Caracas, 08 de fevereiro de 19: Linda mora numa favela no sudoeste da cidade. Ela esperava o ônibus para ir até o “Eje del Buen Vivir”, um lugar muito verde e fresco que fica ao lado do Museu das Ciências e que tem vários botecos no ar livre. É um lugar “alternativo” no centro da cidade que parece com um jardim no meio da selva de concreto. Eu precisava entrevistá-la e combinamos de nos encontrar às 10hs. Bem cedinho pela manhã, ela arrumou as netas para irem à escola e deixou as coisas prontas para levar ao meio-dia a neta mais velha à aula de música.

 

 

A hora do nosso encontro estava se aproximando e Linda ainda estava no ponto de ônibus. Então, prevendo a demora, ela me mandou uma mensagem falando que ia chegar mais tarde do que o combinado. As dificuldades do transporte aqui estão na ordem do dia. Pelos altíssimos custos dos pneus, do óleo e das peças dos carros, tem aumentado muito a quantidade de ônibus parados ou quebrados e, por causa disso, as pessoas têm problemas para se movimentar na cidade e no interior do país.

Eu não tinha pressa, então aproveitei o momento de espera e fiquei deitada num banquinho contemplando a natureza naquele canto da cidade: as folhas caíam das árvores fazendo um tapete verde e ocre enquanto flores laranja e lilás deixavam traços coloridos nele; a brisa animava o canto e a dança dos ramos; o sol desnudava o vivo azul do nosso céu caribenho…

Longe, no horizonte, uma mulher se aproximava. Era Linda! Ainda sem ter-nos visto nunca, eu sabia que era ela! Ontem havíamos compartilhado algumas pistas, e por isso foi fácil nos identificarmos:

– Linda, você vai me identificar rapidinho pelos meus óculos, que são brancos.

– Maravilha, Lívia. Eu levo um bastão, os cabelos brancos e muita beleza junto comigo!

Nós duas rimos e eu fiquei contagiada com a sua alegria.

Sem nos conhecer, ao nos encontrarmos nos cumprimentamos com esse abraço afetuoso tão caraterístico dxs venezuelanxs. É que nós caraquenhxs gostamos muito de nos relacionar desde o “miamorceo”[1]! Logo depois do abraço, nós decidimos ir para o café do Museu de Belas Artes que, além de ficar perto, é mais lindo. Enquanto caminhávamos bem devagarzinho, íamos falando das nossas vidas, do meu filho, da minha experiência no Brasil, dos filhos e das netas dela e de quanto mudou a sua vida após ela se aposentar. Ela sempre levou uma vida muito ativa, mas agora se dedicava ao cuidado da sua mãe e das suas netas e isso a levava a ficar muito tempo em casa. De fato, ela precisava voltar cedo para acompanhar à neta mais velha à orquestra. Com o seu bastão e com as dificuldades com o transporte, ela tinha doado um pouquinho do seu tempo para nos encontrarmos. Sem dúvida, esse tempo foi um presente que eu não vou esquecer!

Lá no café eu pedi um “marroncito claro”[2] para mim, mas Linda não quis beber nada – ela falou que não podia tomar café, mas eu acho que, por causa da situação econômica do país, ela teve vergonha de aceitar o meu convite –. Aí ela me ofereceu o seu relato. Como todos os outros que eu havia pego, o dela foi muito emotivo. É muito difícil não se emocionar com as lembranças que as testemunhas narram sobre aqueles 27 e 28 de fevereiro do ano 1989. Emociona, aliás, a sensibilidade delas e, no caso da Linda, as suas constantes referências literárias! Eu chorei e sorri com ela. Nós duas viajamos juntas nesse fragmento da sua memória e do passado, da mão do Víctor Hugo, do Sábato, do Quevedo. Após terminar o seu testemunho e suspirar, ela me falou:

– Ai, minha Lívia. Essa situação de fome que nós vivemos naquela época é muito parecida com o nosso presente. Eu acho que agora está acontecendo a mesma coisa…

Na mesa mostrava-se um exemplar dos Miseráveis que Linda havia trazido na sua bolsa. Ela olhava as folhas caindo das árvores no jardim e sorria. Eu olhava para Linda e manifestava-lhe meu agradecimento por ela ter apartado um pouco do seu tempo para se encontrar comigo e me oferecer seu testemunho. Ela olhou para mim com um sorriso e falou:

–Sou eu quem agradece, minha Lívia. Vir para cá me tem tirado da minha rotina na casa! Você não acredita a felicidade que eu estou sentindo ao poder contemplar tanta beleza na paisagem!

Ficamos olhando para o redor e sorrimos de novo.

Linda precisava voltar para atender às suas netas e eu, contagiada pela sua atitude estética, decidi ficar mais um pouco no café. Então nos despedimos com um abraço forte e depois a acompanhei com o olhar até ela se apagar no horizonte.

Peguei minha mochila e caminhei até um banquinho que fica embaixo no jardim do Museu. Ali deitei, olhando para o céu e para as copas das árvores, enquanto lembrava o nosso poeta Aquiles Nazoa, a musa que inspirou o nome do meu filho, aquele do Credo e das bonecas de pano, aquele que fez imortais as esquinas de Caracas, o mesmo que achou a beleza em “As coisas mais simples”[3].

O som de um violino emerge e irrompe o ar. Detrás de uma árvore, uma silhueta acompanha as notas. Eu contemplo…

 


NOTAS

[1] O “miamorceo” é uma gíria que deriva da expressão “mi amor”. Nós na Venezuela gostamos muito de chamar ás outras pessoas de “mi amor”. Por exemplo, quando a gente entra numa loja, é comum que o empregado fale: “Buen día, mi amor, ¿ya te atendieron?” Então, “miamorcear” significa se tratar com carinho.

[2] Esse é o jeito de nós nomear o café que tem menos leite do que um café com leite, e mais leite do que um “marrón oscuro”. Quando o café “marrón” é pequeno, a gente fala “marroncito”.

[3] As coisas mais simples foi um programa de televisão criado e conduzido pelo poeta Aquiles Nazoa nos anos 70.

 

 

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