Dimensões políticas sobre o direito à memória

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Vivemos um período em que cada vez mais pessoas se tornam conscientes de seu papel como produtores de narrativas históricas e construtora de espaços de memória. Fruto dessa consciência, observa-se uma intensa reivindicação de lugares de protagonismo por aqueles grupos que foram marginalizados durante a consolidação de uma historiografia marcada pela etiqueta da branquitude masculina europeia cis-hétera. A fim de traçar novas epistemologias, as questões que perpassam assuntos como raça, gênero e sexualidade se inflamam nos debates acadêmicos – assim como fora –, produzindo uma gama de obras que pretendem trazer uma perspectiva representativa sobre essas pautas. Apesar dessa honrada tentativa para com o dever democrata e memorial, surgem grupos identitários exclusivistas que caminham contra a tendência de pluralização de narrativas.

Embora essa ideia de democratização seja algo louvável, conforme disserta Valdei Araujo (2015), o aumento de discursos sobre a história e a memória não necessariamente diz respeito à tendência de democratização, sobretudo se esses discursos vêm impregnados de afirmações de locais de poderes e privilégios. No entanto, mesmo sendo válida essa tentativa para com o dever democrata e memorial, surgem grupos identitários exclusivistas que caminham contra a tendência de pluralização de narrativas. Acompanhado dessa onda de progresso existe também um crescimento igualmente proporcional de retrocessos que fomentam uma conjuntura instável e antidemocrata. A partir da dicotomia entre essas duas forças opostas experienciamos a complexa problemática em torno da batalha sobre o direito da memória. Tal complexidade se dá pelo fato de que, apesar de propósitos de usos diferentes, esses dois grupos possuem a mesma reivindicação: serem vistos como “polo ativo na produção de uma historiografia socialmente distribuída” (ARAUJO, 2017, p. 206). Ou seja, indivíduos reivindicam um local de destaque em que possuam condições de contarem e apresentarem suas narrativas.

A preservação da memória é vista como uma possibilidade de constituir um espaço plural e diverso, pautado na produção identitária. A tendência especial da segunda metade do século XX em obsessivamente organizar a memória constitui mais do que uma tentativa de resguardá-las, pois representa, sobretudo, um “compromisso de responsabilização democrática com os eventos traumáticos que decorreram desse período” (ABREU; RANGEL, 2015, p. 11). Segundo os autores, essa tendência à democratização é produto de um vazio de orientações característico do século XIX e início do século XX, como defendeu Ruseu, no qual a sociedade passou por um momento de suspensão de sentidos, sendo resgatados, então, somente pelo imperativo democrático sustentado pela alteridade e pelo princípio da diferença.

O que observamos como característica principal desse grupo que caminha contra a democratização dos espaços de memória é a reivindicação para traçar uma história sobre o passado através de lembranças próprias, muitas vezes cunhadas em uma visão muito específica e distorcida do que realmente foram os fatos. Em suma, esses buscam um retorno ao etnocentrismo, no qual desejam tomar o seu grupo como medida correta que materializa a realidade. Como pontua o historiador Mateus Pereira (2015), pode-se caracterizar essa reivindicação como uma memória autoritária, fundada no revisionismo e no negacionismo histórico.

Esses grupos identitários negacionistas buscam debater, de forma obsessiva, o passado na tentativa de sempre o reconfigurar em outras novas formas, não parecendo dispostos a traçar uma perspectiva de “esquecimento, negação ou suprassunção” (ABREU; RANGEL, 2015, p.12). A tentativa por parte desses grupos difere das percepções de visitas ao passado benjaminianas, em que a evocação de um tempo remoto tem, por finalidade, tornar visíveis narrativas invisibilizadas no passado e, assim, traçar um horizonte com vista para o presente-futuro. Assim, o que podemos entender através da ideia do historiador francês Hartog sobre uma “historicidade presentista”, ou, nos termos de Gumbrecht, “presente alargado” é um grupo que utiliza a estratégia de evocação permanente do passado para explicação do presente, “como dado a alimentar a sua autoidentidade” (ABREU; RANGEL, 2015, p.13), e não um memorando para construir caminhos para futuro, tal qual defende pressuposto de Benjamim. Os perigos de viver nesse presente alargado se revela na adversidade de produzir versões tendenciosas do passado para legitimar narrativas irreais e propulsoras de desigualdades para sustentar suas visões de mundos.

A exemplo, notam-se os constantes revisionismos sobre o passado brasileiro, que, quando tomados por esses grupos identitários, propicia discursos negacionistas para desorientar os fatos verdadeiros, colocando em cheque qualquer credibilidade da metodologia histórica. Aparecido por grandes grupos econômicos do país, a direita identitária brasileira alimenta um cenário de guerra cultural em uma proporção considerada inédita (ARAUJO, 2015, p. 193). Batalhas de memória em torno da Ditadura Militar ocorrida no Brasil em 1964 talvez sejam um dos casos mais emblemáticos do atual cenário político, sendo, inclusive, evocadas constantemente nos últimos meses, a exemplo dos acampamentos bolsonaristas em frente aos quartéis generais e das invasões e destruição de prédios dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília.

A utilização falaciosa dos fatos históricos e a manipulação desonesta da memória são utilizadas para estimular desconfianças sobre o método científico e, assim, disseminar uma ideia própria do passado e estabelecer seus valores dominantes. Ela se alia à crítica contra os métodos históricos e cria mecanismos que incorporam e materializam essa disputa traçada pelo direito à “memória verdadeira”. O exemplo mais simbólico é a adesão por parte de muitos ao movimento “Escola Sem Partido”, encabeçado pela direita identitária, que acusa escancaradamente as Humanidades de serem um aparelho doutrinador de esquerda. Observa-se, também, o crescente número de obras “quase históricas” (GLEZER; ALBIERI, 2009), que, ao usufruir da crítica sobre as produções acadêmicas e ao utilizar da demanda da comunidade sobre o saber histórico, criam entretenimento com a roupagem de produção histórica e desqualificam a historiografia ao mesmo tempo que manipulam versões e ampliam preconceitos.

Contudo, apesar de todos esses ataques à produção histórica, as circunstâncias atuais têm sido um campo fértil para repensar o papel social do historiador e da prática do ensino da História, assim como o distanciamento entre a comunidade e a produção acadêmica.  Concomitantemente, tal cenário ajuda historiadores na desconstrução da ideia do campo historiográfico como único polo irradiador de informação, trazendo muitos desses profissionais a se debruçarem sobre as pluralidades das narrativas históricas e, assim, abrir espaço para um contingente de produções que não irradiam da própria academia, mas é tão potencial quanto.

Além disso, é notória a crescente luta para estabelecer a divulgação científica histórica enquanto um campo fortemente consolidado, a fim de construir saberes verídicos e disseminar informações corretas sobre os fatos históricos e, dessa forma, combater seus usos por grupos políticos que os utilizam para enfraquecer a democracia e os direitos humanos. Também é aberta a possibilidade de investigar o ensino de história dentro da sala de aula como um meio para reiterar o papel fundamental da disciplina frente aos retrocessos do uso da memória para a construção histórica. A figura do professor de história tem se colocado cada vez mais disposta a mobilizar recursos e saberes para produzir conhecimentos a partir da realidade dos alunos, criando uma ligação que deveria ser reproduzida no resto da sociedade: uma interlocução entre os saberes acadêmicos/eruditos e os saberes aprendidos ao longo da existência de uma pessoa no seu contexto social.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ARAUJO, Valdei Lopes de. 2012. A Aula Como Desafio À Experiência Da História. In: Qual O Valor Da História Hoje?, eds. Marcia de Almeida Gonçalvez, Ana Maria Monteiro, Luís Reznik, and Helenice Rocha. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 66–77.

ARAÚJO, Valdei Lopes de. 2017. O Direito à História: O(a) Historiador(a) Como Curador(a) de Uma Experiência Histórica Socialmente Distribuída. In: Conversas Sobre O Brasil: Ensaios de Crítica Histórica. ed. Rodrigo Perez Géssica Guimarães, Leonardo Bruno. Rio de Janeiro: Autografia, 191–216.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. 2015. Nosso Amplo Presente. São Paulo: Unesp. (Capítulo V: Admiração constante num presente em expansão. Da nossa nova relação com os clássicos).

KLEM, Bruna Stutz; PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

LÜBBE, Hermann. 2016. Esquecimento E Historicização Da Memória. Estudos Históricos, 29: 285–300.

SARLO, Beatriz. 1997. Cenas Da Vida Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. Capítulo V. Intelectuais.

RODRIGUES, Thamara. de O. Teoria da história e história da historiografia: aberturas para “histórias não-convencionais”. História da Historiografia, v. 12, n. 29, 28 abr. 2019.

ABREU, Marcelo, Marcelo Rangel. 2015. Memória, Cultura Histórica E Ensino de História No Mundo Contemporâneo. História e Cultura, 4(2): 7–24.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: “Archivos para la paz: usos sociales y lugares de memoria” em Bogotá – Exposição 2015.

 

 

 

SOBRE A AUTOR

Ana Vitória Vieira

Graduação em andamento em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. É vinculada ao Laboratório de Estudos Medievais (LEME/UFOP) onde desenvolve pesquisa na área das práticas médicas realizadas na Itália no século XI, com ênfase nas temáticas de gênero e as Histórias Conectadas.

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