Selvagem. Djonga define seu novo álbum no título de uma das músicas. Ele diz de seu instinto, feroz! Daquela caneta potente que o acompanha desde junho de 1994, às vezes tirando o pé para ver se os “otário” alcança. Às vezes, deslizando rude para caminhos canceláveis… mas não é disso que se trata esse texto. Aqui quero falar sobre essa selvageria reivindicada.
Coisa bonita é subversão, de todas as formas, ainda mais a linguística. Selvagem é construção perene dos que definiram ser o povo brasileiro, ou parte dele. Aquela parte nativa, aquela parte em diáspora, ambas exploradas, violentadas, trucidadas. Djonga sabe, fez e faz História, que o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, criado pouco depois da independência, fincou seu produto forte na memória pública desse país: “cêis” não são brancos, (incivilizados!), vão continuar sendo domesticados. Seus corpos, suas possibilidades, seus direitos, sua existência… nós que dizemos o que serão (ou que não serão!). É aquele tal “par conceitual civilizado/selvagem” (TURIN, 2012), que repercute na bala “perdida” da polícia que sempre atinge o corpo preto.
Ele já tinha dito lá atrás: o mundo é nosso! Assumiu essa oposição assimétrica que rasga esse país continental, esse povo mesclado, que não se vê latino, nem colonizado, muito menos preto e indígena. Tem que ser incansável né, meio corredor queniano para certas existências por aqui. Falo isso sabendo o que não sinto nessa pele branca que me cobre.
O rap tem essa obstinação, até antes de ser gênero musical. Aparecia lá nos dicionários ingleses desde o século XIV: rap um “trem” como “bater ou criticar” (TEPERMAN, 2015). E tem que ser isso, tem que bater, com ritmo e poesia. Djonga deu aula nesse último álbum, bem melhor que ontem, saciando a nossa fome.
Chega a ser heresia não escutar. Ali ele me mostra que meu bisavô deve ter segurado a corrente da coleira do seu. Ele chama sua ancestralidade no ombro, toca o algodão que foi colhido no sangue dos seus. É real demais! Assim como o sangue que ainda escorre das mãos da polícia. A parte ruim que é tudo que ele e muitos sabem e que tantos outros não olham. Se olham, não veem, estão vendados pelos rótulos racistas que encaixam djongas nos degenerados.
Mas Djonga segue passando no buraco da agulha, real demais para ser rotulado ou roteirizado pela narrativa que o inferioriza. Ele escapa desse cativeiro, tipo João e Maria, não se aparta da guerra, continua puxando a boia para ver se os “otário” afunda, até porque, Gustavo, “procê” têm outra opção?
Não dá tempo de ter medo, quando sua existência é historicamente negada. Da fome, aquela dura e real, dá a fome metafórica: aquela que (te) devora! A vontade de fugir tem, vontade de ouvir sobre ao pé do ouvido. Mas tem opção? Que fácil é a existência de quem pode existir, eu ando pensando sobre isso e sobre nós, Djonga e Milton.
É mesmo triste “Ainda estou aqui”, mas é ainda mais triste quando o aqui não está, quando o desejo de uma sociedade é te eliminar aqui, no presente, mas também lá, nas marcas do passado. Heróis de verdade morrem e morreram daqueles pelourinhos que conhecemos em Mariana.
Demoro a dormir quando lembro disso, mas mais ainda desde o dia 13/03. Minha fome é o escrutínio dessa selvageria, livre e feroz nos beats do Coyote. “Cê” fala faz tempo: Hoje não! Mas isso aqui, esse álbum aqui, é hoje sim. É des-sufoco do indomesticável. “Cê” deu aulas de história, mesmo tendo largado o curso, acorda os seus e essas outras (meninas brancas) do coma. Toca lá para que jovens negros peguem seus diplomas na universidade pública. Junta essa nova cena num novo mundo possível de sonhar. Que mais “cê” quer aqui? Espero que essa fome persista, que devore os “otário” do passado e do presente.
Da voracidade que sua reivindicação alcança, nesse instinto selvagem que dilacera, que “cê” nos subverte linguisticamente. Se selvageria é a essência do incivilizado, que bom, é ela que pode permitir que outros Brasis reexistam: brasis negros, latinos, de povos originários. Brasil de Abya Yala e Améfrica Ladina, de Lélia González (1988). Para isso aqui, Djonga, hoje “cê” é deus!
REFERÊNCIAS
González, L. (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92/93, pp. 69-82.
TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som. : as transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
TURIN, Rodrigo. O “selvagem” entre dois tempos a escrita etnográfica de Couto de Magalhães. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol.28, p.781-803: jul/dez 2012.
Créditos da imagem de capa: Reprodução do Instagram do artista Djonga.
Camilla Cristina Silva
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