Diaspórica e plural: quando encontrei Beatriz Nascimento

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Qual o lugar das intelectuais negras na História da Educação Brasileira? 

No balanço da produção a respeito de categoria “intelectuais”, abundam estudos sobre “homens brancos de letras” como sendo quase sinônimo de erudição, conhecimento. Quando o recorte é pensar quem escreve a História do Brasil, também são abundantes os estudos sobre historiadores brancos. Este foi o caso da tese Escritas de viagem, escritas da história: estratégias de legitimação de Rocha Pombo no campo intelectual (SILVA, 2018). Eu, mulher negra, filha de mãe nordestina e nascida na Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro, me propus a dar visibilidade a trajetória intelectual de um homem branco, nascido no sul, e que representava as mulheres negras em seus livros como sendo boas “escravas”, “boas cuidadoras” e “dóceis com as crianças”. Ao longo da minha trajetória acadêmica e durante minha graduação em História na UFF, lembro de ter lido nomes como Marc Bloc, Jacques Le Goff, Carlo Ginzburg, Edward Palmer Thompson… A maioria homens, brancos, europeus….  

Nunca tinha sequer ouvido falar em Maria Beatriz Nascimento, logo ela, que em 1975 ajudou a fundar o Grupo de Trabalhos André Rebouças na Universidade Federal Fluminense. O patrono do grupo é um intelectual negro mais estudado e reconhecido pela própria historiografia brasileira: André Rebouças, filho do Conselheiro Antonio Pereira Rebouças.

Pude conhecer um pouco mais sobre Maria Beatriz Nascimento graças aos esforços de pesquisadores como Alex Ratz, autor do livro Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento (2007), e da ação de coletivos, como foi o caso do livro Beatriz Nascimento: intelectual e quilombola. Possibilidade nos dias de destruição (2018), editado pela União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA).

Beatriz Nascimento foi a alma deste grupo composto “por estudantes negras (os) de vários cursos que tinha, dentre seus objetivos, o propósito de introduzir e ampliar principalmente na universidade conteúdos acerca das relações raciais no Brasil, almejando o envolvimento do corpo docente” (RATTZ, 2009).

Enquanto é vasta e abundante a produção acadêmica sobre historiadores brancos como João Ribeiro, Rocha Pombo, Capistrano de Abreu, Adolfo de Varnhagen, é possível contar nos dedos estudos sobre historiadoras mulheres, com destaque aqui as historiadoras negras no Brasil. Isso num país em que a maioria da população se declara negra nos censos do IBGE.

Beatriz Nascimento é também a única intelectual negra a merecer um fundo próprio no Arquivo Nacional, o mais importante do país. Cabe interrogar:  qual o lugar da documentação produzida por mulheres negras na memória nacional?

 

Maria Beatriz Nascimento teve a vida brutalmente interrompida no ano de 1995. E em 1999, todo o acervo da pesquisadora foi doado pela filha dela ao Arquivo Nacional. Ao todo são 45 caixas, com documentação variada: correspondência, roteiro de filme, projetos e relatórios de pesquisa, publicações, estudos, fotografias sobre quilombos e a presença do negro na sociedade brasileira, discos e fitas VHS. Destes,  havia 16 caixas de livros e periódicos os quais foram transferidas para a Biblioteca Maria Beatriz Nascimento.

Não tendo tido tempo de escrever uma autobiografia na forma de livro, interpreto as  muitas pegadas deixadas por Maria Beatriz Nascimento como uma escrita de si. Ela sabia que num país racista como o Brasil, as chances de ser esquecida e silenciada seriam enormes. Ela também sabia que uma das justificativas utilizadas era a de que “pessoas negras não produzem documentos”… As 45 caixas produzidas por ela contradizem essa premissa…

Dentre os documentos referentes as muitas viagens realizadas pela intelectual, destaco os cartões postais, bilhetes, convites para exposições, mostras de cinema, seminários, solenidades. Há também rascunho de relatórios de campo em viagem a Minas Gerais no período de 1978 a 1979.

Beatriz Nascimento percorreu o Brasil em diferentes momentos.

Beatriz do Nascimento também acionava suas redes de sociabilidade para conseguir agilizar a documentação para viajar a países estrangeiros. Em 1984, pediu autorização para citar o nome de Sebastião Soares para poder viajar para os Estados Unidos. É possível aferir que no período de 1976 a 1984, desenvolveu intercâmbios com os Estados Unidos, o que pode ser verificado em correspondências diversas. Beatriz do Nascimento também se correspondia com autoridades diplomáticas dos Estados Unidos.

A intelectual manteve diálogos com intelectuais da América Latina, pois lia tais autoras, conforme verifica-se com a presença de textos como: Historia de la esclavitud negra en Venezuela y el Caribe foi publicado pelo Centro de Investigaciones Historicas da Universidade Santa Maria, Caracas.

Em 1994, foi convidada pelo Movimento Nacional pelos Direitos Humanos da Comunidade Negra da Colômbia (CIMARRON) para participar do Segundo Encontro de Organizações Afro-Colombianas.

A partir da documentação existente no Fundo Beatriz Nascimento, é possível verificar que a mesma teve ativa participação em seminários, eventos e organizações internacionais, com destaque para o interesse que o continente africano exercia sobre ela. Em 1987, por exemplo, participou da Conferência Pan-Africana no DAKAR.

Beatriz Nascimento escrevia e registrava as viagens realizadas. Eram momentos formativos singulares na trajetória desta intelectual. Destaque especial ao documento intitulado “Viagem à Angola: relatório (final) sobre pesquisa Quilombo”. Tal relatório de pesquisa é fruto do convite feito pelo Conselho Nacional de Cultura da República Popular de Angola para realizar viagem de estudo ao país em 1979.

Maria Beatriz Nascimento teve uma vida breve. Morreu jovem e deixou uma filha. Ao longo dos 43 anos, dedicou-se ao ativismo e a escrita combativa, na luta para existir num país que negava seu lugar na história, sua memória e experiência. Fez uso da escrita como resistência. Viajava para reencontrar-se com suas raízes. Foi protagonista da própria história, em primeira pessoa

 

 

 


REFERÊNCIAS

NASCIMENTO, Maria Beatriz.  Beatriz Nascimento, Quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. Filhos da África, 2018.

RATTZ, A. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento.

São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Instituto Kuanza, 2007.

SILVA, A. L. (2018a). Escritas de viagem, escritas da história: estratégias de legitimação de Rocha Pombo no campo intelectual. Curitiba: Appris.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Beatriz Nascimento, Arquivo Nacional, Brasil. Disponível em:
https://www.gov.br/arquivonacional/pt-br/assuntos/noticias/serie-mulheres-e-o-arquivo-maria-beatriz-nascimento

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Alexandra Lima da Silva

Alexandra Lima da Silva é doutora em Educação (ProPed-UERJ, 2012), Bacharel e Licenciada em História pela UFF (2005), instituição na qual também concluiu mestrado em História Social (2008). Foi professora efetiva no Departamento de História da UFMT (2013-2015), PPGHIS/UFMT (2014-2016) e ProfHist/UFMT (2015-2018). Realizou estágio pós-doutoral na University of Illinois, com bolsa CAPES no período de janeiro a dezembro de 2019. Desde 2015 é professora na Faculdade de Educação da UERJ e professora permanente no Proped/UERJ. Autora dos livros infantojuvenis As rosas que o vento leva e Flores de ébano.

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