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Armadilhas da Fé – Octavio Paz

A obra de Octavio Paz1 é, sem dúvidas, um dos trabalhos mais influentes acerca da vida da freira Jerônima Sor Juana Inés de La Cruz. É, por definição, uma biografia, mas em essência ultrapassa esse gênero, também oferecendo em certos aspectos uma análise histórica da Nova Espanha, literária, psicoanalítica e poética da obra e da autora.

Na obra dividida em 6 partes, Paz busca “vislumbrar” quem foi Sor Juana. O autor trata de muitos aspectos da vida da autora, sua origem, sua decisão de vestir o hábito, que seria motivada por sua paixão pelo saber, a decisão pelo enclausuramento, e talvez a mais contraditória: qual a natureza das relações entre Sor Juana e Maria Luisa Manrique? Se dedicando ainda a compreender o que a levou a renunciar às letras. Oferecendo na contramão dos estudiosos católicos, que interpretam o silêncio prematuro da poeta como uma conversão mística, uma leitura do gesto de Juana Inés como uma rendição diante das forças que pretendiam silenciá-la.

Na primeira parte do livro, o autor apresenta a Bibliografia acerca da Vida de Sor Juana, com dois textos básicos: a carta de Sóror Juana ao Bispo de Puebla e a Biografia da freira organizada pelo jesuíta Diego de Calleja, segundo Paz “Não é uma Biografia no sentido moderno da palavra, mas uma “narração edificante”. Calleja foge de tudo aquilo que possa obscurecer a imagem da Freira e não esclarece dois grandes pontos: o que a levou a professar – primeira grande questão a qual Paz se dedica – e o que a levou a renunciar às letras?

Os autores católicos subsequentes que falaram sobre Sor Juana, seguem o exemplo de Calleja e portanto descrevem uma vida exemplar, e como argumenta Paz: “Se esses pontos de vista tivessem triunfado, estaria definitivamente desfigurada a verdadeira Sor Juana, oculta sua máscara da santidade”(PAZ, 1998.p 97).

“Ver nela uma lésbica é uma aberração”, a afirmação feita por Octavio Paz se apresenta na segunda parte do livro e busca situar a opinião do próprio Paz diante das análises do hispanista alemão Ludwig Pfandl2, escritor do texto que inaugurou um novo campo para as análises das obras de Juana Inés: as leituras francamente psicanalíticas de seu texto. Segundo Pfandl “Até as mais recentes biografias da nossa freira mexicana concordam em que ela apresente um tipo de mulher claramente orientada ao masculino”, Pfandl está alinhado à corrente da época, sobretudo na Alemanha de tipos biológicos fixos, que entedem a existência de uma mulher ideal “loira, pícnica, ariana”, e em oposição “A intersexual como Sór Juana, enfoca sua sexualidade doentia em atividades como literatura ou a vida pública”.

Octavio Paz argumenta que Pfandl se aproximou mais de Jung que de Freud, e por sua vez puxa a interpretação para o eixo Freudiano mais comum: o complexo de Édipo. E analisa a “masculinidade” de Sor Juana baseada na ausência paterna, o que a faria assumir o lugar do pai, e, em um segundo movimento psíquico, negar essa “masculinidade” criando um espectro para figura masculina e assumindo o lugar de sua viúva. Paz também busca oferecer uma hipótese para os poemas em que necessariamente: “o excedente libidinoso não podia ser utilizado num objeto do sexo oposto. Era preciso substituí-lo por outro objeto: uma amiga”3. O que notamos portanto é que, segundo o autor, existe um objeto sexual apropriado (o homem), e no caso de Sóror Juana o que se tem é “homossexualidade situacional”, em outras palavras, se de fato a freira estivesse apaixonada pela Vice-rainha era na verdade um atributo circunstancial.

Adiante, Octavio Paz volta a esta questão, não mais de forma psicoanalítica, mas social, de acordo com ele “A Transgressão é virilização”, e coloca o contexto social como um dos motivos de sua “masculinidade” e a virilidade como uma imposição social para a vontade de Juana de seguir com seus estudos.

É notável que ao contrário de outros autores que falaram sobre a freira, Octavio Paz não desvia do tema de sua relação com a marquesa de Paredes, mas o trata de maneira controversa. O autor da primeira biografia, Calleja, evitou totalmente o tema, talvez mais porque ainda não fosse uma questão naquele momento, atitude que podemos notar em outros autores subsequentes como Méndez Plancarte ou até mesmo o confessor de Sor Juana, Nuñez de Miranda.

Octavio Paz chega a dizer que há nos escritos de Juana Inês “alguma coisa mais, diferente da gratidão e da amizade” (PAZ, 1998.p269), e continua: “o afeto de Sóror Juana pela condessa de Paredes, a julgar pelo tom dos poemas a ela dedicados transformou-se rapidamente num sentimento de tal modo apaixonado que só pode ser chamado de amor”. Apesar dessa afirmação, dedica um capítulo inteiro a rebater a hipótese de um amor consumado.

O capítulo intitulado “Concílio de Estrelas” integra a quarta parte do livro. Paz se dedica especificamente à análise da relação entre Sor Juana e Maria Luisa Manrique. Ao se debruçar sobre o tema notamos que ele se apoia principalmente em duas frentes para construir seu argumento: O estilo de escrita palaciano e o amor cortês. Quanto a escrita Palaciana, trata-se de uma temática recorrente para a época, se considerarmos o fato de que Sor Juana viveu muitos momentos de sua vida entre nobres, mesmo antes do convento, quando viveu na casa da vice-rainha Leonor Carreto, à qual também dedicou diversos Poemas, dando a ela o nome poético de Laura, em alusão a Petrarca. Apesar de ser notável também nesses poemas dedicados a Laura, o tom de paixão, são menos vivos e mais reservados do que aqueles que mais tarde serão dedicados a Maria Luisa. Mas se essa é a hipótese, porque dedicar esses poemas à vice-rainha e não ao vice-rei?

Segundo Paz seria escandaloso uma mulher se referir ao vice-rei da maneira como Sor Juana se referia a Vice-rainha, exaltando não somente suas virtudes morais e físicas, mas também as imagens eróticas. Segundo ele, não era incomum uma mulher se referir a outra nesses termos. A hipótese do estilo palaciano é ainda mais relevante se considerarmos o momento histórico e a trajetória de vida de Sor Juana, mas resumi-los ao estilo é segundo o próprio Octavio Paz “não perceber o que de único e particular neles existe” (PAZ, 1998.p 274).

A hipótese do amor Cortês vem, portanto, para preencher essa lacuna, a mistura entre a expressão do amor real e irreal do trovador a sua dama construído sob o vocabulário feudal de servilismo do vassalo ao senhor, em grande medida poderiam ser uma hipótese para as cartas escritas para a marquesa. Paz se concentra nas descrições de Robert Briffault e René Nelli para construir esse argumento, e na expressão comum do amor cortês que promove uma confusão entre erotismo e vassalagem típicos do Renascimento e do Barroco. Um ponto desse estilo de escrita pode ser observado nos escritos da freira, a submissão à dama, o segundo no entanto não é presente, o que trata de sua “masculinização”, ou seja o poeta além de submisso, tinha o costume de tratar de sua amada através de pronomes masculinos, movimento que Sor Juana não realiza. Hipótese preenchida mais tarde por José Carlos Boixo em que o “eu poético” em Sóror Juana é feminino. Uma vez que todo “eu poético” até então vinha de homens, Juana estaria negando o papel passivo da mulher nas produções sobre relação amorosa e em sua obra demonstra a capacidade de expressar uma variada gama de situações amorosas a partir da perspectiva feminina ativa.

Esta segunda hipótese constituiria um cenário muito apropriado para pensarmos os poemas da Freira, não fosse em seguida um ponto que o próprio Octavio Paz nota. Se analisarmos poemas do mesmo período, de amor cortês com traços de escrita palaciana, encontramos uma enorme variedade de Góngora, Quevedo, Lope e Calderón. A grande diferença desses autores para Soror Juana é segundo Paz que a freira “alcança em certos poemas a intensidade que distingue a paixão autêntica da retórica”(PAZ, 1998.p 279). Ou seja, se analisarmos Góngora, por exemplo, em seus escritos dedicados à marquesa de Ayamonte o autor surpreende por “nunca por expressar um sentimento pessoal”, Juana Inês no entanto escreve declarações de admiração amorosa, e conclui Paz “Os poemas de sóror Juana para Maria Luisa muitas vezes se afastam do gênero cortesão e constituem um mundo à parte e do qual não existem outros exemplos na poesia de época”(PAZ, 1998.p 281).

Ao longo dos próximos capítulos Paz se dedica a apresentar as ideias de amor em diversos autores a fim de situar onde estariam as inclinações do modo de escrita da autora, e como Sóror Juana e Maria Luisa, justificavam o tom de seu amor sem que isso se opusesse a moral vigente, o que Segundo Paz a própria Sóror Juana não se cansava em repetir nos títulos dos poemas, que eram honestos, puros e decentes.

Para fechar essa que é uma das questões centrais do texto de Paz, ele pinta uma imagem de Juana Inês onde o corpo e a mente lutam, em que sua Libido, segundo ele, “poderosa sem emprego” acaba se convertendo através de seus poemas, e claro vaza pelas cartas escritas a Maria Luisa, concluindo que “sua carência de objeto, se mostram na frequência com que aparecem em seus poemas imagens do corpo feminino e masculino, quase sempre convertidas em aparências espectrais; sóror Juana – afirma o poeta – viveu entre sombras eróticas”.

Nos últimos capítulos dessa que ainda é uma das obras mais importantes sobre a vida da madre, Paz analisa o texto “Primeiro sono”, um de seus poemas mais pessoais e provavelmente o texto concede a ela um lugar na literatura universal. É possível notar ao longo do poema, uma mescla entre o escolasticismo comum ao ambiente da Nova-Espanha, mas também o despontar da modernidade nas alusões ao fracasso da alma por conhecer a natureza do universo.

A última parte do livro se ocupa da terceira questão fundamental a qual Paz se dedicou, o que a levou a renunciar às letras, o que a fez vender e doar seus livros e sua coleção de instrumentos musicais, assim como sua confissão final, “rubricada com seu sangue”. Em uma análise dos acontecimentos, Paz argumenta que o rechaço público que a autora recebe após a escrita da “Respuesta a Sor Filotea de La Cruz” motivado segundo ele pela difícil relação que a Freira estabeleceu com a hierarquia eclesiástica e a inveja dos prelados que a rodeiam, é o que a levam a essa negação de si mesma. Hipótese que se constrói a partir de uma carta que Juana Inês escreveu a seu confessor Núñez Miranda, na qual defende sua devoção às atividades intelectuais, rompendo com a relação que tinha até então com seu confessor lhe dirigindo “comentários irônicos e até mesmo sarcásticos”, conflito sem dúvidas inevitável, uma vez que Miranda condenava muitos dos trabalhos da Freira por considerá-los mundanos. Muitos dos autores negam a hipótese de uma renúncia forçada de Sor Juana às letras. O fato é que ocorre essa ruptura, se não com as relações de poder, consigo mesma.

As Armadilhas da Fé, sem dúvida confirma a palavra que Paz usa para descrever o sentimento que a figura de Juana Inês desperta em nós leitores e nele mesmo: “sedução”. Esse grande ensaio crítico e biográfico é um esforço do autor de encontrar em Sor Juana o primeiro grande poeta mexicano. É notável também, a incomparável interpretação que Paz oferece da Freira assim como a identificação que ele demonstra ter com a autora, o que expõe, como argumenta Anthony Stanton “ as chaves da autobiografia intelectual do próprio Paz”.4

 

 

 


REFERÊNCIAS

1 PAZ, Otávio. Sóror Juana Inés de la Cruz: as armadilhas da fé. São Paulo: Mandarim, 1998

2 PFANDL, Ludwig. Sor Juana Inés de la Cruz: La décima musa de México. México: Universidad Autónoma de México, 1963

3 Idem. pag 298

4 Stanton, A. (1990). Reseña de Paz, Octavio. Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fe. México: FCE, 1982. Literatura Mexicana, 1(1), 242-248

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Capa do livro Armadilhas da Fé de Octavio Paz

 

 

 

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