Contexto bélico

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Caracas, 18 de dezembro de 18: Hoje eu decidi ficar em casa. Na verdade nem foi por vontade que eu fiquei. A Biblioteca e o Arquivo Nacional estão de feiras de Natal desde 14 de dezembro e as aulas do Aquiles também. Então prefiri dedicar o dia de hoje para cozinhar, arrumar algumas coisas em casa e escrever um pouquinho.

Nesta semana eu não precisei comprar queijo, mas faltava urucum e carne para fazer as hallacas, o nosso ritual gastronômico natalino. Por sorte, eu economizei parte da minha bolsa e consegui comprar os ingredientes e dar esse presente para a minha família. A hallaca é tão importante no nosso Natal! É o único prato que, num mesmo instante, consomem todas as famílias venezuelanas e que, pelo contexto atual no país, ficará ausente em muitos lares.

Pelas dificuldades de ter acesso aos alimentos, têm se criado muitas redes e fórmulas alternativas de mercado. Têm grupos em aplicativos nos quais as pessoas vendem ou compram diferentes produtos como queijo, café, carne e papel higiênico, passando por cima das grandes empresas de distribuição. Você vai pela rua e pode se encontrar com caminhões de frango, peixe, carne; pessoal vendendo café moído na hora; barracas ou tapetes no chão com banana da terra, alho, cebolinha, abóbora, batata, mandioca; venda de chouriço frito ou de tequeños como opções de almoço na rua.

Eu entrei num grupo de aplicativo em que o Sérgio oferece café e queso llanero. O Sérgio é um ex-namorado meu e antigo dirigente estudantil que, junto com o Ángel e outros companheiros, foi expulso da universidade em 2001 por causa da ocupação da reitoria da UCV. O negócio do grupo funciona assim: o Sérgio manda uma mensagem avisando que vai levar queijo para Caracas por um determinado preço a quilo; aí xs interessadxs pedem a quantidade que precisam e logo fazem a transferência do dinheiro para a conta dele. A questão é que você não pode demorar muito em fazer o pagamento porque o preço muda muito rápido.

O Sérgio mandou uma mensagem pedindo para alguém receber os queijos e o urucum. O Keymer e o Siul avisaram que iam receber a mercadoria e, como eu estava perto e tinha muita vontade de ver meus amigos, falei para me esperarem. Eu queria dar-lhes um abraço.

Nossa! Quantas saudades! Dei um forte abraço neles e convidei-os para tomar um café na minha casa. Fomos abraçados e batendo papo no trajeto todo. Embora fosse meio-dia, a saudade era tanta que não fizemos questão da hora nem da fome. Preparei café, abri uma garrafa de cocuy que havia comprado na semana passada em San Agustín e começamos a nos atualizar. Os garotos me falaram que o cocuy estava muito bom e que não tinha sabor de ureia. Saúde por isso!

As histórias do Siul foram as mais tristes. Ele, o Keymer e eu somos professores universitários e sabemos perfeitamente o quão precário tem sido o nosso nível de vida e o que temos tido que sacrificar neste último período. Então ele, com muita tristeza, contou para a gente da sua situação. Durante muitos anos ele morou num apartamento compartilhado com a Lucia, ex-esposa dele e mãe dos seus filhos, mas agora ele está morando num quarto pelo qual paga 25 $ mensais de aluguel, enquanto o apartamento dele está alugado em dólares para garantir a subsistência dos filhos e da Lucia, que foram embora para o Uruguai o ano passado graças ao fato da Lucia ser filha de exilados uruguaios e ter dupla nacionalidade.

Eu sabia o quão difícil e doloroso estava sendo essa situação para o Siul, sobretudo por ele ter que se afastar dos seus filhos. Enquanto falava, a voz do Siul ficava quebrada.

–Livia, a Lucia foi embora porque está com câncer e aqui não tinha jeito de se tratar, mesmo tendo um alto cargo na administração pública. Então ela e os meus filhos aproveitaram a nacionalidade uruguaia dela para procurar uma saída na situação. Eu estou muito ciente do certo da decisão, no entanto, eu não consigo ficar bem sem ter os meus filhos perto de mim. Mas, por outro lado, o que poderia lhes oferecer na minha situação atual? Olha só! Eu, engenheiro, que com o meu trabalho consegui ter um apartamento próprio, uma casa na praia, uma camionete… Agora estou na ruína, morando num quartinho, procurando dólares para comprar os remédios do meu irmão que está doente.

A história do Siul me fez lembrar o Fausto, um amigo da gente, e aí aproveitei de dar-lhes notícias dele:

–Olha só, meus amores. Há pouco o Fausto também foi embora do país. A situação dele é muito triste. Vocês lembram que ele foi morar no interior por causa do concurso que ganhou como professor num campus da universidade, né? Bom, aconteceu que lá ele estava morando com o seu pai, seu filho mais velho, sua segunda esposa e o bebê que teve com ela. Como todas as famílias hoje aqui, eles estavam subsistindo em condições muito precárias. O filho mais velho estava morando com ele porque a mãe tinha ido embora para o Chile e o rapaz não queria ir com ela. A atual esposa do Fausto, que é psicóloga, não aguentou mais a situação de precariedade na que viviam e aproveitou a sua dupla nacionalidade para ir embora para o Canadá com o neném. O pai do Fausto, que está com enfisema, estava morando com ele porque os outros três irmãos também foram embora do país e, na sua condição de saúde, não podia ficar morando sozinho. Então, vocês podem imaginar o cenário do Fausto? Longe da sua esposa e do caçula e com o pai nessas condições? Na final das contas, o Fausto foi embora para o Canadá com a esposa e o caçula, o filho mais velho foi embora para o Chile e o pai ficou aqui. Uma bosta!

Aí todxs ficamos calhadxs uns segundos e logo Siul quebrou o silêncio:

– É muito foda a nossa situação. Testemunhar e encarnar a separação e fragmentação das famílias pela onda migratória. O velho Pedro, que foi como um pai para mim, teve que voltar para as Ilhas Canárias sem nada, nas mesmas condições em que havia chegado há 46 anos na Venezuela, mesmo depois dele ter criado uma empresa próspera a qual se dedicou a vida inteira. Nos seus 73 anos de idade, ele não queria representar um problema para a gente na situação atual do país, e decidiu ir embora. Nós estamos vivendo num contexto bélico, em que a gente acaba “jogando fora” os que têm menos possibilidades de sobreviver. É foda!

Brindamos com o nosso cocuy enquanto chorávamos muito. Nenhum de nós havia almoçado e a fome começou. Peguei uma farinha de milho branco para fazer umas arepas, ralhei um pouco de queso llanero que tinha na geladeira e enchemos os nossos estômagos de comida e os nossos peitos de afeto.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

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