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Ancestralidade, vela de reza e oralidade: a ética bantu da hospitalidade
Ensaios e opiniões

Ancestralidade, vela de reza e oralidade: a ética bantu da hospitalidade 

 

I. O conceito de rit(m)o

 

O primeiro lugar que vivi foi o apartamento da avó paterna, no Conjunto do antigo Ipase. Doceira, devota de Cosme e Damião, batia cabeça para o santo, armava presépio fim de ano, rezava o Rosário na igreja do Carmo, ouve o padre carismático na rádio até hoje. Mantinha acesa uma vela em um pires e um copo d’água sob o criado mundo, reservadamente. Eu não sabia mas a chama queimando, protegida sob uma toalha de renda que descia do móvel ao chão, guardava um mundo excedente ao meu. Nada de heroico nessas narrativas que valesse a pena serem contadas, tirando o fato de que não sobreviveríamos sem elas. Elas nos carregam a uma região fantasmagórica capaz de transformar narrativas em palavras de encantamento, de conjurar cacurucaios entocados no breu das zonas industriais abandonadas (como a poética de Marcos Nascimento). Queria chamar de ancestrismo o alargamento deste mundo, funcionando quase como eclosões de memórias involuntárias, sob o princípio de que o tempo não é uma medida geométrica, mas é fundado e refundado na vida íntima dos rit(m)os. Quando Aldir Blanc saúda João Cândido, opera sob um nível de vínculo em que tempo não preexiste às pedras pisadas. O que permitiu que um monumento digno ao Almirante fosse não uma estátua de bronze, mas as pedras do cais: monumentos a um mundo excedente, fundado e refundado na vida íntima dos rituais de trabalhos dos escravizados da estiva.

O presente na Colônia corresponde a séries de repetições de sussurros que permitem que “pessoas absolutamente sem glória surjam do meio de tantos mortos, gesticulem ainda, continuem manifestando sua invencível obstinação em divagar, compensando talvez o azar que lançara sobre eles, apesar de sua modéstia e anonimato, o raio do poder” (FOUCAULT, p. 210). Não se faz o inventário destes gestos e sussurros sem que se ouça, no contratempo das vozes desencapadas, o ar carregado da eletricidade dos tambores. As vozes que vivem da minha vela, comem da minha cozinha, também dançam da síncope do meu atabaque. Como os tambores[1] (no sincopado do surdo de terceira das baterias de Escolas de Samba; ou no caso clássico das casas de santo, rum, rumpi e lé; ou numa bateria de um mestre de capoeira), o fogo doméstico da casa da vó acenou para ancestrais ilustres (os africanos sexagenários), para os primeiros habitantes da terra (os xamãs indígenas, o caboclo velho), para o lúmpen dos espectros (a vasta população do povo-de-rua). O contato com os espíritos destes antepassados foi um convite para que interviessem como atores em uma encenação macunaímica de origens.

Ao que tudo indica, entre os africanos, o culto aos ancestrais domésticos provém da África bantu, da região Congo/Angola, de onde teria vindo a maior parte dos escravizados trazidos para o Sudeste, entre o século XVIII e a lei Eusébio de Queiroz. Entre os Bakongo, o fogo caseiro, a fumaça ritualística, serviram de veículo para os espíritos se manifestarem aos vivos e estender-lhes sua proteção. A importância do fogo ritualístico, sempre aceso, símbolo dessa mediação, ardia nas fazendas, dentro da choça dos escravizados, e era mantido permanentemente, mesmo nos dias mais quentes. Há um ensaio de Robert Slenes, que analisa o assunto.

 

Em seu relato de 1687 sobre os três reinos do Congo, Matamba e Angola (isto é, sobre os povos bakongo, da região do baixo Rio Zaire, e os povos mbundo, da região de Luanda e seu interior), o padre capuchinho Giovanni Cavazzi de Montecuccolo nos dá a seguinte descrição do interior das habitações nesses Estados: ‘No meio delas [casinhas baixas, tenebrosas, sem janelas e cobertas de colmo] acende-se um grande lume, ao redor do qual, depois de ter saciado a fome, todos se deitam com os pés para o fogo e a cabeça para as paredes, estando tudo envolvido no fumo; assim dormem profundamente (SLENES, 2011, p. 241).

 

A opinião segundo a qual o culto bantu aos ancestrais não podia fazer frente à institucionalização, nos candomblés baianos, do sistema nagô, foi incensada por gerações de antropólogos que, como ensina Antonio Spirito Santo, remontam a Edison Carneiro, Arthur Ramos e Bastide. Porém, as velas do quartinho do santo, nas regiões de roçado de cana, são aquelas que sobreviveram no mobiliário dos oratórios em madeira, e com idêntica potência remissiva ao lado de imagens de São Jorge nas prateleiras das biroscas, com os azulejos de santo nos frontais das casas de subúrbio, ou sob o criado mudo no apartamento do Ipase. O fogo bantu contribuiu para que os centro-africanos esboçassem novos sentidos comunitários em seu desterro em outro continente, e ele sempre esteve aceso nas casas do país dos subúrbios.

 

II. Oralidade e imanência

 

Assim que assisti Fartura[2] tive a sensação de ver minha história sendo contada pela biografia de outras pessoas tão anônimas quanto eu. Alguns amigos me disseram a mesma coisa. Tenho pensando o quanto isso destoa da lógica que opõe uma história contada (o tempo do mundo à imagem do calendário da Colônia) e uma história ingenuamente desacontecida, à sombra de um porvir que lhe devolva sentido. Então penso nos pontos de preto-velho, nas ladainhas e fundamentos que conjuram mestres ancestrais na capoeira angola, na codificação de células rítmicas propiciatórias da assunção dos orixás nagôs: são todos “excedentes”, apenas para a surdez ocidental carecem de sentido histórico. Tampouco suportam alguma conceitualização. Gostaria de testar uma “noção” de oralidade sob a perspectiva de uma epistemologia comum às culturas de diáspora. Quer dizer, a oralidade não como um regime de discursos, mas como um rastro que se desenrola sob um plano que o funda e ultrapassa: um espaço incriado, um plano de virtualidades. Um fundo de lembranças recorrentes gravadas, ao longo de séculos, na ritualização de um sentido vital comum: é de onde Fartura tira suporte.

Para tradições cujo “fim da história” não foi uma obsessão metafísica, mas uma condição posta, que exigiu o esforço pela ampliação de um mundo desertificado, um sentido comunitário é garantia de uma farta reserva de força vital. Escrito e dirigido por Yasmin Thayná, Fartura nasceu de uma pesquisa com álbuns de fotografia de famílias negras suburbanas (desses que no Natal a gente desengaveta e espalha sobre a mesa). Cedo ouvimos que nada disso tem valor histórico. Também nada de heroico nessas narrativas que valesse a pena serem contadas, a não ser o fato de que não sobreviveríamos sem elas.

Enquanto escrevo, ouço ao samba/reza de Paulinho da Viola que termina com a estrofe “Faz tudo o que sente, nada do que tem é seu. Vive do presente, acende a vela no breu”. A vela no breu é da mesma natureza que a temporalidade excedente de Fartura. O subúrbio das velas nas encruzilhadas possui a mesma coisa, um “eco das pedras entrando no silêncio”, como diz o poeta de Inhaúma. O excedente sussurra nas culturas de oralidade, embora a oralidade não seja por si suficiente para conter as constelações que emanam do espaço mítico incriado. A temporalidade excedente fala através de ritos ancestrais, que assim performam uma permanente reinauguração do mundo mobilizada pelo princípio dinâmico: na mitologia dos iorubanos, Exu; para os fons, Legba.

Nas sociedades africanas tradicionais, o ponto de partida da interrogação sobre a existência humana não é a questão do Ser, mas da relação. “É a questão de saber como me transportar para lugares longínquos, simultaneamente diferentes do meu lugar e implicados nele” (MBEMBE, p. 52). Por isso a terra da comunidade é inviolável, um tabu [kîna]. Vender a terra da comunidade implica carregar um jugo mortal, assim como manter propriedades em excesso faria com que se fosse morto ou se tivesse a descendência amaldiçoada. O sistema social Kôngo preparou interdições que impediam que a terra, de posse das raízes ancestrais da comunidade, perdesse seu caráter indivisível. Alienar a terra é não só dividir a comunidade, é ferir certa plasticidade do eu imprescindível tanto à hospitalidade com os que virão, quanto à abertura face ao desconhecido da migração forçada. Acaso nossos inquices irão nos acompanhar ao exílio? Quem irá cultuar nossos antepassados deixados para trás na travessia da grande calunga? Por isso ter sido tão natural à população da África Centro-Ocidental ter improvisado, na Colônia, uma experiência de sagrado mais elástica que as fronteiras com o profano do catolicismo romano.

“Entretanto, se é típico dos povos da África Central se preocupar com a relação entre os homens e os espíritos, o objetivo não é apenas o de reafirmar uma identidade histórica. Visa-se sobretudo, através dos rituais corretos, garantir que os espíritos ancestrais e da natureza continuem a oferecer sua proteção” (SLENES, 2011, p. 246).. Afinal, a falange dos pretos-velhos, o culto aos ancestrais domésticos bantus, qual seu protocolo?  Pai João do Congo, Pai Joaquim de Angola, Vovó Maria Conga, indicam que Aruanda, sua morada mítica, “nada mais é que o continente africano, simbolizado na cidade de Luanda, capital da hoje República Popular de Angola” (LOPES, 1988, p. 164). Aquilo que se apresentou tardiamente como uma pirataria do kardecismo por parte do culto bantu, como desvio que mantém na liturgia umbandista o contato com espíritos dos antepassados (chamados pretos-velhos, divindades territoriais), seria apenas aparição recorrente do ancestrismo que a escravidão tentou abolir.

 

Todo mundo veio de lugares diferentes da África, certo? Línguas diferentes, deuses, cosmologias. Logo começaram a formar um grande caldo. Com cenouras e ervilhas e batatas pra lá e pra cá, além de carne, castanhas, quiabo e milho. E você mistura tudo, cozinha bem, deixa os ingredientes transbordarem. E o resultado é uma coisa só: você tem um belo cozido. Então você pega e come desse cozido. E você faz sua história com esse cozido. Mas você olha em volta e vê cenouras num canto, ervilhas no outro. E o cozido continua lá. Você termina sua história pessoal, e ele ainda está lá. Você não consegue comer tudo. E o que tem agora? O leftover, é isso que você tem. Veja, nós somos os leftovers. O negro é o leftover. O que ele vai fazer da vida? É o que estamos esperando pra ver.[3]

 

Remonta aos séculos XVI e XVII, quando o complexo cultural da África Centro-Ocidental, atravessando um Atlântico e uma floresta tropical, via seus mundos serem ampliados e favorecidos na assimilação criativa de espíritos ancestrais dos primeiros habitantes locais. Antes da umbanda, antes dos antigos calundus, as primeiras manifestações religiosas afro-brasileiras nasciam da “cooperação entre africanos da área congo-angolana e indígenas tupinambás, os trazidos como escravos e os capturados aqui mesmo, igualmente oprimidos pelo sistema colonial português. Essas movimentações eram chamadas de ‘santidades’ porque adotaram alguns traços da religião cristã, mas tinham um caráter globalmente anticolonialista e especificamente de resistência contra o Catolicismo clerical, pedante e ditatorial. A mais amedrontadora das santidades aconteceu na década de 1580, na mata atlântica que recobria o Recôncavo Baiano” (ALVES, 2010, p. 15)

 

III. O princípio exuzíaco da criação

 

Pixinguinha e João da Baiana frequentavam, na praça XI, grupos ciganos que cultivavam o samba com maestria tocando pandeiro cigano. João da Baiana, cujo nome verdadeiro era João Machado Guedes, foi o responsável por introduzir o pandeiro (e o prato de louça) no samba. Batuque na cozinha é uma canção de João da Baiana que narra a repressão policial da qual as danças africanas eram objeto. Quando a autoridade policial fazia batida nas casas de Tia Carmem, Tia Ciata, encontrava a comunidade dos descendentes de africanos reunida… na cozinha (lembro quando fui visitar a família de uma amiga do colégio, das únicas vezes em que entrei em um apartamento no Maracanã, e minha entrada na cozinha não foi permitida). Lá onde afigurou-se a cozinha como lugar menor do serviço doméstico, estendeu-se uma mesa, terreirizou-se um sagrado – existe nos candomblés Nagô e Ketu uma função, exercida pela Iyabassé, que é a pessoa que faz a comida. É onde o pensamento começa porque é também onde as divindades comem. A cozinha não é indigna para o pensamento: pensar, combinar ingredientes, criar, não são momentos excludentes. É parte integrante dessa cosmologia um conceito de criação como ato de ingestão e digestão da fome indomável de Exu, o que significa não haver criação terminada: existe criação relacional, segundo uma ética da hospitalidade, segundo a imanência de um fluxo de comer e restituir. Dessa culinária um dia virá o blues, o samba, a tropicália, o manguebeat, a capoeira, Luiz Melodia, Nina Simone, Tim Maia. Não é nenhuma criação ex nihilo a lógica a qual comanda a invenção do novo em um mundo onde a matriz bantu encontrou-se com os iorubafones.

No filme da Yasmin o cenário que se desenrola obedece a este princípio exuzíaco de invenção do novo. Na cosmologia nagô, a criação só é possível diante da virtualidade de um espaço incriado, um espaço que difere do vazio infinito do sistema do mundo newtoniano. Não significa que ali, na temporalidade excedente, não existam as coisas. É que elas existem para nós apenas na medida em que existem fartamente no Òrun, no espaço incriado. Alheio à metafísica cristã, onde o motor primordial funda a criação para preencher e substituir a totalidade do universo vazio (Descartes faz uma ginástica para comprovar a inexistência do vazio), o sistema nagô diferencia criação e espaço incriado[4]. Tudo o que é criado não substitui o espaço incriado, mas é feito a partir dele, extrai dele alguma coisa através da ingestão de Exu, devolve em contrapartida uma realidade incrementada. Cotidianamente.

 

Meu pai olhava para mim e dizia ‘o vento não sopra, ele é a própria viração’ e tudo aquilo fazia sentido. ‘Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida’ (VIEIRA JR., p. 96).

 

Trata-se de uma realidade humana tributária da fartura de reserva ancestral, e no entanto inédita, na medida em que digerida, baforada, desbloqueada, cuspida de volta. O espaço criado não é contra o incriado, mas se alimenta das suas reservas, de maneira que o elemento exuzíaco sempre poderá estar fluindo dinamicamente por debaixo da matéria, fogo uterino da terra que subsiste por debaixo das coisas reconhecidas. Um “debaixo” que não designa uma transcendentalidade, mas um infiltramento, sempre a postos, movendo-se, fundando e refundando a realidade criada através do puro movimento.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

FOUCAULT, M. “Vida dos homens infames”, p. 210.

SIMAS, L. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019, p. 25-28.

SLENES, R. Na senzala, uma flor. Campinas: Editora da Unicamp, 2011, p. 241.

MBEMBE, A. Políticas da Inimizade. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, p. 52.

LOPES, N. Bantos, malês e identidade negra. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 164.

ALVES, A. Casa dos Olhos do Tempo que fala da Nação Angolão Paquetan. Salvador: Asa Foto, 2010, p. 15.

VIEIRA JR, I. Torto Arado. Portugal: Grupo Leya, p. 96.

 

 

 


NOTAS

[1] Ver o capítulo “Imaginação Percussiva” no livro (SIMAS, 2019, p. 25-28).

[2]  Fartura. Yasmin Thayná. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2020. (disponível em https://vimeo.com/494666792)

[3] Transcrição da peça de Wilson August (1984) adaptada ao cinema sob o título homônimo Ma Rainey’s Black Bottom (2020).

[4]  Cf. BENZINA: EXU. Locução e produção: Stephanie Borges e Orlando Calheiros. Podcast BENZINA. 13 de Junho de 2020. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/24xx3rIh1vuLVwaCMUuWZq?si=QjTorjSfRiG6PzSg9SaDag

 

 

 


Créditos na imagem: Arte de Carolina Shout, 1974.

 

 

 

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