O presente ensaio busca lançar luz sobre como as roupas podem traduzir o inaudível, e dialogam com o roteiro presente em Her (Estados Unidos, 2013) de Spike Jonze, explorando como a transcriação poética do figurino, por meio das personagens, podem ser entendidas como traduções intersemióticas que materializam a palavra em imagem.

Para Pierre Sorlin, os processos da composição da estrutura de um filme remontam elementos que tomam de empréstimo partes da realidade. Assim, se a trama é realista ou sem sentido, tal interpretação se dá a partir de como a realidade é vislumbrada pelo receptor. Por esse ângulo:

Se lançam as luzes da razão sobre a escuridão do caos, estas luzes iluminariam tão somente partes finitas de um fluxo incessante e infinito de eventos, estando, elas mesmas, irremediavelmente ancoradas em pressupostos subjetivos que não encontram respaldo numa hierarquia dada, de uma vez por todas, fora daquele que conhece a realidade. (CUNHA REGO, p. 13)

A realidade criada sob a mira de Spike Jonze, em Her, retrata cenários futurísticos vivenciados por Theodore (Joaquin Phoenix), escritor e recém divorciado, que encontra em um sistema operacional, autonomeado Samantha (Scarlett Johansson), a possibilidade de se sentir pertencido dentro de um relacionamento, que ultrapassa as barreiras físicas e corpóreas, uma vez que o romance se desenrola entre um ser humano e uma inteligência artificial.

Nessa reflexão, porém, me distancio das discussões filosóficas frankfurtianas que ressaltam as problemáticas em torno dos dramas tecnológicos sociais, já que a trama, como um prisma intimista, pode despertar diversos olhares. Meu foco repousa na construção do figurino por Casey Storm e como a escolha dos tons selecionados para compor as cenas traduzem, retificam e, em certa medida, materializam a subjetividade do personagem Theodore em contraposição à Samantha, que por ser um sistema operacional sequer possui um corpo.

Por se tratar de um filme futurista, ao contrário de se investir em roupas digitais ou abusar dos tecidos holográficos, Casey Storm revisita os anos 20, 30 e 40 apresentando calças com cinturas altas utilizadas por personagens masculinos, e diversos tons avermelhados. O impacto do figurino da trama irradiou o próprio universo da moda, em que até mesmo a marca Opening Ceremony chegou a dedicar uma de suas coleções inspiradas no filme.

Para Preciosa (2006) o criador de moda pode ser visto como um cronista de nosso tempo, que dá visibilidade a nossa subjetividade, na medida em que apresenta “segundas peles” que cobrem nossas peles orgânicas. Dessa forma, a passagem intersemiótica construída por meio do roteiro presente na trama de Her é dada a um signo vestível, ou seja, o figurino transmutando o conteúdo dos diálogos em imagens. De acordo com a figurinista Rô Cortinhas (2010, p. 19) “O figurino materializa o personagem”.

As roupas de Theodor não chamam atenção apenas pelo corte ou por seu tom, mas sim porque expressam em imagens o inaudível, seus sentimentos para com as pessoas, coisas e lugares com quem se relaciona.  Um personagem romanesco que transborda sensibilidade, não apenas por meio das cartas elaboradas em seu trabalho como escritor, mas também expele a harmonia sensível, afetiva e masculina.

Diferente da figura construída no imagético cinematográfico em outros períodos, Theodor é o retrato do homem fragilizado e sensível. Em uma das cenas, quando ele se permite conhecer outra mulher humana, interpretada por Olivia Wilde, é comparado pela moça com a figura de um cachorrinho pedindo por atenção e carinho.

Embora a cena termine de forma apática com Theodor não sabendo lidar com seus próprios sentimentos, deixando a moça partir, o simples fato dele estar vestindo uma camisa social lisa de cor amarela pode captar e traduzir seus sentimentos perante a garota.

Segundo Bellatoni (2005, p. 76), o amarelo aparente em filmes é associado à força e energia e é constantemente tido como alegria por conta de seu vínculo com o sol. Porém as sensações que ele realmente causa são obsessão e ansiedade. Ainda, para Heller (2014, p. 19), algumas das interpretações que o amarelo pode ter são: conflito, inocência, alerta, inteligência, sofisticação, ou até mesmo trazendo informações de cunho lírico.

Olhares sob um único tom de cor que se apresentam nesse contexto, podem facilitar a leitura de uma transcriação indumentária cênica, ou seja, partindo das frases e diálogos construídos nessa cena, no qual estão concentradas todas as características e indícios da identidade de Theodor.

Em sentido mais amplo, “O figurino enquanto objeto sensível, é capaz de produzir subjetividades, provocando no ator acesso a um novo nível de existência” (Apud. CORTINHAS, 2010, p.15)

Por outro lado, a sociedade retratada na trama, permitiu não só que a tecnologia evoluísse a fim de tornar o indivíduo cada vez mais independente de outras relações humanas, como abriu portas para a representação do desabrigo transcendental, permitindo que os personagens pudessem se encontrar, sem precisar que outros seres humanos fossem necessários nesse caminho de redescobrimento de si mesmo.

Krakauer, aos anos 20, assume que determinados grupos sociais em busca da nostalgia eram conduzidos a fantasias românticas como fuga do real, uma ação considerada regressiva já que poderia ser justificada como recurso à violência física legítima, voltar ao passado para o autor seria beirar o delírio (CUNHA RÊGO, 2019 p. 04).

O figurino de Her não é só uma releitura da moda de outro século, como a própria história relata o delírio de Theodor em diversas cenas, com nostalgias somente de momentos considerados felizes vivenciados ao lado de sua ex-mulher Catherine (Rooney Mara).

Além disso, no dia de assinar seu divórcio com Theodor, Catherine vestia uma camisa branca representando a neutralidade, se demonstrando sóbria perante a realidade que a constituía e de forma brusca tenta conduzir Theodor a memória de quando ele a fez tomar estabilizadores de humor, por não saber lidar com seus sentimentos voláteis.

Por esse ângulo, a camisa branca de Catherine em contraposição à camisa em estampada de Theodor nessa cena, ao compor os personagens, também criam uma narrativa e dessa forma é possível entender as roupas como tradução estética em subjetividades que podem ser lidas através de percepções poéticas. (ACOM, p. 122)

Haroldo Campos (1989), considera a tradução intersemiótica, onde se há a interpretação dos signos verbais por meio de sistemas não verbais, ou de um sistema de signos para outro, como uma das mais fascinantes formas de teorizar e praticar a tradução. Diferente de outros filmes em que o último cenário possível é uma felicidade desmedida tendo como fim a criação de uma mônada amorosa aparentemente resistente, Her se encerra com Samantha, o sistema operacional, partindo e se desligando de Theodor, relevando que o ama em concomitante a mais de outras 600 pessoas.

Nessa quebra de laços resta apenas o sujeito afetado, que ao se permite sentir, incorpora outros tons de tecidos em seu guarda-roupa, como o verde pastel, até a neutralidade do branco.

Como em uma das últimas cenas em que Theodor, ao lado de sua amiga Amy (Amy Adams), se desprende da materialidade que o constitui, ao vestir uma camisa branca, não mais vermelho vibrante, ou o amarelo ensolarado, apenas neutro, representando não mais o apaixonado delirante, mas sim o desafetado lúcido.

Her não é apenas um filme sobre o amor na era tecnológica extremada, consegue ser mais intimista, pois seja através do roteiro ou figurino, Theodor é o retrato da divina comédia humana, onde nada é eterno e os sentidos que encontramos no caminho em direção ao fim, são voláteis e semelhantes ao céu, ora ensolarado, ora cinzento, às vezes azul mas sempre em movimento.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ACOM, Ana Carolina. Tradução e Transcrição em figurino. dObra[s] Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Moda. Abepem. São Paulo – SP, 2016.

BELLANTONI, Patti. If It’s Purple, Someone’s Gonna Die: the power of color in visual storytelling. Oxford: Focal Press, 2005

CORTINHAS, Rosângela. Figurino: Um objeto sensível na produção do personagem. Porto Alegre, 2010. Dissertação de (Mestrado) – pós-graduação em Artes Cênicas, Instituto de Artes, UFRGS.

CUNHA, Rego Pedro. Cinema e “Ideologia” a partir dos escritos de Siegfried Kracauer e Pierre Sorlin. 5º Seminário Discente do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo. São Paulo – SP, 2019.

DURSKI, Giovanna. Simbologia das Cores no Cinema: Um Estudo do Filme Amores Imaginários. XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul – Cascavel – PR – 31 mai. a 02. jun. 2018. Disponível em:  https://portalintercom.org.br/anais/sul2018/resumos/R60-1603-1.pdf,  Acesso em:. 29 mar. 2021.

HAROLDO, Campos. Da transcrição: póetica e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte, UFMG, 2011

HELLER, Eva. A Psicologia das Cores: como as cores afetam a emoção e a razão. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2014.

LESNIOWSKI, Ana. Os Figurinos de Ela. Figurino. CineOrna, 2014. Disponível em:

http://www.cineorna.com/orna-os-figurinos-de-ela/  Acesso em: 29 mar. 2021.

PRECIOSA, Rosane. O design de moda com potência de um experimento. Conexão – Comunicação e Cultura. Caxias do sul, v. 5, n; 10, jul. Dez. 2006

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Her, Sony Mobile.

 

 

 

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