Friedrich Nietzsche (1844-1900), em seus últimos escritos, afirma que o principal objetivo de sua filosofia trágica consiste na reversão da imagem de mundo metafísica criada pelos filósofos gregos antigos Sócrates e Platão. Concepção metafísica essa que foi difundida com maior amplitude através da massificação do cristianismo que dela teria se apropriado para fundamentar sua doutrina religiosa. “A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores”, escreve Nietzsche na segunda seção de seu livro significativamente intitulado Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, publicado em 1886. Pois, para ele, o pensamento metafísico sempre opera através de pares valorativos dicotômicos em que aquilo a que temos acesso imediato é desvalorizado em prol de idealizações: aparências X essências, sensações X racionalidade, corpo X alma, vida X morte, mundo X além, etc. Ou seja, trata-se de uma tentativa moralista de hierarquizar percepções e corrigir o plano imanente a partir de parâmetros transcendentes, em sua maioria, inatingíveis. Hierarquização que tem como consequência direta o constante sentimento de falta, defeito e inferioridade com relação ao que vivenciamos de modo mais direto e espontâneo cotidianamente. Diante desse panorama, surgem inevitáveis questionamentos a respeito de como teriam sido criados esses juízos morais que desvalorizam a vida, de que modo as pessoas foram persuadidas a adotá-los e por que seria mais interessante perceber a existência e agir de outro modo. Tais são alguns dos principais temas presentes no livro A invenção da metafísica a partir da arte: perspectivas nietzschianas, escrito pela professora de filosofia da UFRJ Adriany Ferreira de Mendonça.
O primeiro capítulo “Nietzsche contra Sócrates em O nascimento da tragédia” é dedicado a problemáticas desenvolvidas na obra inaugural de Nietzsche, O nascimento da tragédia, publicada em 1872, quando ele tinha somente 27 anos de idade e era há três anos professor de filologia clássica na Universidade de Basileia. Nela, investigou a cultura e a arte da Grécia antiga do período clássico, com particular interesse pelo apogeu e declínio da tragédia ática. No entanto, diferente dos principais especialistas da época, enfatizou o pessimismo e não a serenidade como a característica mais proeminente dos helênicos e aludiu ao mito de Sileno para respaldar esta sua hipótese. De acordo com essa narrativa popular, ao ser obrigado a responder qual o supremo bem a que os homens poderiam almejar, o sábio Sileno afirmou que o melhor que poderia acontecer ao homem é inalcançável: seria nunca ter nascido. Mas a segunda melhor coisa que pode lhe ocorrer ainda está ao seu alcance: trata-se de morrer o quanto antes. Frente a essa visão pessimista da vida, a arte foi o que tornou a existência não somente suportável, mas inclusive desejável para os gregos, sobretudo através do belo, ordenado e justo universo olímpico dos deuses homéricos. E a encenação trágica é considerada uma das mais importantes manifestações artísticas já produzidas pela humanidade, pois vivencia-la possibilitava acesso temporário à essência da existência sem, contudo, causar melancolia ou apatia, mas deixando o participante com um vigoroso sentimento de alegria.
Outro importante diferencial presente em O nascimento da tragédia consiste nas incisivas críticas feitas ao filósofo Sócrates que chega a ser, inclusive, responsabilizado pelo fim da tragédia grega. Na contramão da tradição que considerava o célebre mártir ateniense como ápice da filosofia antiga, Nietzsche o avalia como início de seu declínio e, diferente dos que identificam mestre e discípulo, estabelece radicais distinções entre eles. Enquanto Platão teria sido um jovem poeta aspirante a autor trágico, Sócrates sempre foi muito reticente com relação às encenações trágicas. Acreditava que elas deveriam ser exemplos de virtudes ao ensinar valores éticos de forma clara, direta e objetiva, de modo totalmente compreensível para qualquer cidadão, sem nenhum tipo de dubiedade. Sob a influência de Sócrates, Platão jogou fora toda sua produção artística para se dedicar exclusivamente à investigação racional filosófica. De acordo com Nietzsche, o autor trágico Eurípides foi outra vítima da nefasta influência socrática que o levou a tentar criar tragédias pautadas pelo socratismo estético. Isso teria tido como consequência direta uma total descaracterização dessa arte. Pois, com a drástica diminuição do protagonismo da música e do deus Dionísio, suas peças deixaram de provocar o necessário pathos trágico, tendo se reduzido à reprodução de dramas banais de temas prosaicos voltados ao mero entretenimento de espectadores vulgares e ociosos. Para Nietzsche, portanto, graças a esse “suicídio da tragédia” em que sua própria encenação adquiriu características diametralmente opostas às de seu surgimento, chegou ao fim a época trágica dos gregos e teve início a idade da razão, raiz da decadente modernidade europeia tão criticada por ele. Também merece destaque nesse capítulo a cuidadosa pesquisa que Adriany Mendonça nos apresenta ao evidenciar a grande inspiração que Nietzsche recebeu do comediógrafo Aristófanes para compor sua imagem de Sócrates. Através de instigantes análises comparativas das comédias As nuvens e As rãs com textos da juventude de Nietzsche, a autora explicita essa determinante referência da comédia antiga que tanto marcou as principais obras do filósofo.
Em suas primeiras críticas ao legado metafísico socrático-platônico, Nietzsche recorreu bastante às filosofias de Immanuel Kant e de Arthur Schopenhauer, além de ter apresentado uma metafísica de artista inspirada pelo músico Richard Wagner a quem, inclusive, dedicou seu primeiro livro. O ano de 1878, contudo, com a publicação de Humano, demasiado humano, é tido como marco de seu afastamento desses pensadores que, a partir de então, passaram a ser intensamente atacados por ele. Em 1886 chegou a redigir um novo prefácio a O nascimento da tragédia em que reafirma a importância da crítica à metafísica, mas questiona o modo através do qual optou por expressá-la naquela primeira obra. Partindo desses referenciais, o segundo capítulo do livro de Adriany Mendonça tem como título “A invenção da filosofia metafísica a partir da arte: Nietzsche contra Platão”. Nele a autora se debruça principalmente sobre os estudos nietzschianos a respeito da linguagem, sobre sua ambígua e complexa relação com Platão e sobre sua incessante busca pelas mais eficazes estratégias de critica à metafísica.
“O diálogo platônico foi, por assim dizer, o bote em que a velha poesia naufragante se salvou com todos os seus filhos: apinhados em um espaço estreito e medrosamente submissos ao timoneiro Sócrates”, escreve Nietzsche na décima quarta seção de seu primeiro livro. Essa afirmação é bastante significativa, pois os diálogos platônicos em muito se assemelham a peças teatrais. São textos multifacetados que contém elementos narrativos, líricos, dramáticos, de prosa e de poesia, sendo muitos deles até mesmo aporéticos. Portanto, essa escolha por uma linguagem artística dúbia com a finalidade de salvaguardar uma suposta pureza objetiva da racionalidade filosófica acaba gerando uma tensão que pode ser interpretada como paradoxal. De acordo com a perspectiva nietzschiana, em última análise, todos os valores são criações humanas, mesmo que não se reconheçam enquanto tal por se pretenderem absolutos e atemporais. O que acaba por aproxima-los da livre criação artística, inclusive o próprio pensamento metafísico que se dedica a combatê-la. Ou seja, a filosofia metafísica teria nascido da arte dos diálogos platônicos, sendo ela própria uma interpretação perspectiva, criada em um determinado tempo e espaço a partir do modo como alguns seres humanos interpretaram e avaliaram a vida.
Supondo que, de fato, todos os valores se equivalem enquanto criações igualmente “arbitrárias”, a partir de quais critérios podemos distingui-los qualitativamente? O que nos permite considerar uns melhores que outros? O terceiro e último capítulo “Nietzsche contra a filosofia do ressentimento: por uma gaia ciência” é dedicado principalmente aos últimos escritos de Nietzsche, momento em que ele já desenvolveu seu método genealógico através do qual avalia o valor dos valores. Um importante parâmetro balizador apresentado por ele consiste em identificar a motivação que levou a determinada interpretação da existência que resultou na criação de certo conjunto de valores, assim como seus efeitos para os que lidam com eles: potencializam ou enfraquecem a relação com a vida? Impulsionam à ação movida por uma legítima necessidade criativa ou somente à reação crítica estéril? Além disso, também é relevante observar em que medida percebem, admitem e afirmam seu caráter perspectivo, sua invenção artística. Sobretudo em seus últimos escritos, Nietzsche privilegiou estilos literários menos convencionais para a transmissão de sua filosofia, justamente com o intuito de evidenciar e suscitar uma pluralidade interpretativa correlata à existencial. O termo que dá título à obra A Gaia Ciência (1882), por exemplo, trata-se de uma referência a um tipo de cânticos satíricos e românticos entoados por trovadores provençais do medievo. Em 1883 publicou Assim falou Zaratustra que consiste em uma espécie de romance filosófico que narra a trajetória de aventuras, aprendizados e discursos de um personagem fictício. Sob o título de Ditirambos de Dionísio redigiu em 1888 uma série de poemas líricos. Também em 1888 escreveu Ecce homo, uma peculiar narrativa autobiográfica de tom jocoso e por vezes ficcional. O modo privilegiado de expressão ao longo de suas obras, no entanto, foram os aforismos, geralmente com breves máximas ou sentenças ricas em metáforas.
Nietzsche é, sem dúvida alguma, um dos autores mais populares e citados de nosso tempo. Seus conceitos de “morte de deus”, “niilismo”, “eterno retorno”, “super-homem”, “vontade de potência” e “amor fati”, por exemplo, são familiares até mesmo para os que nunca leram diretamente qualquer uma de suas obras. Boa parte de seus entusiastas e detratores acreditam conhecer com propriedade sua filosofia por intermédio dos comentários tendenciosos de algum de seus diversos intérpretes. Neste sentido, um dos méritos do recém-lançado A invenção da metafísica a partir da arte: perspectivas nietzschianas consiste em apresentar uma análise autoral, criteriosa e distante dos tão massificados lugares-comuns e cansativos jargões frequentemente associados ao filósofo, o que prazerosamente nos convida à constante (re)leitura dos textos escritos pelo próprio Nietzsche.
Após décadas de pesquisas acadêmicas dedicadas às obras do autor, Adriany Ferreira de Mendonça agora nos oferece esse importante livro a respeito da singular e fascinante relação que Nietzsche estabeleceu entre a vida, a arte, a metafísica, o conhecimento racional e a história da filosofia. Nas palavras de Alexandre Mendonça em sua apresentação à obra:
A pretexto de se investigar o funcionamento da crítica de Nietzsche à metafísica, o que acaba por ser ressaltado é um dos aspectos de sua filosofia que talvez permaneça como dos mais contundentes: as peculiaridades e a importância das alianças que Nietzsche cria com a arte ao longo de toda a obra. São justamente tais alianças que lhe permitem – de maneira por vezes menos, por vezes mais radical – tomar significativa distancia em relação às valorações tradicionais e promover um inaudito deslocamento do modo pelo qual convencionalmente se tratam as questões relativas à “verdade” e à “mentira”. Deslocamento que interessa sobretudo hoje, quando somos frequentemente tentados a ceder a relativismos estéreis diante da ameaça de dogmatismos, ou vice-versa, já que as duas tendências podem se confundir.
REFERÊNCIAS:
MENDONÇA, Adriany Ferreira de. A invenção da metafísica a partir da arte: perspectivas nietzschianas. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.
Créditos na imagem: Reprodução. Editora Ape’Ku.
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