O que Pocahontas pode nos ensinar?

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Em volta da fogueira:

                                                                                                        Memória, história

O mundo se cria

(GRAÚNA, 2014, p. 14)

 

 

Em horas como essa, a diferenciação da “estória” pela “história” me faz uma enorme falta. Me parece importante usar dessa diferenciação nesse texto, mesmo que soe levemente antiquado, já que, pensando inicialmente, a história se remete à ciência e a estória se relaciona com a ficção. Assim, acredito que seja plausível, no mínimo esperado, pensar que o leitor já tenha ouvido falar da estória da princesa Pocahontas. Muitos de vocês, com certeza, tiveram contato com o desenho animado da Disney, lançado em 1995. O longa de animação conta a história de Pocahontas, princesa de um povo indígena que habitava a costa atlântica do que viria a ser os Estados Unidos da América. No desenho, não é especificado qual povo originário. Sobre a figura histórica sabe-se o que remanescem dos registros feitos no início do século XVII, e o que nos conta a história oral dos povos indígenas estadunidenses.

Como toda obra idealizada pela empresa, Pocahontas recebe uma considerável maquiagem que turva os registros históricos de Matoaka, a menina indígena, do povo Powhatan, e, por isso, algumas considerações são necessárias para dissipar a personagem da animação, do que se sabe da personagem histórica (ao menos, em certa medida). Enquanto na animação, Pocahontas é uma bela mulher adulta e completamente desenvolvida em parâmetros biológicos, Matoaka é uma menina, beirando seus 11 anos durante os primeiros eventos que sucederam sua história. Este é um ponto importante e não deve ser negligenciado, já que não seria possível, nos parâmetros Disney, desenvolver um relacionamento romântico entre dois personagens, sendo que um ainda se encontrava na infância.

Assim, a estória de Pocahontas é contada a partir do “encontro” entre a “civilização” inglesa – lembrando da importância de desconfiar desses conceitos, como já pude mencionar em outros textos, publicado aqui na HHM – que chega ao litoral do que viria a ser a Virgínia estadunidense, construindo a cidade de Jamestown (cidade do rei James). Pocahontas, filha do chefe Powhatan (no filme o nome do povo se torna o nome de seu líder), se envolve amorosamente com John Smith, tripulante do navio recém chegado, apesar de estar prometida a Kocoum, guerreiro de seu povo. Não me deterei nos pormenores da trama, pois, apesar de “maquiada”, a estória traz elementos importantes da presença indígena na história e pode ser utilizado no ensino de história para as escolas. Enfim, seja pelo filme da Disney, ou pela obra de Virginia Watson, autora do romance “Princesa Pocahontas”, publicada pela primeira vez em 1916, a realidade é que a estória da mulher indígena conhecida como Pocahontas habita o nosso imaginário, se tornando parte constituinte de como entendemos a figura dos indígenas nas Américas.

Bom, vamos então ao ponto que mais nos interessa nesse texto: a história de Matoaka. O livro “Princesa Pocahontas” foi disponibilizada em recente edição oferecida pela Editora Wish, onde podemos ler a respeito da mulher, do povo Powhatan, cujo nome significa “flor entre dois riachos”. Na estória de Watson, Pocahontas seria um apelido que significava algo como “menina mimada”. Como sabe-se, muitos povos indígenas têm rituais de nomeação complexos, que podem perpassar suas conquistas em vida. Por isso, é possível interpretar o nome que persistiu pelos séculos através da própria importância de Matoaka na história: a mulher, que trabalhou como intermediadora e tradutora de dois povos, Powhatan e ingleses, ou melhor, a flor entre dois rios. Assim, é possível ler a presença dessa mulher como fundamental para as alianças que se seguiram, muitas vezes evitando conflitos bélicos sangrentos e salvando inúmeras vidas. Mas não existe “se” na história, e é aí que a estória de Pocahontas, eternizada por Watson, cumpre o papel de destacar a ação dessa mulher extraordinária, demandando que os nomes femininos muitas vezes invisibilizados, como da própria autora, sejam devidamente reconhecidos.

Ao fim da edição apresentada pela Editora Wish, encontra-se um posfácio, voltado para “Além dos diários de John Smith”. Nele, podemos encontrar uma das versões da história de Matoaka, protegida pela história oral e tradições dos povos originários dos Estados Unidos da América. Muito diferente das versões Disney e de Virginia Watson, essa versão da tradição oral nos traz um relato mais duro, violento e, infelizmente, mais “real” do que as versões às quais tivemos acesso em nossa infância. O “real” aqui não precisa ser necessariamente voltado à vida de Matoaka, mas também como representação das vidas de mulheres indígenas, após as invasões de suas terras. Esta versão, publicada originalmente em 2017 com o nome “True Story of Pocahontas: The Other Side of History” (ainda sem tradução para o português), foi escrita pelo médico Linwood “Little Bear” Custalow, e a doutoranda em antropologia Angela L. Daniel “Silver Star”, ambos filhos do povo Mattaponi.

Esta versão sobre a vida de Matoaka a coloca como “última filha de Wahunsenaca (Chefe Powhatan) e sua primeira esposa, também de nome Pocahontas, com quem se casou por opção e amor” (STEBBINS, 2019, p. 298). Nesta versão, a criança era filha de um chefe forte, referência de todo o povo Powhatan, e por isso, gozava de certas prerrogativas ao mesmo tempo que cumpria seu papel naquela hierarquia. O resgate de John Smith pela que viria a ser conhecida por Pocahontas, de acordo com o relato, não teria ocorrida na maneira Disney, muito menos da forma que Virginia Watson constrói. O ritual ao qual o capitão teria participado marcava apenas uma espécie de adoção deste – e junto a Smith, dos demais ingleses – por aquele povo. Wahunsenaca enviou comida aos ingleses, salvando-os da fome certa (algo em comum em todos os relatos, incluindo versões cinematográficas diversas), o que selaria assim a aliança entre indígenas e ingleses invasores.

Mas é claro, como tudo na história (ouso dizer), estas relações também são marcadas por tensões profundas. Ao longo dos anos, Pocahontas deixa o período da infância (para aquele tempo) e teria se casado com Kocoum (que pertencia ao povo Patawomeck). Nesse meio tempo, as relações entre ingleses se desgastavam por inúmeros motivos, e pairava no ar a possibilidade do sequestro de Pocahontas pelos ingleses, como de fato acontece. O sequestro aqui funciona como uma espécie de apólice de seguro: não haveria a possibilidade de ataques e derramamento de sangue, desde que a filha do povo Powhatan fosse mantida “em segurança” – vulgo, em cativeiro –, mas na posse dos invasores, além disso “as diretrizes culturais enraizadas enfatizavam soluções pacíficas” (STEBBINS, 2019, p. 305). É sobre o tempo de cativeiro de Pocahontas que gostaria de convidar o leitor a algumas reflexões.

O livro de “Little Bear” Custalow e Daniel “Silver Star” destacam que esse tipo de cativeiro não era estranho aos Powhatan, mas que a distância de seu povo havia deprimido tanto Matoaka/Pocahontas quanto seu pai. Para o bem de seu povo, Pocahontas cooperou, aprendeu o inglês e a mitologia da crença cristã. Em “True Story of Pocahontas”, os autores destacam como os captores da jovem indígena (nesse período ela teria entre quinze e dezesseis anos) ouvia que seu pai a havia abandonado e que não se importava mais com ela. Uma verdadeira tortura psicológica. Após um colapso nervoso, os ingleses teriam chamado uma de suas irmãs para cuidar dela. E é aqui que a estória/história se mostrar cruelmente real: Matoaka teria confidenciado à irmã que fora estuprada e o fruto daquele estupro crescia dentro de si que, após nascer, chamou-se Thomas. Convertida ao cristianismo, a jovem se casa com John Rolfe que, por sua vez, assume seu filho. O casamento, então, teria estabelecido laços importantes de ajuda mutua, e o próprio filho de Pocahontas (com John Rolfe ou não) representava a possibilidade de união entre dois mundos distintos.

Bom, voltemos então em algumas palavras escritas aqui: nesta versão, Pocahontas foi estuprada e deixada com o filho. O estupro, infelizmente, foi e continua sendo uma violência frequente entre mulheres indígenas. No Brasil, um país que atinge a marca catastrófica de 67% de mulheres vítimas de agressão física (desconsiderando o distanciamento social no período de Pandemia), são registrados 1 estupro a cada 3 mulheres indígenas. Na história oral dos Mattaponi que resistiu ao tempo, um dos ícones de força feminina sofreu violência sexual. De acordo com estudos recentes (do projeto DNA do Brasil, desenvolvido pelo Google Cloud, DASA e USO com apoio do Ministério da Saúde), o estupro de mulheres negras e indígenas deixou marcas profundas no povo brasileiro, ao mesmo tempo que apagamos este tipo de violência, silenciando-a e tratando-a como inexistente.

É necessário pensar que “a temporalidade, ou seja, a relação entre múltiplos tempos, também é inerente ao documento produzido” (DELGADO, 2006, p. 16). É por isso (e mais) que o peso do estupro de Pocahontas é tão grande: porque de alguma forma ele não parou. Nesta versão, agora escrita em sangue e tinta, estão presentes muitos tempos, desde o acontecimento, transitando pelos séculos seguintes, sendo modificado a medida das experiências daquele povo e de tantos outros, para ser lido hoje por nós. Em um vórtice de violência, crueldade, mas também de força e resistência. E é o agora, o tempo presente, que nos orienta a olhar para esta estória/história. O que ela nos diz? O que Pocahontas, personagem fictícia e figura histórica, nos grita?

Edgar Morin (pseudônimo de Edgar Nahoum), em “Cultura e Barbárie Europeia” defende que a civilização não é só fruto da barbárie, mas elas são vizinhas. Uma não existe sem a outra. Sobre os genocídios que existiram ao longo do século XX (e no caso dos povos originários, continua existindo), ele defende que “a barbárie seja reconhecida pelo que ela é, sem qualquer simplificação ou falsificação. O que importa não é o arrependimento, mas o reconhecimento. Esse reconhecimento deve passar pelo conhecimento e pela consciência. É preciso saber o que de fato ocorreu” (MORIN, 2009, p. 105).

Por isso, reconhecer que muito da miscigenação que ocorreu nas Américas, incluindo Brasil, foi fruto de violência sexual é também constituir, mesmo que aos poucos, consciência da brutalidade que infelizmente faz parte de nossa história. E essa consciência, para longe de aspectos maquineístas, pode sensibilizar o presente e fazer com que consigamos entender, dentre outras cosias, do porque o ensino de história é tão importante. Porque é necessário pensar essa “barbárie europeia” para que possamos ultrapassa-la, não apenas sob o aspecto da violência física como também da violência mental. Afinal, se não passarmos a entender que a falta de solidariedade é uma barbárie, não estaremos avançando muito.

Ao fim, a estória/história de Pocahontas tem o mesmo triste encerramento em todas narrativas (salvo versão Disney) com pequenas variações, desde os já aqui mencionados, até outros como de Joyce Milton, Jean Fritz e Joseph Bruchac: a jovem de 21 ou 22 anos, morre na Inglaterra de 1617, longe de sua terra, de sua família, e de tudo o que foi referência para a maior parte de sua vida. Seu filho permaneceu na Inglaterra, longe de sua terra ancestral, e que por isso e pelo distanciamento já sofrido por sua mãe, sofre o ceifamento de sua ancestralidade. Provavelmente soube pouco de sua família materna. Quantos de nós temos ancestrais indígenas, mas que nunca poderemos identifica-los? Quanto dessa memória se perdeu pelos diversos tipos de violências? Pocahontas vive através de seu povo e da mobilização de suas estórias/história, mas quantos de nossos ancestrais foram perdidos? Quantos de nós somos impedidos de conhece-los? E como a perda dessa ancestralidade nos torna, de muitas formas, deficientes em mente e em espírito? Tomo a liberdade de adaptar um pouco a reflexão de Morin, pois “pensar a barbárie é contribuir para [nossa regeneração enquanto pertencentes de uma sociedade] (…). É, portanto, resistir” (MORIN, 2009, p 108.)

 

 

 


REFERÊNCIAS

CUSTALOW, Linwood “Little Bear”. DANIEL, Angela L. True Story of Pocahontas: The Other Side of History. Fulcrum Publishing. Versão para Kindle, 2007.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2006.

GRAÚNA, Graça. Flor da Mata. Belo Horizonte, Peninha Edições, 2014.

MORIN, Edgar. Cultura e Barbárie Europeias. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 2009.

STEBBINS, Sarah J. “Além dos Diários de John Smith”, IN. WATSON, Virginia. Princesa Pocahontas. São Caetano do Sul – SP, Editora Wish, 2019.

WATSON, Virginia. Princesa Pocahontas. São Caetano do Sul, Editora Wish, 2019.

“DNA do Brasil: Entenda como o DNA brasileiro pode mudar a medicina de precisão”, por Fidel Forato, 22 de outubro de 2020. Acesso em 13/01/2021. Disponível em: https://canaltech.com.br/saude/dna-do-brasil-entenda-como-o-dna-brasileiro-pode-mudar-a-medicina-de-precisao-173385/

Violência contra os Povos Indígenas no Brasil 2015”, relatório para Organização das Nações Unidas realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Acesso em 13/01/2021. Disponível em: https://cimi.org.br/pub/relatorio/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas_2015-Cimi.pdf .

 

 

 


Créditos na imagem: Pocahontas, já batizada como Rebecca Rolfe, imagem de 1616.

 

 

 


SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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