Dimensões da técnica, do espaço urbano e das experiências da vida cotidiana nas grandes cidades: Encontro entre Georg Simmel e Antoine Picon

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O século XIX inicia convivendo com os frutos da Revolução Industrial, frutos esses que incluíam a migração de camponeses para os centros fabris, onde a agitação política estava efervescente e diante do crescimento urbano levando as cidades ao título de metrópoles. É nesse momento em que a cidade grande, com o ideal do liberalismo e pelo meio da divisão econômica do trabalho, sustenta a fala de Simmel de que os indivíduos, agora libertos das ligações históricas, pretendem também se distinguir uns dos outros.

É interessante mencionar que na obra de Simmel, o autor aborda com destreza o caráter individualista que as cidades grandes demandam da sua sociedade, como forma de combater o caráter homogêneo que as cidades acabam construindo. Num todo de pessoas dentro desse espaço urbano, agora o indivíduo tenta resistir contra ser nivelado e consumido pelo mecanismo técnico-social, seja este empregado pelo Estado ou pela economia monetária.

As pessoas da cidade grande buscam estabelecer seu caráter intelectualista e sua vida em particular, sem relações de animosidade com os demais, entretanto, se preocupa precisamente com a intenção de promover sua unicidade e incomparabilidade qualitativas.

Simmel explica ainda que nas cidades grandes do século XIX – e por quê não também no XX – os problemas vão surgir justamente nessa vontade do indivíduo em preservar sua autonomia e a peculiaridade de sua existência diante das pautas superiores que a sociedade levanta, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida.

É possível dizer que Picon acena para essas preocupações ao abordar a temática das cidades inteligentes e sua crescente entre os séculos XX e XXI, quando compara o advento das tecnologias com o nascimento das cidades industriais do século XIX e à emergência da cidade de rede, como ideal urbano e processo prático de transformação da urbe. A revolução Industrial (período dos séculos XIX-XX) e a Tecnológica (período dos séculos XX-XXI) promoveram deslocamentos espaciais entre pessoas e mercadorias, cada uma a sua maneira: enquanto alguns trensdistribuem os produtos, os cabos de redes transferem dados, de igual ou maior valor monetário para seus produtores.

Acerca das experiências da vida cotidiana, Simmel confere algumas características ao modo de viver das pessoas na cidade grande, que, como supracitado, buscam primar a individualidade, ao ponto de cunhar a expressão de que “a antipatia nos protege”, como forma de realizar distâncias e aproximações, numa espécie de dissociação que, na verdade, fomenta formas elementares de socialização.

Essa socialização através de ritmos de aparecimento e desaparecimento confere ao indivíduo uma medida de liberdade pessoal, promovendo o desenvolvimento de vida social mediante a organização de círculos vizinhos, ao mesmo tempo por se antagônica ou por uma limitação includente, como os grupos políticos, confrarias religiosas, etc., surgindo como espaços sociais que reunião pessoas com os mesmos interesses, que, para manter a boa convivência, exigirão regras, entretanto, torna-se espaço de discussão de ideias que antes ficariam guardadas para si. Esses espaços permitem a liberdade de fala e atuação em alguma causa ou pauta, ganhando liberdade de movimento, dissolvendo os limites. A individualidade se torna compartilhável.

Esse compartilhamento de interesses que torna o único em coletivo, que mostra uma demanda particular como de outros indivíduos é sinalizada nas falas de Picon, ao mencionar o aspecto colaborativo do “desenvolvimento de conteúdo eletrônico e da crescente hibridização desse conteúdo com o mundo físico”, tomando como exemplo as organizações como Wikipedia e Open Street Map, que almeja e incentiva essa colaboração em uma escala massiva, criando um lócus onde indivíduos com interesses particulares vejam a liberdade de construir um tráfego de dados conjunto a outros indivíduos, diante da ideia de descontruir a “antipatia que nos protege”, dando ao sujeito o poder de realizar suas distâncias e aproximações com os demais.

Picon afirma que vivemos em cidades que se movem ao ritmo de eventos cada vez mais numerosos que podem ser seguidos em tempo real, entendíveis como os streamings, broadcasts, downloads, uploads, e tantos outros termos informacionais, que se comportam pela lei da demanda, entre “fregueses e produtores”.

Não é uma realidade muito distante conceitualmente do que Simmel relata, quando afirma que a cidade grande moderna se alimenta quase que completamente da produção voltada ao mercado, ou seja, fregueses completamente desconhecidos, “que nunca se encontrarão cara a cara” com os verdadeiros produtores. Não seria um prelúdio do que viria a ser a cidade do século XXI, onde o consumo das informações independe de sua fonte, muito menos de conhecê-las?

Entretanto, a aparente individualidade dentro da cidade inteligente tem sido um elemento de grandes conflitos nos sistemas de informações, visto que para integrar-se ao mundo digital é necessário que o sujeito também de torne digital, sendo referido como os dados numéricos que conferem a ele um usuário na rede, com acessos e restrições adequados conforme sua identificação.

Esse indivíduo transformado em sujeito digital por vezes não reconhece o campo digital como espaço social, levando a discussões sobre a emergência em redação de novos códigos de ética que visem a boa convivência entre membros, diferentes dos cunhados para a vida presencial, a fim de “preservar o aspecto essencial do direito à vida privada e segredos pessoais”, pois na fala de Simmel, onde o sujeito da cidade grande aplica o distanciamento e aproximação quando desejar, se vê como dominante num universo digital de dados, sendo capaz de produzir conteúdo mentiroso como os casos das fake news, os inúmeros relatos de roubos de identidade, atuações irregulares dos piratas da era digital.

Em seu trabalho, Simmel afirma que o espírito moderno da cidade grande se tornou mais e mais um espírito contábil, e faz referência ao domínio a economia monetária provoca sobre as formas de vivenciar as experiências da vida cotidiana. Ousaria correlacionar o espírito contábil de Simmel com a inteligência abordada nas cidades de Picon: nas cidades modernas do século XIX a contabilidade se empenhava em dados financeiros, contábeis, e, hoje, o que contamos são acessos, cliques, dados.

A cidade inteligente possui esse espírito contábil, mas seu domínio é operado por outros, que não a economia monetária – ao menos não inicialmente, mas por indivíduos digitalmente empoderados. E como conclui Simmel, “nossa tarefa não é acusar ou perdoar, mas somente compreender”.

 

 


Créditos na imagem: Italo Calvino\’s \’Invisible Cities\’, Illustrated.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paolla Clayr De Arruda Silveira

Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, Mestre em Cognição e Linguagem pela UENF e MBA em Administração e Gerência de Cidades, pesquisadora da discussão dos sentidos e significados dentro da Arquitetura, com viés na semiótica e análise do discurso.

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