O coração selvagem de Belchior ainda bate. Não apenas por possíveis reexecuções da canção homônima, faixa-título do álbum de 1977, mas porque sua poesia e filosofia são reencenadas a todo momento no seio de uma juventude progressista que é estimulada desde a contracultura dos anos 1970. São muitas informações, mas a explicação é clara. Em sua Divina Comédia Humana, canção de 1978, presente no álbum Todos os Sentidos, o artista entoa: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo / De dizer não / Eu canto”. Seus versos revelam a própria tessitura das composições de Belchior e de sua presença na seara fonográfica: reivindicar o ato de fazer parte de uma produção da música popular brasileira sem precisar de chancelas ou pistolões, mas afirmando uma territorialidade nordestina, a partir de um sujeito que também precisou fazer o trânsito para o eixo – tido como “de prestígio” – Rio-São Paulo e que, nessa transição, só fez reafirmar seu posicionamento político. E o demonstrou ao usar suas canções para revelar que sua poesia dos dias era a própria reivindicação de uma outra música popular brasileira, consciente de seu próprio tempo e à frente de um tempo de produção musical, também progressista nesse campo.
Belchior poderia parecer despretensioso, como alguém que não queria nada, mas, no fim das contas, direcionava os sentidos desse nada para um tudo: a afirmação de si e de seu espaço. Não à toa, hoje, vemos Emicida, Majur e Pabllo Vittar executando uma versão de Sujeito de Sorte (canção do álbum Alucinação, de 1976): quem mais seria esse sujeito, senão a própria resistência às opressões de um tempo, sentidas não somente em uma política institucional, mas também na própria hierarquia da seara fonográfica brasileira? Parece-me que, assim, delineiam-se processos de sentido em torno de um movimento progressista atual, que pode ser compreendido por meio do ato de três sujeitos específicos, cada qual com suas representatividades e territorialidades políticas, a evocarem Belchior na aura de Sujeito de Sorte. Trata-se de reencenar a própria reivindicação de presença e ascensão, do poeta cearense, na música popular brasileira, fazendo erigir, ao mesmo tempo, uma resistência, que se comunga com a do cantor nordestino e é passada de geração em geração.
Belchior faz com que sua história e sua luta sejam também nossas quando abre sua poesia, pelas canções e por sua figura política, às reinserções no mundo, para que essa poesia possa ser reinventada e novas tradições sejam adicionadas a ela. Não se trata da mesma luta em si, mas se trata, acima disso, do mesmo desejo de lutar. Sua luta é tanto uma dimensão de fronteira, dada ao embate e à conquista (BHABHA, 1998, p. 20)[1], quanto uma herança – nos termos de Derrida (1998)[2] –, executada elogiosamente por Emicida, Majur e Pabllo Vittar. Mas não na nova versão para a música, e sim no aliar de lutas, que harmonizam não os sujeitos, mas seus próprios desejos.
Alimentada por essa juventude e por todos aqueles que pediram, por anos, “Volta, Belchior!”, a presença fantasmática do cantor torna-o um verdadeiro profeta da música: suas canções revelam a poesia dos tempos, ora sob uma vil acepção do cotidiano opressor na política e na música (igualmente política em Belchior por seus gestos de confronto e reivindicação de outras músicas populares brasileiras), ora sob uma ascensão dos desejos mais profundos e embalsamados em uma cripta (AGAMBEN, 2007, p. 49), que não podem ser trazidos à palavra, mas são guiados ao corpo pela melodia e pela filosofia belchioriana[3]. Assimilada como uma seita, essa filosofia se mescla aos nossos próprios desejos de sobrevivência à triste singularidade do cotidiano e faz transbordar em catarse, na pele e em comunidade, esses desejos. A presença fantasmática de Belchior como líder de uma filosofia é, a título de exemplo – e, talvez, um dos mais fortes exemplos –, a vanguarda de uma juventude progressista, colocada como o paladino da mudança de modo tão emblemático pela mesma contracultura dos anos 1970 que Belchior animou e tanto ajudou a tornar um ícone.
E, não a esmo, trata-se de uma juventude atacada, de geração em geração, pelos desmandos de um ultraconservadorismo sempre vil e predatório, que vê – e porque vê –, nessa filosofia, um espaço de mobilização. O qual, ousamos dizer, está na juventude do Teatro Oficina e de sua verve emanada por Zé Celso, por exemplo. E, mais fortemente, está na juventude que não apenas grita “Lula Livre” pelas ruas, mas que experiencia essas palavras de ordem em seus corpos porque elas estão recheadas de desejos políticos, são o próprio desejo que saiu da cripta. São essas sociabilidades que fazem com que os desejos e afetos embalsamados em uma cripta sejam levados ao corpo pelas emoções e sensibilidades de uma poesia, a qual se espalha como filosofia pelos profetas. E não apenas uma filosofia de presenças fantasmáticas, mas também uma filosofia irmanada naqueles que estão cada vez mais vivos, enérgicos e também cheios de desejos – já incapazes de serem mantidos em uma cripta[4].
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
DERRIDA, J. Espectros de Marx. Madri: Editorial Trotta, 1998.
NOTAS
[1] É no interstício entre os polos, nas zonas de “fronteira”, segundo Bhabha (1998), que se emergem tensões relativas a esses campos de trincheiras. É nesse ponto que se negociam valores culturais e experiências. É nesse ponto que se constituem, debatem e se encontram filosofias, bem como se comunga delas.
[2] Aqui, compreendemos a dimensão filosófica que estamos mapeando, por meio de Belchior, como um legado, como herança, como uma tarefa a ser executada e que nos é apresentada e agraciada por presenças fantasmáticas que carregam essa herança. Nesse sentido, “a herança não é, nunca, algo dado; é sempre uma tarefa. Permanece, diante de nós, tão incontestavelmente que, antes mesmo de aceitá-la ou recusá-la, somos herdeiros, e herdeiros enlutados, como todos os herdeiros” (DERRIDA, 1998, p. 67-68; tradução nossa).
[3] Nas palavras de Agamben (2007, p. 49), “não podemos trazer à linguagem nossos desejos porque os imaginamos. Na realidade, a cripta [na qual embalsamamos nossos desejos] contém apenas imagens… O corpo dos desejos é uma imagem. E o que é inconfessável no desejo é a imagem que dele fizemos”. Os desejos, para Agamben, são algo difícil de se trazer à palavra, por isso delegamos a eles um esconderijo, mas embalsamamos esses desejos em uma cripta e ficamos à espera de sua realização. Aqui, acrescentamos a possibilidade do encontro com os desejos por meio dessas filosofias que se instituem e são performativamente acionadas num ato de trazer à tona, aos nossos corpos, a filosofia dessas figuras, que são, cada qual, não encenadas, mas experienciadas em nosso próprio modo de habitar o tempo e na forma como nos situamos politicamente nele e a ele sobrevivemos.
[4] Não seriam, esses desejos, aparentemente impossíveis de serem trazidos à palavra – mas experienciados no corpo por essas filosofias –, o próprio desbunde, na figura de Zé Celso, ou o “amor, o prazer e o tesão” (sobretudo de uma Nação e por uma Nação), ainda possíveis de serem sentidos e agora edificados por Luiz Inácio Lula da Silva, como visto em seu discurso ao povo brasileiro em São Bernardo do Campo (SP), na tarde do dia 9 de novembro de 2019, um dia após sair da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba? “Jovem tem que ter prazer”, disse Lula na ocasião, reivindicando para si essa juventude.
Créditos na imagem: Foto da capa do álbum Coração Selvagem (1977), de Belchior. Foto: Reprodução/WEA Discos Ltda.
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William David Vieira
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