que restou da festa hoje não chega aos pés do que a festa foi nas primeiras décadas do século XX. Era um verdadeiro carnaval fora de época, considerada a avant-première[1] do carnaval carioca, tornando-se uma das mais tradicionais manifestações culturais da cidade do Rio de Janeiro, de acordo com inúmeras publicações em periódicos da época.[2]
A festa, que começou basicamente portuguesa, onde entoava-se o Te Deum, cantava-se fado e dançava-se o vira (MORAES FILHO, 1979), acabou se transformando num verdadeiro carnaval, só que em outubro e frequentada, também, por tias baianas, negros recém libertos, malandros e sambistas, ranchos e cordões carnavalescos. O casamento do sagrado com o profano teve como fruto a festa da Penha, inspiração para tantos sambistas que fizeram do arraial um lugar de divulgação dos seus sambas.
O memorialista Melo Morais Filho – atento à questão das festas e manifestações populares no Brasil de meados do século XIX -, foi um dos primeiros a escrever sobre a Penha, em seu livro Festas e tradições populares do Brasil. Segundo ele, nas primeiras romarias, ainda no período colonial, eram os portugueses, em sua maioria incultos e trabalhadores rudes, que concorriam para louvar e festejar a Virgem da Penha, ao modo dos festejos portugueses. Morais Filho, já apontava a romaria da Penha como estrepitosa e alegre. O sagrado se misturando ao profano. Enquanto os romeiros subiam as escadarias esculpidas na pedra, a pé, de modo a pagar suas promessas e externar suas gratidões à Virgem da Penha, outros, juntavam-se às diversas barraquinhas de comidas e bebidas, cantavam, dançavam e jogavam. Ouvia-se a todo o momento vivas à Penha. A todo o instante chegava gente de diversos cantos do Rio de Janeiro para assistir à festa, pagar promessas e se divertir (MORAES FILHO, 1979, p. 137).
Segundo Melo Morais Filho, o início da devoção à santa ocorreu quando um caçador, que andava por aquele lugar, foi surpreendido com uma cobra gigantesca que ameaçava ataca-lo. Muito assustado, e com medo, ergueu as mãos e clamou: – “Valha-me, Nossa Senhora da Penha!”. Nesse mesmo instante um lagarto salta de uma pedra e afugenta a terrível cobra, livrando o caçador da morte. Refeito do susto e ciente do milagre que o salvara, erigiu no alto da pedra uma ermida votiva para Nossa Senhora da Penha e todos os anos ia, em romaria, render graças à Virgem (MORAES FILHO, 1979, p. 132). Com o passar do tempo tal romaria se tornou uma grande festa.
À medida que foi se aproximando o final do século XIX, enquanto algumas das principais festas do Rio de Janeiro, como a do Divino, perdiam força, a festa da Penha seguia na contramão, aumentando consideravelmente sua popularidade. Para Martha Abreu e Larissa Viana em Festas religiosas, cultura popular e política no império do Brasil, a festa da Penha, juntamente com o “carnaval moderno”, substituiu o espaço cultural deixado pela festa do Divino Espírito Santo, “a derrota do Divino correspondeu à vitória de outras festas”, neste caso, a festa da Penha. Nesta virada de século, a Penha começou a atrair grande contingente da população negra, recém liberta, juntamente com sua riquíssima cultura (ABREU; VIANA, 2014, p. 257).
Martha Abreu, em seu clássico O império do Divino denuncia que a partir de meados do século XIX as elites políticas e os intelectuais assumiram uma posição contra as festividades religiosas, condenando as festas, suas barracas e diversões, passando assim a considerar tais festividades como “bárbaras, perigosas, vulgares e ameaçadoras da ‘família higiênica’, levando o próprio clero a olhar com desconfiança para esse catolicismo barroco” (ABREU, 1999, p. 37).
Calcados nessa onda de progresso e civilidade, de razão e ciência, à moda francesa, europeia, as práticas populares e suas festas eram tidas como manifestações de atraso e ignorância. Tais festejos, como os da Penha, deveriam ser eliminados, pois, não representavam a modernidade, pelo contrário, segundo esses intelectuais, representavam um mundo em extinção. Denominaram a romaria à Penha de escandalosa e selvagem (SOIHET, 2008, p. 344). Dentre esses críticos, destaca-se Olavo Bilac, jornalista, cronista e poeta. Bilac fez duras críticas à festa da Penha, chamando-a, em algumas de suas crônicas, de bárbara e selvagem (Kosmos, Outubro de 1906).
Por volta do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX os negros passaram a ser predominantes, em detrimento dos portugueses, nas festas da Penha. Rachel Soihet, a principal historiadora no que se refere à festa da Penha, defende que, dentre os negros que passaram a frequentar a Penha, as comunidades dos negros baianos foram de grande importância para a festa. As tias com suas barracas foram pontos de encontro, identidade e resistência cultural através da música, da dança e da culinária (SOIHET, 2008, p. 347).
Raul Pompéia em uma crônica sobre a festa da Penha, em 1888, alguns meses após a abolição, destaca a presença de negros na festa e seus respectivos modos de festejar. Descreve a viola que chocalha no compasso, o pandeiro que acompanha, a sanfona que geme, o negro que esfrega a faca no prato e a mulata que requebra no meio da roda. Segundo ele, era possível encontrar tais rodas por toda a parte do arraial. No meio dessas rodas de batucadas, Pompéia também descreve a presença de grupos carnavalescos, e destaca: “enroupados à fantasia” (POMPÉIA, 1982). Era o início do carnaval. Só que alguns meses antes, em outubro.
A partir desse momento, já nas primeiras décadas do século XX, a festa da Penha torna-se a festa mais popular da cidade do Rio de Janeiro, depois da festa de Momo, sendo palco, inclusive, do lançamento de sambas e marchinhas para o carnaval que se aproximava. Antes do surgimento das rádios era na Penha que eram lançados os sambas que fariam sucesso no carnaval, segundo Donga, Sinhô, Heitor dos Prazeres, Noel Rosa e outros (MOURA, 2004, p. 125). Por este motivo a Penha foi tão cantada na música popular brasileira. Não são poucos os sambas que falam da festa da Penha e conforme mencionado no início do texto, Noel tem mais samba falando da Penha que da sua Vila Isabel.
O jornal Gazeta de notícias, exaltando a importância da festa para a sociedade da época, afirmou que não havia jornal que não publicasse em outubro as crônicas dos domingos na Penha (Gazeta de notícias, 16/11/1911). O jornal O século, também, em diversas publicações, exaltou a importância da festa da Penha. Em uma publicação de outubro de 1908 publicou: “A festa da Penha está no coração de toda a cidade, é uma festa do povo” (O século, 03/10/1908). Não eram poucas as publicações que noticiavam a Penha como a grande e tradicional festa popular do Rio de Janeiro.
A partir dos primeiros anos do século XX as notícias de sambas e festejos tipicamente carnavalescos nas festas da Penha se tornaram constantes. A Gazeta de notícias, em outubro de 1907, noticiava que no arraial, um grupo acompanhado do “gemido de violões, da chinfrinada das violas”, cantava modinhas e no lugar “formigavam-se os sambas com os reboleios das mulatas e as figuras requebradas dos dançadores”. Segundo o jornal, esse grupo sambava incansavelmente até a hora de pegarem o trem de volta, e finaliza a notícia dizendo que “o samba continuava, bem batucado e palmeado, bem gritado e cantado, até a estação de São Francisco Xavier” (Gazeta de notícias, 28/10/1907).
Outro jornal, o Correio da manhã, em Outubro de 1905, relata que na festa da Penha, “os pandeiros do samba, os choros de dois ou três instrumentos surgem de todos os lados” (Correio da manhã, 28/10/1905). Um carnaval! Novamente a Gazeta de notícias descreve a presença de negros, dessa vez, afirmando serem as negras baianas as responsáveis belas batucadas da Penha. Segue a notícia: “Em diversos pontos do arraial, bando de baianas requebravam-se ao toque de pratos, violões e outros instrumentos. Podia-se dizer que a festa do arraial foi das baianas” (Gazeta de notícias, 27/10/1902).
São constantes as notícias de sambas e ranchos carnavalescos na Penha e à medida que vamos caminhando pela primeira década do século XX, rumo à segunda, esses relatos vão aumentando. Consta no periódico A época que um grupo, ao som de pandeiros, flautas e cavaquinhos, acompanhava um cordão, e todos cantavam em coro os versos: “Yayá, yoyô / Faça Favô / Entre na dança / Mostre valô” (A Época, 21/10/1912).
A Gazeta de notícias, em outubro de 1909, descreve que encontrou no arraial um rancho carnavalesco chamado Não lhe bulas, “tendo cerca de vinte moças fantasiadas que cantavam ao som de pandeiros. ‘Onde vais, pastora / Tão bela assim? / Ver o Não lhe bulas / Lá no seu jardim’” (Gazeta de notícias, 11/10/1909).
Jota Efegê, em Meninos, eu vi, fala sobre a preocupação que malandros, sambistas e capoeiras tinham com a aparência ao irem à festa da Penha. Segundo Efegê, eles “tinham a preocupação de aparecer no arraial ostentando uma ‘beca’, um ‘pano’ novo. De preferência branco caprichosamente engomado e bem lustroso”. O samba Festa da Penha de Cartola e Adalberto de Souza reflete bem essa preocupação em estar bem vestido para ir à festa. O samba começa assim: “Uma camisa e um terno usado alguém me empresta / Hoje é domingo e eu preciso ir à festa / Não brincarei quero fazer uma oração / pedir à santa padroeira proteção”.
Sinhô, um dos principais compositores da primeira geração do samba, compôs um samba exaltando a Penha: “E viva a Penha! / E viva a Penha! / De amores estou farto / Quem tiver dinheiro venha”. Noel, assim como Sinhô, cantou a Penha em diversos sambas seus, como no clássico Feitio de Oração em parceria com Vadico: “Por isso agora lá na Penha vou mandar / minha morena pra cantar com satisfação / E com harmonia esta triste melodia / Que é meu samba em feitio de oração”. No samba Meu barracão: “Não há quem tenha/ mais saudades lá da Penha / do que eu, juro que não…”. Tem o samba De qualquer maneira em parceria com Ary Barroso: “Pra ver a minha santa padroeira / Eu vou à Penha / De qualquer maneira”. E em outros tantos sambas em que o poeta da Vila citou a Penha.
O amor entre Penha e o samba deu muitos frutos. Sucesso no carnaval de 1927, o samba Braço de cera também falava da Penha: “Mulher, a Penha está aí / Eu lá não posso ir / Um favor vou lhe pedir / Me leva um braço de cera / À Santa Padroeira / Foi o que lhe prometi” (TINHORÃO, 1975, p. 184). Ary Barroso também fez samba pra Penha, intitulado Vou à Penha: “Eu vou à Penha / Se Deus quiser / Pedir à Santa carinhosa / Para fazer de ti, mulher / De um coração, a rainha / Mais poderosa e orgulhosa”.
Samba falando da Festa da Penha é o que não falta, a Virgem lá do alto da pedra foi musa inspiradora para toda uma geração de sambistas que vivenciou o auge da festa nas primeiras décadas do século XX. A Penha continuou inspirando compositores ao longo das décadas subsequentes e outros sambas foram surgindo. Caetano Veloso em Pé do meu samba: “Você é a Festa da Penha /A Feira de São Cristóvão / É a Pedra e o Sal”; João Bosco e Aldir Blanc em Escadas da Penha: “Nas escadas da Penha, penou / No cotoco da vela, velou / A doideira da chama, chamou / O seu anjo-de-guarda, guardou”; E até em ritmo de baião a Penha foi cantada e imortalizada na voz do Rei Luiz Gonzaga, em Baião da Penha de David Nasser e Guio de Moraes: “Demonstrando a minha fé / Vou subir a Penha a pé / Pra fazer minha oração / Vou pedir à padroeira / Numa prece verdadeira / Que proteja o meu baião”.
A festa da Penha foi a grande festa do Rio de Janeiro do início do século XX, cantada e batucada por diversos sambistas. Foi o grande abre-alas do carnaval carioca. Altar e terreiro. Cachaça e água benta. Foi o sagrado e o profano.
Viva a Santa! Viva a festa! Viva o samba!
E como cantou Sinhô: E viva a Penha!
REFERÊNCIAS
A Época, 21/10/1912.
ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830–1900. Rio de Janeiro e São Paulo: Nova Fronteira e Fapesp, 1999.
ABREU, Martha; VIANA, Larissa. Festas religiosas, cultura popular e política no império do Brasil. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil imperial. Volume III: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
Correio da manhã, 28/10/1905.
Gazeta de Notícias, 27/10/1902.
Gazeta de Notícias, 28/10/1907.
Gazeta de Notícias, 11/10/1909.
Gazeta de Notícias, 04/10/1911.
Gazeta de Notícias, 16/11/1911.
Kosmos, Outubro de 1906.
MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Ed. USP, 1979.
MOURA, Roberto. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
O Paíz, 06/10/1913
O século, 03/10/1908.
POMPÉIA, Raul. Crônicas do Rio. Rio de Janeiro: MEC-FENAME/OLAC/Civilização Brasileira, 1982.
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Uberlândia: Editora de Universidade Federal de Uberlândia, 2008.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de Índios, Negros e Mestiços. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1975.
NOTAS
[1] Termo utilizado por Racheil Soihet ao se referir à festa da Penha como palco de lançamento de músicas que seriam sucessos populares no carnaval que se aproximava. Ver: (SOIHET, 2008).
[2] Inúmeros jornais da época, em suas descrições da festa da Penha, a julgam como tradição. Em 04/10/1911, a Gazeta de Notícias publicou: “A festa da Penha – já se torna um lugar comum afirmar – é a nossa derradeira festa tradicional”. Em 06/10/1913, O Paíz noticiou: “A tradição! E nada mais que tradição é a festa da Penha. Tradição única. Tradição religiosa, que não deve acabar, nem mesmo degenerar. ”
Créditos na imgem: Revista O Malho, 7 de outubro de 1911.
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Tadeu Goes
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