A arte contemporânea demandou, ao longo das décadas em que se constituiu no Brasil, sobretudo na segunda metade do século XX, como no concretismo e, depois, no neoconcretismo (com maior ênfase), disposições cada vez mais complexas, interativas e combinatórias envolvendo a necessidade de despertar o diálogo com o público, fazendo da operação artística um movimento performático em direção às sensações (trans)humanas. Essa perspectiva sensorial pode ser compreendida, de alguma maneira, como uma sinalização de presença, de desejo por presença ante às formas mais tradicionais de elaboração da arte que invocam, antes de tudo, a pressão por sentido (GUMBRECHT, 2010). Uma relação que subverte as experiências dos tempos e do espaços, sendo essas instâncias percebidas no modo da transcendência, redirecionadas para a percepção/afeto, sendo o corpo protagonista, o que implica na pluralização da apreensão da realidade, que se estilhaça, se multiplica, se pluraliza.

Tempos e espaços acionados nos objetos do cotidiano, que passam a ser cingidos pelo selo da fragmentação, o que torna mais verossímil o mundo da vida, que se liberta da artificialidade das narrativas de sentido, que a pretexto de unificação identitária eclipsa a diferença, substrato da multidirecionalidade que envolve as travessias humanas junto à(s) experiência(s). Os objetos, pelos quais a arte se dá a ver nas performances, passam, então, a não ser entrevistos por vetores como o da utilidade, das funções práticas ou da finalidade, que, de uma maneira ou de outra, teriam uma propensão ao apaziguamento do caos estruturante da experiência, uma sinalização para o estabelecimento do conforto, da adequação, da identidade, sempre ela, a nos impelir ao gesto cartesiano, ou à atualização platônica, de separar sujeito e objeto, algo com impacto sobre as formas de pensar e de sentir que se estabeleceram junto às sociedades ocidentais, com consequência para a perda da noção de imanência. Os concretismos dos anos 1950 e seguintes, com direcionamentos e com apropriações variadas, são demonstrações possíveis dessa paisagem, como se pode ver numa literatura de um Ferreira Gullar, num experimentalismo performático de uma Lygia Clark e de uma Lygia Pape ou numa filosofia de um Mário Ferreira dos Santos.

A partir desses horizontes percebemos melhor as (não) intenções de Hélio Oiticica (1937-1980) com a sua conhecida série Bólides, iniciada em 1963. Iniciamos com a descrição material dos experimentos, como Hélio gostava de assimilar a sua arte in progress, o que já indica a sua consciência acerca do esvaziamento da noção de sentido nas artes plásticas. Os bólides são (trans)objetos trabalhados em formato de caixas feitas de madeira, de vidro ou até mesmo de plástico. Neles há materiais variados como água, terra, britas, pigmentos, espelhos, conchas, papéis com poemas, fotografias, entre outros. Lembrando, e isso é importante, que esses elementos não estão dentro dos bólides, como se existisse uma dimensão de exterioridade envolvendo o objeto. Esses elementos são, também, os próprios bólides. Se deseja a participação, a interação, do público, que pode até segurar a obra em suas mãos, indo ao encontro do ensejo de Oiticica, como em Parangolés ou em Penetráveis. O esvaziamento dos sentidos é radical, pois a noção de interação, que dispõe da semântica do relacional e do dialógico, torna possível a fratura de várias concepções disponíveis para a assimilação dos artefatos artísticos, como a da necessidade de adequação da intenção do artista com a do público, a de passividade da recepção, a de autoria, a da disposição hermenêutica de compreensão do experimento, havendo a substituição do sentido pela presença, a ponto de Oiticica desejar que as cores, as formas, as texturas sejam não compreendidas, mas sentidas, nos horizontes das sensações e não das significações. Se observarmos por esse ângulo, e fugindo da evolução ou da continuidade de uma produção artística em si, acabamos tendo alguma indicação dos (des)caminhos que levaram Hélio Oiticica, entre outros neoconcretistas, para a chamada arte ambiental.

A intenção, não no sentido de prefiguração, de convidar o espectador a experimentar, tornando-se “participador” do experimento, para além do olhar e do aparente, as percepções e as impressões (im)possíveis pela arte-objeto se cumpre com Bólides. Das montagens mais simples, como B1 Bólide Caixa 1 “Cartesiano”, em que o público pode sentir a textura do material, experienciar as cores e pensar funções irracionais. Vemos, por meio desse artefato, a sensibilidade artístico-filosófica de Oiticica, ao ponto de subverter o cartesianismo esteticamente.  Em B15 Bólide Vidro 4 “Terra”, se faz possível ver, tocar e sentir o cheiro do pedaço de tecido ou de tela, bem como a terra no vaso de vidro transparente. Novamente, encontramos o conhecimento filosófico do artista, que ao voltar-se para a terra está em busca do radicalismo da imanência. Ele chega a composições tecnicamente complexas, em que a teoria manifesta-se na própria materialidade dos experimentos, carregados de referências intelectuais. É o caso de B17 Bólide Vidro 5 “Homenagem a Mondrian”, em que cores, materialidade e volumes são combinados como uma forma de decompor a obra do pintor neerlandês Piet Mondrian (1872-1944), que tanto inspirou os movimentos concretistas e neoconcretistas dos quais Oiticica fez parte. Parece ser um desejo do artista brasileiro traduzir a estética de Mondrian para outras linguagens, como se quisesse oferecer tridimensionalidade a ela ao apostar no vetor ambiente.

Bólides B17 Vidro 5 “Homenagem a Mondrian” (1965) e B15 Vidro 4 “Terra” (1964). Fonte: Bólides – Projeto Hélio Oiticica (projetoho.com.br). Acesso: 19 de jan. de 2023.

É interessante pensar que Hélio Oiticica possibilita, nesse caso, uma apropriação da obra de Mondrian voltada para o âmbito do multissensorial, sobretudo, se assinalarmos que o abstracionismo demanda formulações pictoriais diferenciadas daquelas às quais nos habituamos com a arte figurativa. O artista torna, nesse Bólide, o abstrato algo disponível sensorial e materialmente, convidando a co-participação do público, que passa a experimentar, junto à imanência, o abstrato. Nesse sentido, a participação do público pode ser considerada uma imersão. O artista plástico, além disso, nos leva a visitar, simultaneamente, o seu processo criativo, em que se apreende a mescla de referenciais que mobiliza a partir de uma antropofagia bastante peculiar. Oiticica consegue fazer um verdadeiro passeio transversal pela história da arte, em que os seus pares de diálogo, à nível de entendimento (não) conceitual da arte moderna e contemporânea, são conhecidos. Ele se volta, de fato, para a síntese, no seu sentimento mais elementar, isto é, de alquimia e de experimento. Passa-se da experiência sensorial à experiência didático-criativa, acionada pela interação dos públicos ao fruir a obra além do olhar, além do entendimento, além da própria história tradicional das artes.

Já no Bólide B33 Bólide Caixa 18 – “Homenagem a Cara de Cavalo”, Hélio Oiticica faz referência à morte, sob forças policiais clandestinas, de Manoel Moreira, amigo do artista e apelidado de Cara de Cavalo. A obra foi produzida em madeira, nylon, pigmentos e com uma fotografia do amigo ferido. Importante destacar que a amizade com Cara de Cavalo adveio das incursões de Oiticica pelas periferias do Rio de Janeiro, onde observa, desconstrói e reelabora as concepções disponíveis sobre os significados atribuídos à marginalidade em plena Ditadura Militar. Noções como bom e mau, heróis e anti-heróis, correto e incorreto, são ressignificadas a partir de um profundo senso de historicidade, explorando a racionalidade (visível e invisível) das construções histórico-sociais, sendo elas atravessadas por dispositivos de poder e morais, envolvidas nessas categorias de sentido, em  que a transgressão aparece como horizonte de ação radical ante às contradições sociais. No objeto a menção ao episódio do assassinato de Cara de Cavalo é esta: “Aqui está, e ficará! Contemplai o seu silêncio heroico”. Entra em cena, talvez, mais uma das noções nietzschianas que Hélio Oiticica se valeu em sua criação, qual seja, a de perspectivismo, mais especificamente o de cariz moral. O entendimento é este: a dimensão moral de um fenômeno não é intrínseca ou anterior a ele, mas presente na interpretação, que movimenta, pois, julgamentos. As chances de Oiticica conhecer essas reflexões não são poucas, porquanto sabemos de suas leituras dos escritos póstumos do filósofo.

Ou seja, esse horizonte de possibilidade fica visível na exploração que o artista plástico brasileiro faz em seu programa, onde fica patente a sua percepção acerca das disposições culturalmente situadas referentes aos valores, e como direciona-se para uma tentativa de deixar em evidência as emanações autoritárias que deles se originam:

demolição de todos os valores que não se relacionem a uma necessidade existencial absoluta, principalmente os utilizados como opressão […]; é grito de guerra e ao mesmo tempo uma nova cultura, é a demolição de qualquer tentativa de fixação arbitrária e rígida de valores (OITICICA,  1966, p. 3-4).

 

O artista brasileiro pressiona a noção de perspectivismo, retirando da figura de Cara de Cavalo o todo da responsabilidade sobre os seus crimes, o percebendo através do estabelecimento de uma sociedade responsável por produzir a marginalidade, pois se institui através dos vetores da padronização, da massificação, da injustiça social, da violência e de todas as formas de elitismo conformadores do que seria o dito marginal. É possível congregar a leitura social de Oiticica, em que se move o seu nietzschianismo difuso, com certos elementos do pensamento de Herbert Marcuse, autor conhecido pelo artista plástico, e que dialoga com ele através de uma postura ética junto à consecução do fazer artístico. Esse aspecto se ligaria, de alguma maneira, ao heroísmo de Cara de Cavalo, que em seu silêncio fúnebre simboliza outra morte: a do indivíduo ante todas as formas de regulação, de enquadramento e de condicionamento burguês impostos pela sociedade capitalista (SCIGLIANO, 2004).

Hélio Oiticica com o Bólide B33 Bólide Caixa 18 – “Homenagem a Cara de Cavalo” (1965-66). Fonte: Bólides – Projeto Hélio Oiticica (projetoho.com.br). Acesso: 19 de jan. 2023.

O documentário H.O, dirigido por Ivan Cardoso e lançado em 1979, apresenta os principais conceitos e as principais referências apropriadas pelo fazer criativo Oiticica. As ligações com a obra de Nietzsche, como já exploradas em outros artigos neste portal, são contundentes, destacando-se aquelas que mais tarde apareceriam nas obras com a temática da Marginália. O Nietzsche de Oiticica está em combinação com outras sugestões intelectuais importantes, sendo torcido em traduções múltiplas e imprevisíveis, onde a noção de apropriação (direta e indireta) ganha força transgressora. Oiticica se apropria do filósofo nietzchianamente. Sem a preocupação com uma adequação estético-formal-cognitiva ajustada, exata, mas atravessada por parâmetros dinâmicos, ecléticos e não direcionados, forçando ao limite a atualização.

Essa posição epistêmica está, de uma forma ou de outra, em consonância com a sua postura política anárquica, muito derivada do seu contato familiar com o seu avô José Oiticica, célebre militante e autor de A doutrina anarquista ao alcance de todos (1945). Escreveu José Oiticica: “O anarquismo não se fecha, não está enquadrado em nenhum esquema pré-estabelecido a servir de roteiro para a conduta humana. É a própria vida! Vai até onde o sentido de liberdade o possa conduzir. A essência da anarquia é a liberdade plena e a responsabilidade” (OITICICA, 1983, p. 6). Dessa maneira, arte e pensamento político estão em confluência direta na proposta de Hélio Oiticica, na medida que a proposição (a forma como compreende a sua “anti-arte”) de estruturas abertas, assim como eram os Bólides, significaria o engendramento e a criação de ordens sociais e políticas pautadas por uma dimensão não hierárquica.

Derivados dos processos criativos de Hélio Oiticica, os Bólides podem ser assimilados, entre outras formas, da seguinte maneira: (trans)objetos que, para além da sua função original, são, também, capazes de suscitar experiências supra-sensoriais, flexionando o conceitual, diretamente ligadas ao dia a dia, que passam a ser percebidos através da desnaturalização, da dessacralização, da desorganização, forçando o deslocamento experiencial para além das narrativas de sentido que tendem a oferecer ordem ao caos do mundo da vida, que sob o manto da identidade, convertida em representação, encobre a abertura multidirecional da realidade. A noção de (des)funcionalidade é bastante importante. Busca-se algo como uma mediação direta entre arte e vida, sendo interessante investigar como o vitalismo nietzschiano, mesmo que subterraneamente, informou alguns dos (neo)concretistas brasileiros.

A arte interativa, e a constante ressignificação, acompanham o desenvolvimento das invenções do artista. Destacamos que as próprias denominações para Bólides e para Parangolés apresentam-se, por exemplo, pressionadas pela noção de invenção, na medida que Hélio Oiticica percebe que até mesmo a nomeação é um processo arbitrário de sentido representacional, forçando o público a criar o conteúdo para aqueles novos vocábulos criados. Ao estabelecer os Bólides como transobjetos, problematiza-se, pois, o processo de categorização das obras de arte e a dinâmica artística em si. O artista brasileiro assinala, nessa direção, que os “materiais que integram os transobjetos adquirem uma ‘estrutura autônoma’, em relação ao condicionamento utilitário a que estariam submetidos” (VARELA, 2009, p. 59).

Em um segundo momento, Oiticica radicaliza ainda mais a sua proposta artística, desenvolvendo os Contra-Bólides, cuja proposta supera o próprio entendimento dos Bólides enquanto transobjetos. A ideia da transcendência dos limites físicos deu lugar à ausência desses limites, novamente dialogando com Nietzsche, e também com Gilles Deleuze, em direção ao sentido vital, cósmico, da existência, sendo aquela disposição artística uma metáfora para o caráter múltiplo, infinito, que está incrustado na experiência imanentista do mundo, que sem os condicionamentos identitários não apresentam delimitações. É a questão, mais uma vez mobilizada por Oiticica, do eterno retorno proposto por Nietzsche, que como assinalam Paula Braga (2007) e Angela Varela (2009) estabelece a ideia de gênese como um início-fim-retro-movimentador e não como uma disposição criacionista.

Em termos práticos, o artista brasileiro concebe esses experimentos como programa-obra in progress, o que assinalaria para o interminável, para o âmbito do ressignificados, bem na esteira das proposições deleuze-nietzschianas. O vocabulário dos filósofos está presente em suas teorizações, como nesta passagem especificamente: “o CONTRA-BÓLIDE revelaria a cada repetição (…) o caráter de concreção de obra-gênese que comandou a invenção-descoberta do BÓLIDE nos idos de 63: por isso era o BÓLIDE uma nova ordem de obra e não um simples objeto ou escultura” (OITICICA, 1978, p. 15). Assinalamos as noções de construção/desconstrução das estruturas, num movimento de pressão sobre os corpos, sobre o supra-sensorial, e não voltado para o intelecto, sendo essa combinação simultânea e responsável pelo existir das obras, assim como é na vida concreta.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

BRAGA, Paula Priscila. A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica. Tese (Doutorado em Filosofia), Programa de Pós-graduação em Filosofia, FFLCH/USP, 2007.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presençao que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC/RJ, 2010.

OITICICA, Hélio. Caderno-Caju. Account sobre DEVOLVER A TERRA À TERRA, AHO, docº. 0123/78.

OITICICA, Hélio. Texto manuscrito. AHO, docº. 1247/66.

OITICICA, José. A doutrina anarquista ao alcance de todos. São Paulo: Econômica ED., 1983.

SCIGLIANO CARNEIRO, Beatriz. Relâmpago com claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte. São Paulo: Imaginário, 2004.

VARELA, Angela. Um percurso nos Bólides de Hélio Oiticica. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, ECA/USP, 2009.

 

 

 


Créditos na imagem: Oiticica’s “Bólides” on display in his garden in Rio de Janeiro, in the mid-sixties. Courtesy Claudio Oiticica / Projeto Hélio Oiticica. In: The New Yorker – Discovering the Brilliance of Hélio Oiticica. Acesso em 10 de favereiro de 2023. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2017/07/31/discovering-the-brilliance-of-helio-oiticica

 

 

 

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