Salve minhas crianças! Salve Tia Maria do Jongo

0

Aniceto do Império, um dos maiores representantes do partido-alto e conhecedor dos manejos, fundamentos e encantos da palavra dizia que o jongo é o pai de muitas outras músicas que existem por aí. Para o preto-velho carioca, o jongo é coisa séria, que deve segredo e resguardo. Segundo Seu Aniceto, o jongo é das almas… deve se acender uma vela, do lado desta vela um copo d’água. Vovó Maria Joana, a lendária Vó Maria Rezadeira, veio das fazendas de café do Vale do Paraíba para o morro da Serrinha no subúrbio do Rio tecendo um balaio de saberes e firmando a toada, não somos donos de nada, o que recebemos temos que passar adiante.

Vó Maria Joana, Seu Aniceto, Tia Eulália, Mestre Fuleiro, Vó Teresa, Mano Elói, Tia Eva, Mestre Darcy… tantas outras e outros nomes atam os fios jongueiros que fazem da travessia nesse mundo um rito inacabado de festejo da vida e da memória coletiva como pulsação para a continuidade. Nos morros da Serrinha, Congonha, Tamarineira, São José ou sob o viaduto de Madureira e dos Arcos da Lapa estão a se riscar pontos, apalavrados, umbigados e curtidos no couro que remontam as sabedorias vindas de Áfricas e cruzadas no Atlântico. Sabedorias essas que cotidianamente insistem em dobrar a morte pela via do não esquecimento. Assim, o que separa o visível do invisível, a banda de lá com a de cá é a capacidade que se tem de invocar no corpo, ritmo, palavra e festa a memória dos que vieram antes.

O jongo, assim como outras práticas da diáspora-africana, vem sendo classificado como dança, música, jogo, porém, antes disso, o jongo é culto a ancestralidade. Essa dinâmica, de ritualização da memória e de tessitura de uma ética fiada mão a mão, pode ser sentida nos versos de Seu Aniceto e Vó Maria Joana. Em outras palavras, o jongo é daqueles que ocupam o infinito e são vivos porque são lembrados. O jongo também é dos mais velhos, aqueles que tem a responsabilidade de firmar o ponto e sustentar a toada comunitária. Como também é dos mais jovens e daqueles que ainda estão por vir. Assim, cruza-se os quatro cantos da Kalunga, encruzilhada das existências.

O improviso que mescla a firmeza do enigma na amarração da memória alinhavada na palavra é um dos encantamentos que forjam essa cultura. Em muitas tradições vindas das Áfricas conta-se que o avô e avó são a mesma pessoa que os netos. Assim, a imantação do ciclo da vida está nessas pontas que se atam na linha da Kalunga. Existe uma história famosa na Serrinha que diz sobre a entrada das crianças no jongo. Nessa história contam que era proibido a presença delas, mas Vó Maria Joana recebeu a recomendação dos antepassados para que as crianças fossem integradas no rito. Foi buscando saber sobre a infância no jongo que, no meado dos anos dois mil, fui ao encontro da mais velha jongueira da Serrinha. Tia Maria de Lourdes, também conhecida como Tia Maria da Grota ou Tia Maria do Jongo, me recebeu para um longa conversa.

Tia Maria é unanimidade em beleza, leveza, gentileza e alegria. Esses atributos muito comuns nas crianças emanam da presença da matriarca da comunidade. Irmã de Seu Molequinho, Tia Eulália e João Gradim, Tia Maria viu o Império Serrano nascer no quintal de sua casa e viu também a peleja dos kumbas, assim como os festejos dos ciclos juninos, as ladainhas, as curimbas, as festas de santos, o engajamento dos trabalhadores da estiva e o carnaval. Feita de sorriso, babado e renda, a baiana da escola e preta-velha jongueira me disse: ah, meu filho, sempre gostei de festa, minha casa era festa, minha família é de festa.

Cabe dizer, que para comunidade jongueira da Serrinha formada por núcleos oriundos da região do café no interior dos estados do Rio e de Minas, fazer festa é princípio tático de invenções contrárias a lógica de escassez e perversidade produzidas pela colônia Brasil. Dessa forma, imantados com as memórias e sabedorias do complexo Congo-Angola, os jongueiros praticando o que chamo de sabedoria de fresta atuam de forma sagaz nos vazios deixados pelos modos totalitários e desencantados. Tia Maria é mestre nesse fazer e pela sua disponibilidade e generosidade com o mundo elegeu as crianças como principal referencia de sua política cotidiana. Ela mesmo dizia: meu filho, eu sou criança!

Certa vez, ouvi do filósofo Renato Noguera a seguinte problematização: comumente as crianças são interrogadas sobre o que querem ser quando crescer. Astronauta, médico, professora… são muitas as respostas, porém devíamos insistir em outro caminho, a ideia de que quando crescermos queremos ser criança. A reflexão de Noguera, que traz a cena a criança como política fundamental na emergência de um mundo outro é corporificada na presença de Tia Maria do Jongo. Ela era a anciã que vibrava no tom das crianças e por isso atendendo o chamado de Mestre Darcy para o exercício do fazer educativo através do jongo cumpriu o desejo dos antepassados anunciado por Vó Maria Joana.

Quando perguntei para Tia Maria sobre ser criança no jongo, ela me presenteou com uma das mais belas histórias que já ouvi relacionadas a esse contexto: no jongo não podia ter criança porque criança é danada, quer saber de tudo e não guarda segredo. Mamãe contava que jongo era pra velho de cabeça branca. Mas, o jongo lá em casa era festa, tinha comida, bebida, batucada e jongo. Mamãe juntava todas as crianças, dava de comer primeiro para elas e botava todos nós para dormir para os velhos, lá fora, fazerem o jongo. Mas, as crianças fingiam que estavam dormindo e iam olhar tudo pelos buracos da parede, para ver o que os velhos faziam lá fora. Ah, meu filho, no dia seguinte a gente ia tudo brincar de jongo. O Darcy sempre gostou de batucar catava tudo que era panela e balde da mãe dele. Eu, no meio da bagunça, queria ser a Conceição do Salgueiro, que era uma negra alta e muito bonita. Mas, era só os velhos verem a gente brincar que mandava a gente parar porque aquilo era coisa de velho.

Tia Maria nos deixa muitas lições, entre elas destaco uma, a que ser criança é pra vida toda. O povo do jongo se encanta no tambu, no verso, no tabiado, na bananeira, na conta do rosário e no gole da cachaça. Tia Maria se encanta também em cada pé descalço que corre no morro da Serrinha, no fuzuê do Cosme e Damião, no bolo de fubá no fim da tarde e na estrela miúda que alumia o céu de Madureira e guarda o sonho dos pequenos.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Luiz Rufino

Luiz Rufino é pedagogo. Doutor em Educação (UERJ), atualmente realiza pós-doutorado em Relações Étnico-Raciais (CEFET/PPRER). Desenvolve pesquisa sobre crítica ao colonialismo, epistemologias, educações e pedagogias outras e brasilidades.

No comments

Veja:

O que faz um “bom historiador”?

Olá, pessoal! O professor João Rodolfo Munhoz Ohara gravou este áudio sobre seu artigo “Falando de Virtudes e Estabelecendo Fronteiras na Historiografia Brasileira Moderna: uma ...