Disse a minha mãe que eu era um desses casos de água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Eu sempre ouvi essa expressão, mas ler eu a li em uma carta de Mário de Andrade em que ele diz que um certo escritor era um caso desses. Escritor que se fizera às custas de insistência, de labuta, exercício e constância.

Não foi para mim que Mário disse isso. Quando li, eu era aluno de Graduação em Letras. Eu escrevia poemas dispersos. A primeira reunião de poemas que fiz era insípida, inepta, insuficiente.

Soltei os poemas. Não davam liga. O nome que os reunia era ruim, mas era como eu via. Era meu sentimento de mundo.

Essa reunião, seleta, antologia ou série, não vingou. Não resistiu ao tempo, nem à água mole em pedra dura.

Eram poemas anteriores a eu entrar em Letras.

Nos primeiros anos do curso, uma das professoras de Língua Portuguesa vaticinou que eu nunca seria um bom resenhador. Vaticinou que, se eu dependesse de resenhas, ou crônicas para viver, eu morreria de fome.

Continuava a escrever poemas soltos.

Um dia, comecei a escrever uma história em poemas narrativos. Não era uma épica, nem tragédia. Era a história de um casal de gatos, uma prosopopeia. Não era a Prosopopeia. Era uma fábula para adultos. Chamei os poemas de poemas tabagistas. Eu fumava à época. E vinha escrevendo uns poemas, que não sobreviveram. Eram eles os tabagistas.

Eu começara a escrever pensando em alguma unidade, alguns temas, com alguma relação entre eles. A história dos gatos passou a ser os poemas tabagistas. Eles fumavam, trepavam, se relacionavam, se separavam.

Eu já estava no meio do total de semestres a cumprir da Graduação.

Esses poemas foram reescritos durante uns 20, 30 anos. Chamaram-se Gatomaquia. E foi o primeiro livro, estrito senso, que compus. Ele ganhou uma epígrafe de Lope de Vega, por decoro.

Mas daí, eu já me formara Bacharel em Letras. no Mestrado eu já estava. E Lope de Vega foi incluído porque eu estudava prosa histórica seiscentista.

A água mole batendo.

Não vou continuar essa narrativa in ordo naturalis de tudo que escrevi (em livros).

A vida é in media res. quando não, ao rés-do-chão.

Disse a minha mãe que eu era um desses casos de água mole em pedra dura. Mário de Andrade estava em mim. Eu consciente de minha trajetória, de minha travessia, do que carreguei, do que extraviei, do que perdi.

Quando li na carta do Mário sobre a água mole, eu quase desconjurei. Cruzes. eu, hein?

Não, nunca admitiria àquela altura da vida ser um dos casos de insistência, esforço, trabalho ou dispêndio. Eu era um moço romântico. E desejava para mim, talvez, o efervescer do gênio.

Foi preciso muita água, muita pedra. E ainda mais ressaca na rebentação para que eu, não apenas me livrasse dos conceitos oitocentistas em literatura, como entender que sem o exercício, sem a prática meu ofício não se faria.

Eu sou a pedra. E ao mesmo tempo a água que em mim bate. O exercício e o exercitador.

Sou o caso daquele que se forjou escritor. Se a água mole bateu em mim pedra dura, foi a linguagem que me moldou.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Carta de Di Cavalcanti a Mario de Andrade. As cartas de Mario de Andrade a Anita Malfatti, Carlos Drumond e Portinari. El País, 2015.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “156”][/authorbox]