É comum imaginar que o verdadeiro se opõe ao falso, como dois extremos, dois caminhos que jamais se cruzam. Na atmosfera cotidiana, na vida concreta, ou você diz a verdade, e descreve fatos, ou você conta uma mentira, e distorce esses mesmos fatos. Será mesmo? Não existiria talvez uma verdade mentirosa ou uma mentira verdadeira? Dentro da abordagem dialética, em um discurso ideológico qualquer, isso não é apenas possível, como é o padrão, aquilo que mais acontece.
A chegada das famosas Fake News, nos últimos tempos, reflexo do governo de Donald Trump, nos EUA, tem apresentado um efeito colateral bem desagradável. O debate público, aos poucos, vem sendo corroído por dentro, e a própria crítica, no geral, tem simplificado tudo ao redor, ao reinstalar um tipo de dualismo que durante muito tempo foi superado dentro da esquerda. Uma Fake News não é uma ideologia, justamente porque o discurso ideológico não se opõe aos fatos, mas, ao contrário, depende deles, ao menos enquanto pretexto. Não acredita? Vamos aos exemplos:
Fábio é um jogador de vôlei e adora cuidar do próprio corpo, como qualquer atleta. Nunca perde a chance de ir até a academia, sendo seu lugar preferido, sem dúvida nenhuma. Seu tempo médio de exercício são duas horas diárias, o que não é nenhum problema para Fábio e sua paixão pelos aparelhos. Certa manhã, na mesa do jantar, sua mãe, curiosa, pergunta o por que de tanto exercício. Fábio, depois de tomar um gole de café, com a xicara ainda na mão, reponde: “Academia faz bem para saúde, todo mundo sabe disso”
Nesse exemplo simples, bem comum, o argumento levantado “academia faz bem para saúde” é, sem dúvida, verdade, um fato, amparado por estudos e muita observação. Mas será mesmo esse o real motivo nos bastidores? Dentro do olhar genealógico de Nietzsche, ou dialético, de Marx, é possível perceber o quanto a linguagem possui várias camadas de sentido, não sendo um poço de transparência, como muitos poderiam imaginar. Motivações ocultas fazem parte dos encadeamentos, dissolvidas em palavras, enquanto fatos, dados, leis, além de toda uma série de objetividades, podem continuar a fazer parte do cenário, ao menos enquanto pretexto.
Argumento (Fato): Exercício faz bem para saúde
Ideologia1: Culto a vaidade
Ideologia2: Consumismo
Ideologia3: Fragmentação do eu
(…)
Um outro caso marcante, um ótimo exemplo de como a ideologia funciona, foi o impeachment de Dilma Roussef em 2016. Toda uma estrutura jurídica foi usada, consultada e afirmada, sempre trazendo o debate para o terreno dos fatos, das leis, da formalidade. Assim como no exemplo de Fábio e sua academia, os fatos existem, estão presentes, fundamentam a coisa toda, mas apenas enquanto pretexto. A mentira, portanto, não se opõe à verdade, mas depende dela para existir.
Argumento (Fato): Pedaladas Fiscais e outros deslizes jurídicos
Ideologia1: Polarização Politica
Ideologia2: Ressentimento
Ideologia3: Machismo
(…)
A estrutura ideológica, como qualquer boa narrativa, tem como meta não apenas o convencimento do outro, do mundo externo. No primeiro exemplo, é preciso que o próprio Fabio, antes de qualquer um, convença a si mesmo do que foi dito, ou seja, ele precisa acreditar que sua motivação é nobre, coerente, positiva. O discurso ideológico, o que não é nenhuma surpresa, não apenas depende de fatos para existir, como também depende de um fator de sedução, um atrativo aos participantes do jogo da ideologia, em especial aqueles que a articulam. Na linguagem, existe a camada oficial, a superfície, aqueles encadeamentos racionais e convenientes, de um lado e, do outro, existem várias camadas obscuras de sentido convivendo lado a lado. A ideologia, portanto, não é propriamente um argumento, mas uma motivação, um estado de corpo. Os argumentos entram apenas para criar uma aparência coerente e aceitável, uma redoma de sentido, um cofre bem guardado. Na prática, não existe um discurso ideológico, já que a parte do “discurso” é sempre algo de objetivo, metodológico, formal, jurídico, etc. A parte ideológica não é da ordem do discursivo, mas sim uma motivação de fundo, um estado de corpo.
As fake News reinstalam um dualismo irritante, persistente, pressupondo uma divisão entre verdade e mentira, quando esse nunca foi o problema. Não apenas o debate público foi afetado, mas a própria esquerda contemporânea passou a comprar também o pacote, saindo do trilho, antes voltado aos discursos ideológicos, mas agora sendo apenas um trajeto confuso, perdido em fake News. É muito perigoso cair nesse terreno simplificado, dualista, e perder do horizonte a grande contribuição de Marx e sua crítica aprofundada da linguagem ideológica e seus mecanismos sofisticados de poder e reprodução.
Créditos na imagem: Reprodução.
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