Bicho de pé

Confessou-me não como quem fala a um padre. Foi de modo natural, numa conversa trivial, num fim de tarde, coisas que amigas contam para as outras, partilhas, memórias. Era um dia de calor no interior de São Paulo, naquela cidade onde moramos por pouco tempo, uma rep de estudantes, com móveis modestos comprados em um lugar cujo nome era uma promessa: Pregão Tubarão, de uma agulha a um avião.

Confessou-me como um assunto qualquer. O prazer do relato era real. Ali já estava evidente a relação entre aspiração – pelo que causava o prazer -, e o apetite – pelo prazer propriamente dito. O desejo pelo sintoma e o desejo do alhures. E desejo exige satisfação, mas nunca se sabe os caminhos que percorre e suas vicissitudes.

Desejo, mesmo que desconcertante, deve ser conhecido, sob o peso da frustração e outros problemas (quando não se conhece ou não se realiza). O prazer do corpo pode ser também a sua negação – e se o é, o fio luminoso do conhecimento do desejo pode levar a morte. Mas antes de morrer ainda é preciso voltar ao confessionário.

Nos tempos de infância e até quase toda a adolescência me disse que morou na roça, próximo a um povoado cuja vila era um arruado pequeno e, a cidade mais próxima desse, era também uma cidade pequena, do interior.

No interior do interior relatava o trabalho com a terra, as tardes felizes de banho de rio, a intimidade com os animais e, em especial, as coceiras advindas dos bichos de pé e das infecções por bernes, acidentes recorrentes no tratamento com os porcos.

Os porcos faziam parte da dieta diária da família cuja culinária era muito dependente deles: a banha era usada para feitura de bolos, broas, pamonhas e biscoitos. Assim também toda a comida “de sal” feita com essa mesma banha de porco, portanto, todos os dias, estavam na dieta dos comensais, em ambas as horas, almoço e jantar. Sendo assim, todas as famílias tinham os seus e todo mundo engordava o seus para matar nas horas de precisão: velórios, casamentos, batizados e festas, ou mesmo, simplesmente, para a carne de lata e o uso da banha na vida ordinária.

Mas vamos à confissão, a confissão verdadeira, que não é nenhum segredo que não se pode contar. Ela gostava de coçar. Coçar a coceira que lhe acometia de modo descomunal quando, ao cuidar dos porcos, um bicho de pé penetrava sua pele, geralmente entre os dedos dos pés onde a pele é fina e tenra, alojando-se e depositando seus ovos ali mesmo. Entre coceiras, infecções e um pouquinho de dor, estava antes de tudo o prazer que a coceira gerava, uma prazer descrito como algo nada banal.

A vida na roça já tinha ensinado que a coceira era sinal de perigo. Se o bicho de pé fica muito tempo, pode causar problemas, talvez até de complexidades desconhecidas pelos roceiros que não temem nada: encaram cabeçadas de vaca com coragem e entendem a morte como um processo inevitável, mesmo que triste.

A morte como a chegada do tempo, a morte como “a hora que Deus quer”.

A coceira do bicho de pé era um prazer, sim, mas não podia coçar muito tempo. Esconder um prazer tem limite. Importava avisar aos adultos que já acumulavam conhecimentos para extrair os danados. Bernes ou bichos de pé também se atraiam pelo toucinho, então, poderia amarrar um pedaço de carne do porco no buraco da ferida (onde ele havia depositado os ovos) e ele mesmo fazia a travessia do corpo do homem para o pedaço do corpo do porco.

Outra maneira, mais comum, é usar uma agulha de mão esterilizada no fogão à lenha, abrir o buraco e com os dois polegares apertar até que ele saia, de preferência, inteiro e geralmente de um tamanho muito maior do que quando pele adentra. E, assim, o buraco fica um tempo aberto, lembrando o bicho que estava lá. Depois, aos poucos, fecha. Ou não completamente, em geral, restam as cicatrizes.

A infância inteira a parte da adolescência o ciclo dos bichos de pé e das afecções por berne, em outras partes do corpo se entrelaçavam e se reforçavam. Ora a filha, ora o pai, ora a mãe, ora um dos irmãos, todos em família pisando no chiqueiro, cuidando dos bichos e ao mesmo tempo sendo nutrido pelos mesmos e resistindo em vida. O bicho no homem dentro e fora, entre o coçar e o prazer, de entrar e tirar, de doer e sair, de cicatrizar e recomeçar.

A existência é de coceiras prazerosas e retiradas, não tão prazerosas e, sempre, cicatrizes. Como um ciclo infinito o bicho de pé mostra que o desejo não é apenas o que o corpo sente, mas também a memória da pele, o aquém-imerso do homem, o apetite e a vontade de saciar, o flerte do prazer com a morte.

 

 

 


Créditos na imagem: Paul Gauguin – Landscape with black pigs and a crouching Tahitian

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva

Professora Associada da Universidade Federal de Goiás onde exerce atividades de ensino, pesquisa e extensão. Coordena o VEREDAS, grupo de estudos, pesquisa e extensão, vinculado ao LAGICRIARTE - Laboratório de Geografia, Imaginário, Criatividade e Arte.

3 comments

  1. Rosimeire Diniz da Silva 11 novembro, 2020 at 21:51 Responder

    Uma beleza esse trabalho, um texto que me remete às minhas origens. Mas, que me leva para uma associação jamais imaginada.
    Gratidão

  2. Ludmilla Luciano de Carvalho 11 novembro, 2020 at 21:55 Responder

    Conto de altíssima sensibilidade! Potencializador de memórias e sensações.. parabéns a autora e a página por nos brindar.

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