O ponto de vista do orangotango, que não significou pouca coisa na invenção do mundo e que segurava o ar no globo terráqueo com suas frutas carnudas, seus cupins e seus elefantes, esse ponto de vista único no qual se deve a percepção disciplinada de tantos pássaros cantores e aquela das primeiras gotas de orvalho das folhas, esse ponto de vista não existe mais, você se dá conta, o mundo de repente encolheu, é todo um aspecto da realidade que colapsou, uma concepção completa e articulada dos fenômenos que fará falta doravante a nossa filosofia (CHEVILLARD, 2007, p. 18

 

A epígrafe-citação nos permite iniciar este ensaio colocando em jogo nossa pergunta sem resposta única: como contar histórias que sejam capazes de desencolher nossos mundos? A passagem é de Chevillard, de seu romance Sem o orangotango, em que ele descreve a morte do último dos orangotangos, a extinção de um povo. A extinção coloca a morte como questão central, e sabemos que o fortuito e a coincidência tem pouco a contribuir na explicação das desigualdades que acarretam essa dinâmica de quem pode matar e de quem pode ser morto. A morte, no trecho acima, é também a morte de um ponto de vista, de um modo de habitar a terra. É a morte dos longos cabelos ruivos do orangotango e também do seu balançar nos mundos arbóreos. O fim de um ponto de vista, de uma perspectiva, é o fim de um mundo e o encolher de outros tantos.

Juliana Fausto nos lembra da mobilização interessante feita por Chevillard da palavra filosofia, “que, em grande parte de sua história, pelo menos a majoritária, se esforçou para retirar dos animais qualquer ponto de vista, culminando na famosa teoria acerca de sua pobreza de mundo” (FAUSTO, 2014, p. 04). A autora também nos chama a atenção para a falta que fazem os desaparecidos no mundo do Antropoceno, sejam eles os candangos – trabalhadores da construção civil, imigrantes nordestinos que levantaram a cidade de Brasília – assassinados pela Guarda Especial de Brasília no massacre de Pacheco Fernandes Dantas, sejam os ratos-candango, bicho encontrado justamente pelos trabalhadores imigrantes. Poderíamos lembrar da produção deliberada de desaparecidos políticos do terrorismo de Estado brasileiro das décadas de 60, 70 e 80, os assassinatos dos corpos racializados nas operações de pacificação ao redor do país, ou a extinção das araras-azul-pequena, das pererecas-verde-de-fímbia e dos orangotangos.

Não há pensamento sem corpo, se os corpos desaparecem, formas de conceber, pensar e praticar a vida também somem. Os mundos perdem mundo. O mundo encolhe. Se a História um dia tentou nos ensinar algo, se as histórias tem o propósito de nos lembrar, dos candangos e dos orangotangos, elas também podem pretender um agenciamento ético-político (RANGEL, 2019), uma performance de desencolhimento de mundos, de contatuação no presente contra qualquer prática que tenha como objetivo colapsar concepções completas, parciais, articuladas e desarticuladas de habitar a terra.

Como nos ensinou Walter Benjamin, a escrita da história rememora para uma posterior redenção, quer dizer, a lembrança do que não aconteceu, do possível, do desaparecido ou do extinto “dá vida a um passado que parecia acabado, porque sua “ausência” questiona a legitimidade do fático ao mesmo tempo que permite à injustiça passada fazer-se presente como demanda de justiça” (MATE, 2011, p. 24). A demanda de justiça surge no presente como necessidade de atuação ético-política, pois contar histórias é, em alguma medida, escutar os mortos e falar a partir desse encontro, com todas as dificuldades que surgem daí. O que nós queremos é contar histórias que desencolham o mundo, que falem sobre as diferentes maneiras de habitar a terra. Algumas das histórias que desencolhem mundos são as que não se pretendem únicas e as que não desejam produzir mais fósseis, desaparecidos e extintos. Em outras palavras, contar histórias que desencolham mundos é uma questão cosmopolítica, de aprender a escrever, falar e existir em uma “responsible relation to always asymmetrical living and dying, and nurturing and killing” (HARAWAY, 2013, p. 42).[1]

 

 

 


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da História”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas v.1). São Paulo: Editora Brasiliense, 2012, p. 241-252.

CHEVILLARD, E. Sans l’orang-outan. Paris: Les Éditions de Minuit, 2007.

FAUSTO, Juliana. Os desaparecidos do Antropoceno. The Thousand Names Of Gaia: From the Anthropocene to the age of the Earth, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 1-15, 2014.

HARAWAY, Donna J. When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.

RANGEL, Marcelo de Mello. A urgência do ético: o giro ético-político na teoria da história e na história da historiografia. Ponta de Lança, São Cristóvão, v. 13, n. 25, p. 27-46, jul./dez. 2019. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/12619>. Acesso em: 03 jul. 2020.

MATE, Reyes. Meia-noite na história. Comentários às teses de Walter Benjamin ‘Sobre o conceito de história’. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2011.

 

 

 


NOTAS

[1] Relação responsável com os sempre assimétricos viver e morrer, e cuidar e matar. (tradução nossa)

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Foto: @fevolcan.

 

 

 

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