Nesse ano de 2020, as eleições norte americanas, através de Donald Trump, trouxeram uma velha conhecida às manchetes de jornais e aos assuntos das mídias sociais, isto é, as alegações de fraudes eleitorais no processo decisório, pela disputa dos pleitos. Aliás, digo velha conhecida, pois, o Brasil em meados de 2014 já havia presenciado tal episódio, com derrota de Aécio Neves nas eleições presidenciais daquele ano.
Além disso, em uma live publicada pelo canal de nosso ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, no dia 15 de novembro, se foi reforçado não só a veracidade do argumento de Trump, em relação às fraudes eleitorais estadunidenses, como também a relação entre tais eleições fraudulentas possuírem semelhanças com as mesmas que ocorreram em nossa primeira experiência republicana brasileira.
Aliás, tal argumento não parece ser muito distante do que muitos de nós conhecemos acerca da popularmente chamada “República Velha”, marcada pelas charges presentes em muitos livros didáticos de História do Brasil, que talvez possa ter conduzido muitos à ideia geral de que a política desse período, além de não ser competitiva, foi solapada pelo processo eleitoral fraudulento.
Seja por conta das eleições realizadas a Bico de Pena, ou pelo violento Voto de Cabresto, ou ainda pelas práticas de Degolas, que naquele período, pela ausência da justiça eleitoral, era referida a última etapa do processo eleitoral, que passava pelo reconhecimento dos diplomas de candidatos e simbolizava a ideia de que muitos deles eram eleitos, mas seus diplomas não eram reconhecidos pelo congresso nacional.
Contudo, estudos alternativos que lançam olhar sobre o mesmo período, buscam vincular o sentido de fraude eleitoral presente na Primeira República brasileira, a noção de competição política e ao funcionamento da máquina burocrática eleitoral. O presente texto visa discutir de modo breve alguns pontos de todo o trabalho em desenvolvimento.
Durante a Primeira República brasileira, desde 1891 até o fim do regime em 1930, foram realizadas 13 eleições para o governo federal, onde a legislatura foi feita sem interrupção por golpes de estado, ou mudanças arbitrárias nas eleições (RICCI; ZULINI, 2017, p. 246).
Cláudia Viscardi (2001) evidencia que identificar a ausência de disputa eleitoral, durante a primeira república brasileira, se deriva em olhar para esse processo histórico focando apenas nos resultados das eleições. Pois, os próprios partidos políticos da época resolviam a disputa pelos pleitos presidenciais antecipadamente, através das convenções nacionais, onde as negociações e tomadas de decisões aconteciam.
A estrutura política desse período poderia ser traduzida em que no plano nacional. O presidente da república concedia autonomia política aos governadores estaduais, que no plano estadual durante as disputas eleitorais a exercia, já que o presidente da república não intervinha nos estados. E no plano municipal, os coronéis garantiam os famosos votos de cabresto, para os governadores estaduais, em troca de benefícios.
Victor Leal (1978), descreve como o coronelismo esteve presente nas esferas municipais brasileiras, como parte do sistema político, uma vez que os chefes-locais desses municípios, chamados de coronéis, ofereciam apoio incondicional aos governadores nas eleições, que de outro lado, concediam benefícios aos municípios.
Nesse esquema, tais chefes-locais assentavam suas forças no município, pois o território dependia economicamente das verbas entregues pelos governantes. Segundo essa lógica, argumentam Ricci e Zulini (2019), que as eleições da primeira república não foram uma farsa, como costumeiramente se é interpretado, mas, permitiram certo controle sobre os conflitos políticos.
Tal afirmação só é possível ser mais bem compreendida, ao se olhar como o mecanismo eleitoral funcionava durante a Primeira República.
A primeira fase, caracterizada como pré-eleitoral, era de caráter preparatório e ficava sob o controle dos dirigentes municipais, o que Victor Leal (1978) menciona com a noção de “filhotismo”. Somente após o levantamento prévio, feito por uma comissão especial que realizaria a consolidação dos pedidos de qualificação apresentados, é que os títulos eleitorais seriam concedidos e entregues aos respectivos requerentes, após a assinatura do prefeito (RICCI; ZULINI, 2017, p. 254).
Entretanto, a partir da Lei Rosa e Silva, ou seja, a primeira reforma eleitoral aprovada na República em 15 de novembro de 1904, a qualificação dos adeptos a votar passou a ser realizada pela magistratura, e os requerimentos para o alistamento e as provas exigidas neste fim, que antes eram mais fáceis, passaram a exigir rubricas das autoridades judiciárias (RICCI; ZULINI, 2014, p. 445).
Além disso, de acordo com Ricci e Zulini, por meio do alistamento eram manifestos os primeiros momentos da disputa eleitoral em âmbito regional, entre os partidos governistas e oposicionistas.
Contudo, vale ressaltar que a competição política na Primeira República se dava não apenas entre governo e oposição, mas dentro do próprio governismo em função da fragilidade do partido governador, sendo característica do governo, o facciosismo que resultava em cisões o tornando totalmente instável (ZULINI, 2017, p. 39-40).
A segunda fase do mecanismo se caracterizava pelo Momento Eleitoral, onde o controle das urnas se mantinha através do domínio partidário da máquina administrativo-eleitoral, como estrutura organizacional necessária à realização dos escrutínios, de acordo com as prescrições legais da época.
Por outro lado, embora durante muito tempo os pleitos possam ter sidos conhecidos pelos famosos votos de cabresto, Ricci e Zulini argumentam que as Oligarquias partidárias não controlavam o voto somente pela intimidação e violência, uma vez que existem evidências de suborno (que competiam com as fraudes).
Além disso, os autores mencionam a existência de um verdadeiro mercado de votos trocados tanto por pouco dinheiro, oferecidos aos cidadãos que queriam pagar seus alojamentos, quanto por trocas de refeições simples. Outrossim, existiam candidatos que viajam pelo país divulgando sua candidatura, sem mencionar a existência dos jornais partidários que também possuíam fatores importantes do convencimento dos seus eleitores (RICCI; ZULINI, 2017, p. 258-261).
A terceira fase do mecanismo eleitoral, durante a primeira república brasileira, era caracterizada pela de apuração de votos que ocorria nos municípios divididos em seções.
Não obstante, após o encerramento da apuração o presidente (ou quem poderia o substituir) com ajuda dos escrutinadores, abria a urna e apurava os votos dados aos candidatos, os quais eram transcritos na ata da seção eleitoral. Depois o presidente do governo municipal, em conjunto com os cinco candidatos mais votados, realizava uma nova apuração e o resultado era transcrito na ata geral da apuração (RICCI; ZULINI, 2013, p. 94).
Entretanto, Ricci e Zulini também apontam que através da Lei n. 3 207, promulgada em 1916, a apuração geral dos votos, passou a ser feita na capital do estado, e agora a Junta Apuradora era formada por um juiz federal, que recebia ajuda de um representante do Ministério Público, junto ao Tribunal Superior de Justiça, podendo ser possível afirmar que a fase da apuração de votos seguiu altamente descentralizada.
Contudo, mesmo depois da reforma, a influência do executivo não diminuiu, uma vez que os juízes federais embora não fossem dependentes dos governadores do estado, ainda estavam sujeitos a várias formas de coerção e pressão (RICCI; ZULINI, 2017, p. 264).
A quarta fase do mecanismo eleitoral, após as Juntas Apuradoras baterem o martelo sobre o voto, é definida pelo reconhecimento dos candidatos eleitos, onde o trabalho seguia à Câmara dos Deputados. Esse processo, passava pelo crivo da Comissão dos Cinco, chamada assim, pois era composta por cinco membros nomeados pelo presidente provisório da Câmara.
Contudo, para que a lista com os nomes dos candidatos eleitos tivesse validade, era necessária sua aprovação por parte de um plenário, que na época ainda não era legalmente constituído.
Em consequência disso, como o regimento da Câmara afirmava que apenas os candidatos constantes da lista apresentada pela Comissão dos Cinco, poderiam participar da votação no plenário, Ricci e Zulini concluem que eram os próprios deputados reconhecidos previamente pela Comissão dos Cinco, que aprovavam seus diplomas (RICCI; ZULINI, 2013, p. 94).
Depois dessa primeira etapa, a segunda ainda do processo de reconhecimento dos diplomas, passava pelo trabalho desenvolvido pelas Comissões de Inquérito, que tinham como função relacionar a totalidade dos diplomas por estado, analisar as contestações e as reclamações, e ainda formular se fosse preciso, pareceres em torno dos diplomas expedidos pelas Juntas Apuradoras (RICCI; ZULINI, 2013, p. 95).
Além disso, cabe ressaltar que nesse processo de reconhecimento de diplomas, embora as famosas práticas de “Degola” sejam bem conhecidas no período da Primeira República Brasileira, dos 2992 diplomas que chegaram à Câmara, apenas 8,7% deles não foram reconhecidos (RICCI; ZULINI, 2013, p. 99).
Nesse sentido, ideia de farsa eleitoral ocorrida nesta época, para Ricci e Zulini, tem de ser repensada tentando vinculá-la a noção de competição política, uma vez que ganhar as eleições dependia muito mais dos eleitores do que do próprio controle do governo municipal.
Ainda vale ressaltar, que a corrupção oriunda das práticas eleitorais era um fenômeno universal, onde quer que esse tipo de regime se tenha enraizado durante o período de 1830 a 1930.
Como argumenta Posada-Cabo (2000), na França a corrupção eleitoral foi um problema persistente entre 1815 e 1914, já na Argentina, a competição eleitoral intensificou-se após 1980, sendo que não há dúvidas que a fraude tenha desempenhado um papel importante no processo eleitoral. No por outro lado, Chile em 1833 as fraudes eleitorais se deslocaram ao nível dos municípios.
Por fim, como o próprio Professor Paolo Ricci, me disse uma vez:
Isso era fraude? Claro. Mas não interessa julgar estas eleições por não serem limpas! Porque era assim que na época se competia! Para se entender o caminho à democracia é preciso antes, compreender como transitamos de um modelo onde à disputa era pelo controle da burocracia eleitoral, para outro onde essa disputa é anulada.
REFERÊNCIAS
LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto. [1949] São Paulo, Ed. AlfaOmega. 4ª edição, 1978.
NEGRO A. L.; J. BRITO. A Primeira República muito além do café com leite. Topoi, v. 14, n. 26, p. 197-201, jan./jul. 2013.
POSADA-CARBÓ, E. Electoral Juggling: a comparative history of the corruption of suffrage in Latin America, 1830-1930. Cambridge University. J. Lat Amer. Stud. 32 611-644 03 nov. 2000.
RICCI, P.; ZULINI, J. P. Partidos, Competição Política e Fraude Eleitoral: A Tônica das Eleições na Primeira República. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 57, no 2. 2014.
RICCI, P.; ZULINI, J. P. The Meaning of Electoral Fraud in Oligarchic Regimes: Lessons from the Brazilian Case (1899-1930) Cambridge University J. Lat Amer. Stud. 49, 243-268 25. jul. 2016.
RICCI, P.; ZULINI, J. P. Quem ganhou as eleições? A validação dos resultados antes da criação da Justiça Eleitoral. Revista de sociologia e política, V. 21, Nº 45: 91-105 Mar. 2013.
RICCI, P. Palestra: Para além da fraude: eleições e votos no Brasil antes da democracia. 2016. (30m08s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lI9S25Piaaw>. Acesso em: 01 Nov
Créditos na imagem: STORNI. Careta, ano 20, n. 974, 19/2/1927.
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Sarah Rocha
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