Encruzilhada

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Em um dos mitos de Ifá[1] conta-se que Exu foi presenteado por Oxalá com o domínio das encruzilhadas. O grande orixá funfun reconhecendo os favores de Exu ao longo de 16 anos cuidando da porta e dos caminhos de sua casa o brindou com este poder. Nesse mito, que sintetizo de forma proposital, o que mais me chama a atenção é o fato de que Exu permanecendo atento na encruza que guarda a casa de Oxalá aprendeu de um tudo. Percorrendo as passagens de Ifá em que Exu protagoniza as principais ações é marcante o caráter pedagógico assente no orixá. Esse traço nos possibilita múltiplas reflexões sobre as coisas do mundo e nos impulsiona a tencionar os limites daquilo que entendemos enquanto conhecimento. Nesse sentindo, arreio duas hipóteses que persigo na tarefa de cismar as coisas, a primeira é que a interdição do signo Exu é ponto fundamental para a edificação e funcionamento da engrenagem Moderna-ocidental estruturadas nas dimensões do racismo/colonialismo. A segunda é que a transgressão a esse padrão de poder ganha forças políticas, criativas e estéticas incomensuráveis com a presença e o reconhecimento de Exu enquanto esfera de conhecimento e diversidade.

Uma das apostas que tenho feito tem se dado na encruzilhada enquanto disponibilidade filosófica para se problematizar a política, a sociedade e a educação. Quando me perguntam com quem dialogo sobre tal reflexão ou quem é o autor responsável pelo conceito de encruzilhada, eu logo digo: é Exu!!! Assim, tomando como base o repertório poético (epistemológico) de Ifá e algumas gramáticas afro-brasileiras, a encruzilhada emerge como substantivo para o que proponho enquanto uma pedagogia arrebatada por Exu, que intitulo de Pedagogia das Encruzilhadas. Em outras, palavras um projeto político, poético e ético que tem como fundamento os princípios e potencias desse orixá e persegue/pratica a transgressão dos parâmetros coloniais.

Nesse tom, como quem cospe cachaça ao vento digo: a encruzilhada não é mera metáfora ou alegoria, nem tão quanto pode ser reduzida a uma espécie de fetichismo próprio do racismo epistêmico e de um modo de racionalidade assombrada por uma fantasma cartesiano. A encruzilhada é a boca do mundo, é saber praticado cotidianamente por inúmeros seres comuns que inventam nas dobras do tempo tecnologias e repertórios poéticos de espantar a escassez com a abertura de caminhos. A encruzilhada, como dobra, entroncamento e atravessamento de existências traz na palavra caminho o sentido da possibilidade. Dessa maneira, a proposição de um projeto que elege a encruzilhada tem compromisso com a diversidade e o inacabamento do mundo. Exu, como dono da encruzilhada, matriz e motricidade do projeto educativo, é um primado ético que diz acerca das existências, dos conhecimentos e das relações entre tudo que existe e nos ensina a buscar uma constante e inacabada reflexão sobre os nossos atos. É por isso que nosso compadre é tão perigoso para esse mundo monológico e para um modelo de sociedade irresponsável com o que se exercita enquanto vida.

Reivindico a encruzilhada como horizonte de maneiras de sentir/fazer/pensar que atravessa a autoridade discursiva sobre os modos de ser e saber. Cabe se dizer, que cinco séculos depois essa face colonial se expressa em pleno desenvolvimento, cada vez mais “cruzadista”, tacanha, tarada pelo terror e pelos assassinatos. Exu, ao contrário disso, é o radical da vida, diversidade, invenção, comunicação e que nos interpela sobre a capacidade de nos inscrevermos como exercício de beleza, potência e responsabilidade. A face brincante, transgressora, pregadora de peças e de artimanhas denota Exu como contraponto necessário a esse latifúndio de desigualdade e mentira, assim como força vital que há de ser invocada para os seres que se erguerão na tarefa cotidiana de riscar os pontos da descolonização.

 

____________________________________________________________________________NOTAS

[1] Sistema cosmológico dos povos iorubas.

 

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Imagem: domínio público

SOBRE O AUTOR

Luiz Rufino

Luiz Rufino é pedagogo. Doutor em Educação (UERJ), atualmente realiza pós-doutorado em Relações Étnico-Raciais (CEFET/PPRER). Desenvolve pesquisa sobre crítica ao colonialismo, epistemologias, educações e pedagogias outras e brasilidades.

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