FRERIGO, Fabiana de Souza; GOMES, Ivan Lima (orgs.). História e Trauma: Linguagens e Usos do passado. Vitória: Editora Milfontes, 2020. 384 p.: 23 cm.

 

Como pensar as articulações entre narrativa e representações de passados traumáticos? Essa é uma das questões que acompanha, via de regra, a produção acadêmica em torno de temas como trauma, luto e melancolia. Durante muito tempo esses temas se caracterizaram como desafios à própria narrativa e apareceram de forma dispersa entre as lacunas da produção acadêmica. Para superar este não-lugar dos estudos sobre o trauma e irromper os silêncios e angústias do tempo que passou, o historiador precisa ser convidado a se aventurar em um campo de diferentes narrativas que envolvem o passado. Neste ato de ousadia, narrar o passado assume uma função criativa, onde a linguagem deve ser tensionada para expressar outras soluções e caminhos estéticos para a escrita da história.

É por meio dessas preocupações sobre os usos do passado que os chamados trauma studies chegaram no Brasil. Na busca por novas soluções e caminhos, a recepção desse campo de estudos marca uma diferenciação em relação ao que era produzido no espaço dos estudos históricos em nosso país. Ao assumir a centralidade do trauma e de suas expressões artísticas, os trauma studies demarcam assim um lugar exclusivo para a mobilização dos passados traumáticos e advogam uma reflexão sensível sobre as possibilidades críticas da narrativa para a representação da experiência.

Do ponto de vista historiográfico, é precisamente a partir desse lugar exclusivo que a coletânea História & Trauma aborda o tema. Urdindo as tramas das linguagens artísticas que envolvem as narrativas traumáticas, a coletânea se debruça sobre os problemas inerentes à representação do trauma e do testemunho. Com o objetivo de analisar as ressonâncias desses problemas no interior do debate entre história e narrativa, Fabiana de Souza Fredrigo e Ivan Lima Gomes reúnem uma série de ensaios que trazem à tona a mediação da linguagem na reelaboração de experiências traumáticas e evidenciam a historicidade da produção testemunhal.

De antemão, dois pontos são fundamentais para compreender o caminho trilhado pela coletânea. O primeiro deles, são as escolhas estilísticas dos autores. De modo geral, a relação entre trauma, testemunho e linguagem é mobilizada a partir de um horizonte aberto às mediações estéticas para apresentação do trauma. Sem perder o rigor metodológico, os textos são marcados por uma escrita singular que transita entre os estilos ensaísticos, jornalísticos e argumentativos. Ao aventurar-se em narrativas ora mais incisivas e ora mais livres, utilizando recursos literários e fotográficos, os autores defendem a utilidade do papel criativo para superar as lacunas ocupadas pelos estudos do trauma na produção acadêmica.

Um outro ponto que não poderia deixar de ser mencionado são as tentativas adotadas pelos autores de escapar dos temas canônicos que alimentam a configuração do campo. Ainda hoje, é praticamente impossível falar sobre trauma e testemunho sem se deparar com os debates sobre o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial. Na busca por evitar sujeitar exclusivamente a dinâmica dos eventos traumáticos a estes acontecimentos, a coletânea se propõe a desafiar as configurações teóricas e historiográficas que dominam a produção acadêmica em torno dos acontecimentos traumáticos do século XX. Assim, ao ir além destas referências canônicas para o estudo do trauma, a maioria dos artigos aqui reunidos, portanto, se dedicam a analisar o trauma e o testemunho a partir de contextos como os das Américas e da África.

A critério de organização, a obra demarca três eixos temáticos precisamente delimitados: (I) Perspectivas teóricas; (II) Narrativa e memória sobre violência política na América Latina: luto e elaboração; (III) Visualidades e performances traumáticas do arquivo. O primeiro deles cumpre com o objetivo de explicitar os problemas que circulam os estudos do trauma no campo histórico. Ao agregar as reflexões de caráter teórico, esta seção é aberta com um meticuloso texto do historiador americano Dominick LaCapra. Originalmente publicado no livro History and its limits: human, animal, violence, e ainda inédito no Brasil, a tradução de “Traumatropismos. Do trauma ao sublime pela via do testemunho?” dá um passo à frente no movimento de preencher essa lacuna ocupada pelos estudos de trauma, luto e melancolia. No capítulo, LaCapra faz um balanço das recentes produções no campo do trauma studies para denunciar a tendência em tratar o testemunho de experiências traumáticas como expressões a-históricas e sublimes. Em sua análise, portanto, o autor identifica os limites éticos e políticos dessas abordagens na elaboração da experiência traumática.

Na esteira das reflexões teóricas mobilizadas pelo texto anterior, o ensaio inédito do francês Henry Rousso completa de modo ilustre a primeira seção da coletânea. Em seu texto, o historiador parte do contexto político europeu para traçar um debate sobre a memória traumática acerca do Holocausto. Em meio a ascensão de governos populistas e nacionalistas, o capítulo debate as tensões que envolvem a adoção de uma “memória negativa” do Holocausto durante a construção de uma identidade europeia e problematiza a imposição desta memória como um modelo definitivo para a elaboração de memória de eventos traumáticos.

No segundo eixo são os contextos nacionais latinos que assumem a centralidade das narrativas. Intitulada “Narrativa e memória sobre a violência política na América Latina: luto e elaboração, a seção conta com seis textos que perpassam entre as ditaduras militares e as formações guerrilheiras nos espaços nacionais. Com grande maestria narrativa, Jorge Montealegre inaugura-a com o texto “Testemunhos gráficos e estratégias narrativas: do mito de Tereu e Filomena à prisão política e novela gráfica”. Considerando a pluralidade do testemunho, historiador chilena explora as diversas experiências testemunhais para analisar as prisões políticas no Chile durante a ditadura pinochetista.

É em direção aos desdobramentos da ditadura pinochetista que se coloca o texto de Fabiana Fredrigo: “O nascimento democrático e a partilha geracional: Literatura, trauma e utopia em Alejandro Zambra”. Nesta exposição, além de apresentar as experiências do trauma através de um dos contos do escritor chinelo Alejandro Zambra, a autora pontua importantes considerações sobre os pressupostos teóricos e metodológicos que orientam a análise literária. Podemos colocar também nesse percurso o texto de Alexandre Avelar. Com o título “Pós-memória e narração do passado em O espírito dos meus pais continua a subir na chuva”, o autor se propõe a discutir os aspectos da pós-memória e da escrita articulados no romance do escritor argentino Patrício Pron. Tendo como base o desenovelar da análise literária, Avelar explora como uma obra é capaz de estimular formas de interrogar tanto a produção literária quanto a historiografia.

Em “Políticas e práticas de esquecimento em um país sem memória: enredamentos da ditadura militar no Brasil”, Julio Bentivoglio analisa as complexas relações entre as políticas e práticas de memória no Brasil. Ao colocar em evidência os esquecimentos existentes sobre as memórias traumáticas de 1964 e do regime militar, Bentivoglio evidencia neste capítulo como políticas deliberadas foram responsáveis por sustentar as práticas de esquecimento. A fim de traçar alternativas para como se pensar o panorama das ciências humanas frente aos desafios do século XIX, esse tema das políticas de memórias volta a ganhar centralidade através do texto de Márcio Seligmann. Com base em uma coletânea de ensaios argentino e um romance brasileiro, em “Do revisionismo ao negacionismo: pensando uma escrita da história crítica como resistência ao apagamento”, Seligmann reflete sobre como o enfrentamento da memória passa pelas resistências do campo político e cultural.

Para encerrar as discussões que compõem a segunda seção, o texto de Libertad Borges Bittencourt “Violência e trauma: a autobiografia de um menino-soldado no Sendero Luminoso” se dedica ao exame dos equívocos senderistas guiados pelo descaminho da violência. Buscando pontuar alguns aspectos da autobiografia, a autora nos leva a refletir sobre as distinções entre os tempos envoltos no acontecimento e no relato. O que se torna fundamental, neste ponto, é compreender como a linguagem mobiliza a naturalização da violência e a acomodação à “situações-limite”.

O último eixo, “Visualidades e performances traumáticas de arquivos, encerra a coletânea com uma série de discussões sobre as visualidades que compõem as manifestações como as instalações arquitetônicas, pinturas, fotografias, performances e histórias em quadrinho. Para abrir a seção, o texto de Ana Lúcia Vilela se debruça sobre o museu idealizado pela artista Doris Salcedo para analisar como as características plásticas da obra mobilizam uma abordagem sobre o Acordo de Paz colombiano assinado em 2016. Intitulado, “Pavimentar o chão comum: a utopia melancólica na obra de Doris Salcedo”, o texto de Vilela fornece uma ótica inovadora para pensarmos sobre as dicotomias e os reducionismos que envolvem o debate em torno da memória pública.

Em “‘A arte como um funeral’: O quadro, de Siron Franco, sobre o acidente com o césio-137, em Goiânia” Eliézer Cardoso de Oliveira articula as discussões entre a dor e belo para capturar a recepção sobre o acidente radioativo ocorrido em 1987. Ao observar os efeitos melancólicos da obra Segunda Vítima, a análise do autor destaca como as emoções humanas atiçadas pelo quadro ajudam a superar a dor da morte. Na esteira das discussões sobre como a arte pode ser utilizada para pensar a experiência histórica, segue o texto “A guerreira está cansada, mas não está morta: a experiencia da fotógrafa Rosa Gauditano entre as comunidades indígenas no Brasil (1989-2018)”. Neste capítulo, Ana Maria Mauad observa em que medida a relação que a fotógrafa estabeleceu com os seus fotografados serve como base para avaliar a configuração de um espaço público visual com os indígenas e para os indígenas. A análise destaca, portanto, como a fotografia assume um gesto político capaz de exprimir as relações de disputa e resistência.

No capítulo escrito por Pedzisai Maedza são as performances que ganham a centralidade narrativa. Na busca por investigar a memória da violência colonial em massa contra as mulheres africanas, em “As concubinas do Kaiser: Re-cordando mulheres africanas na eugenia e no genocídio”, Maedza se debruça sobre a instalação Exhibit B. A autora defende a ideia de que a performance dirigida por Brett Bailey é utilizada como uma ferramenta para dar vida à memória e às fotografias do genocídio que integram o arquivo etnográfico colonial.

O texto de Alexandre Linck Vargas, “A estética Kirbyana e o trauma espacial: geometria barroca de o Quarto mundo” é responsável por encerrar a seção e a coletânea. Dando seguimento ao rigor metodológico e a qualidade literária dos textos aqui apresentados, Vargas traz uma abordagem inovadora ao analisar as interpolações entre trauma e arte na história em quadrinhos. Através de uma leitura acadêmica do quadrinho Quarto mundo, o autor identifica como a estética Kirbyana e as discussões filosóficas presentes na obra foram responsáveis por fazer do trauma um recurso capaz de mobilizar os aparatos conceituais advindos da História da Arte e do trauma studies.

De modo geral, podemos dizer que História & Trauma trata-se de uma obra que não pretende apenas pontuar os limites e desafios que envolvem a narrativa sobre os passados traumáticos. A coletânea, antes de tudo, reúne textos que nos levam a refletir efetivamente sobre os usos do passado e os lugares que os trauma studies ocupam na produção acadêmica. Essa é a reflexão que o livro nos traz de forma tão relevante e necessária. Em prol de uma contínua abertura, os autores convidam assim os historiadores a assumirem a importância da pluralidade narrativa e ultrapassar as tradicionais metodologias que permeiam as escritas históricas para propor novas abordagens que permitam aproximações interdisciplinares e ampliem a interlocução do saber científico.

 

 

 

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