Tem sempre um tom de casualidade nos nossos encontros. Experiência sensorial. Olho as luzes da Praça Tiradentes e faço um voto de silêncio. Lembro do poema da Matilde Campilho: “tenham atenção a esse nó que acontece no estômago no preciso momento que esperam por vosso amante na pracinha junto a igreja.”

Você se aproxima e o desata vagarosamente. Desenha com os dedos as linhas, entrelaça o último nó na ponta da língua. Ele se desfaz em algum ponto entre sua narração do trabalho e minha décima quinta gargalhada. Acho que é algo sobre sua escuta ativa.

Seis e alguma coisa, talvez oito. As horas se dissolvem na curva do seu ombro. Seu sorriso largo, a leveza dos seus passos. Procuro um sinal de sentimento entre os seus olhos. Não há. Minha cabeça vaga pelo ambiente; sua presença é um ponto de não retorno. Não sabia, à época, mas era ainda uma singularidade.

Quase me esqueci de que estamos em um café. Você pede um duplo, e eu, um simples. O Único Lugar do Mundo fez jus ao nome. Daqueles cafés com gosto de casa — e sua presença era também familiar. Chove uma chuva fina. Minha cabeça pende. Vejo a silhueta da Igreja do Rosário: brasas no inverno, verão aqui dentro.

Gosto do jeito que você descreve as palavras, como se fazer poesia fosse seu modus operandi. Encaro Páris. Penso que, ainda que me custasse Troia, eu também te daria o pomo. Ele sorri entre os ventos do segundo círculo do Inferno.

Você olha para frente. Gravo a curva do seu maxilar entre uma e outra rua do Largo do Cinema. Você dirige, falando despretensiosamente. As cidades não pararam ainda de queimar. Desenho sua coluna vertebral a dedo.

Você diz que não gosta de poesia. E eu não sei escrever poemas. Narração em prosa sem romance? Preciso inventar outro conceito para dar conta da experiência. Acho que foi Octavio Paz quem disse que poema e poesia não são a mesma coisa. Entre as suas formas, escolho a poesia — e a métrica que se lasque.

Vasculho as gavetas do sonho, sem sucesso. Tudo me leva de volta à região do Peloponeso. Talvez seja o desenho do teu rosto. O formato do nariz me lembra as nove musas do couro, vertendo versos como quem se afoga no Ateneu.

Uma espécie de possessão. A luz da manhã entra pela fresta da sua janela. Desfaço o pensamento no décimo segundo momento do dia. Passo por uma lista rápida. Você avança. Atravessa o véu que separa as coisas profanas das divinas. Desenha a curva das suas pernas entre as minhas.

Os cabelos em cachos, jeito de menina que está sempre indo embora. Empurro a porta como quem te afasta fisicamente. Ela não abre. Era de puxar — entre o engano kármico e o efeito poético. Ecoa na base do teu calcanhar. Uma outra porta dessas que só dão entrada.

Palas Atena emerge do centro da minha cabeça. Encaro-a, mas não dou atenção. Sou toda alma, em religiosos incêndios. Seus olhos me desafiam, seus dedos entrelaçados aos meus.

Não mudo minha escolha. O pomo permanece no centro da sua mão no café da manhã.

Desço do topo da montanha mais alta do mundo helênico. Caminho descompassada, como quem suplica a Orfeu que não olhe para trás. Luto contra, mas não resisto. Olho por cima do ombro.

Um heroísmo trágico da minha parte.

Você já foi.

Dou uma risada e olho para as cinzas da última grande fortaleza do mundo antigo.

Se seu retorno demorar dez anos, desejo ser Penélope. Ainda que Molly Bloom faça mais meu estilo.

 

 

 


Créditos da imagem da capa: Acervo Pessoal